Quem compõe as hordas que atacam
forças populares. Como oposição fragmentada se articulou contra Evo. O papel da
OEA no golpe. Por que governo se descolou das bases. Quais as perspectivas após
o “acordo” para novas eleições
A primeira versão deste artigo
(redigido em 14/11/2019) foi publicada, em 16/11/2019, no blog A terra é
redonda sob o título A crise de hegemonia na Bolívia. Esta foi ligeiramente
melhorada e atualizada, além de inserirmos referências bibliográficas pertinentes.
Introdução
As violentas jornadas da direita
com traços fascistas de outubro e novembro de 2019 tinham como objetivo
provocar a renúncia de Evo Morales à presidência da Bolívia. Morales foi
praticamente obrigado a deixar o cargo para que a oposição parasse de incendiar
prédios públicos, violentar e torturar militantes, funcionários públicos
integrantes do partido de governo Movimento ao Socialismo (MAS) com conivência
da polícia e do exército. Esse golpe e a situação política boliviana atual,
cheias de incerteza sobre o desenlace imediato e de médio prazo, merecem uma
reflexão crítica sobre o caráter do golpe e que serve como introdução para uma
análise mais aprofundada acerca da natureza das reformas e transformações
socioeconômicas realizadas pelo governo Morales no país desde 2006.
I
A diferença daquela violência
perpetrada pela oposição autonomista regionalista por ocasião do golpe de
Estado frustrado em 2008-9 (de cunho racista que tinha o mesmo alvo, o de
humilhar, perseguir, torturar, violentar e assassinar indígenas e camponeses
pobres, trabalhadores urbanos pobres de origem camponesa e indígena) a terrível
ferocidade desatada no golpe contra Morales pela oposição fascistizante, teve
algo de inédito no país. Os acontecimentos do golpe desenvolveram padrões de
violência e ataques desestabilizadores semelhantes ao executado pela oposição
venezuelana nos últimos anos nas chamadas guarimbas e que, ao mesmo tempo, teve
decidida participação de grupos cristãos fundamentalistas, semelhante aos
grupos religiosos da base social de apoio do governo brasileiro atual, uma
estratégia já adotada pelo governo Trump neste último caso.
Verificam-se ataques planejados
em alvos seletivos múltiplos com utilização de pelo menos duas frentes de ação
civil-militar. Um grupo de choque de tipo paramilitar, boa parte recrutado pelo
lúmpen e indivíduos criminosos, sicários ou milicianos, mercenários pagos
dirigidos por um comando oculto, geralmente composto por militantes integrantes
dos grupos cívicos autonomistas de Santa Cruz, policiais, integrantes do
exército e mercenários estrangeiros (como no caso de 2008-9, em que
participaram, entre outros, mercenários croatas fascistas para derrubar o
governo). Este grupo foi assessorado pela embaixada dos Estados Unidos no país
com apoio de grupos de sicários colombianos e de ONGs estadunidenses que se
autodenominam “defensores da democracia”, cujas ações desestabilizadoras
violentas contra o governo foram abertas e solapadas.
Outro grupo de tipo civil,
composto basicamente por integrantes de classe média conservadora branca ou
mestiça, porém ideologicamente se autoconsidera branca, que enaltece os
símbolos cristãos e hasteia a bandeira nacional (semelhante ao comportamento
político da classe média conservadora no Brasil), o qual se movimenta nas ruas
para dar corpo e cobertura às ações violentas da tropa de choque, comandada
pelo primeiro grupo com o fim de legitimar a onda de violência contra o governo
e a “ditadura” de Morales.
Neste grupo se incluem os líderes
dos partidos da oposição (Mesa, Costas, Ortiz, Medina e sobretudo Camacho) que
estavam dispersos e foram unificados justamente na conjuntura do dia da
apuração das eleições (20 de outubro), depois que o STE foi acusado de fraude,
quando este teve um “apagão” de 24 horas no momento de tornar públicos os
resultados eleitorais. Mesmo com as diferenças de táticas de ataque entre os
partidos e movimentos da oposição contra o governo, eles tendem a se unificar
na estratégia imposta pelo líder do movimento cívico de Santa Cruz de la
Sierra, Camacho, que adota posturas políticas machista, fascista e radical
defendendo a consigna de renúncia de Morales com o fim de “pacificar o país”.
Esse líder medíocre da oposição,
desconhecido politicamente, que surfou no movimento antigoverno Morales e
aparece galgando posições mais radicais que a Mesa, foi fabricado pelos grupos
de oposição acima mencionados num momento da crise de tática política da
oposição e ao perceber que Morales ganharia de fato o pleito eleitoral. Enfim,
Camacho não passa de uma fabricação política do governo estadunidense, sendo
uma cartada na manga, e que está articulado aos interesses do grande e médio
capital do agronegócio e aos interesses econômicos e políticos dos Estados Unidos.
Por isso a sua radical intervenção pedindo a punição do Morales e dos
integrantes deste governo, ameaçando com inquérito de responsabilidades pela
suposta fraude eleitoral e pelas mortes ocorridas no levante opositor
atribuídas ao governo, vem vociferando inclusive com fazer “justiça divina”.
Era sobejamente conhecida a
estratégia da oposição de lutar até as últimas consequências para derrubar o
governo Morales depois do plebiscito de 2016, em que Morales foi derrotado para
se reeleger. Mas as táticas antigoverno para concretizar essa estratégia sofreu
vários revesses e tudo parecia que o governo vigente estava controlando o
processo eleitoral num contexto de desorganização e desunião da oposição.
Entretanto, as táticas da oposição ganham certo fôlego com a ascensão do
candidato antipetista em 2018 no Brasil e com a instauração do novo governo
brasileiro em 2019, o que colocou expectativas positivas devido à influência e
apoio político à oposição na Bolívia, que foram aplaudidas e fortalecidas pelo
governo estadunidense. Sabe-se que Camacho visitou o Brasil esse ano para
solicitar apoio a sua empreitada golpista contra o atual governo e se reuniu
pessoalmente com o Ministro das Relações Exteriores em Brasília.
Mas foi uma conjuntura política
aleatória que contribuiu com a reunificação da oposição e que acabou colocando
as bases que fortaleceram o golpe de novembro: a queimada da região conhecida
como Chiquitanía no leste do país em julho-agosto desse ano, justamente onde a
oposição é potencialmente forte: o departamento (estado) de Santa Cruz, cujo
centro político é monopolizado pelo famoso Comitê Cívico de Santa Cruz de la
Sierra (principal cidade econômica do país) que age, em conjunturas de crise
política dos partidos tradicionais, como partido político. Foi a partir do
surgimento dessa conjuntura que se criaram as condições ideológicas de
fortalecimento do planejamento do golpe de Estado. Mas era esta conjuntura
política favorável que estava esperando a oposição para
aprofundar sua estratégia, como veremos a seguir.
aprofundar sua estratégia, como veremos a seguir.
Fontes críticas revelam que nesse
período (queimadas) e em inícios de novembro houve contatos e reuniões de
assessores e funcionários estadunidenses com integrantes da oposição,
principalmente com Camacho, dirigente do comitê cívico de Santa Cruz, e com
integrantes da polícia e do exército para planejar e concretizar a
desestabilização política para concretizar o golpe de Estado. Inclusive, desde
o ano retrasado, fontes estadunidenses não governamentais (como empresas de
espionagem) alertaram para esse processo de desestabilização no país justamente
no contexto eleitoral na Bolívia, caso ganhasse o candidato oficial. A mídia
hegemônica articulada aos interesses políticos da oposição dava insights
permanentes sobre a “probabilidade certa” de um segundo turno, e que
curiosamente, revelava em entrelinhas um complô em andamento. O governo Morales
sabia dessa movimentação e da estratégia da oposição.
A oposição engolfou-se no
movimento sobre as queimadas culpando o governo Morales e fez o mesmo no momento
da suposta fraude eleitoral em outubro, aproveitando o recuo defensivo do
governo nesse último contexto. Logo saiu às ruas ateando fogo nas instituições
estatais articuladas à suposta fraude eleitoral e violentando, torturando e até
assassinando militantes e funcionários públicos do MAS diante dos olhos
coniventes da polícia. A queima de residências de políticos desse partido e de
integrantes da família de Morales, agressões e tortura, manifestações de
integrantes da polícia boliviana amotinada contra o governo mostrando o
crucifixo em alto junto com os fuzis, bem como o caso de uma prefeita do MAS da
cidade de Vinto, revelam o nível de violência que a oposição praticou
impunemente.
II
O governo Morales e seus
dirigentes ou intelectuais caíram ingenuamente na cilada da OEA, ou num claro
erro tático, ao aceitar a perícia sobre suposta fraude a favor do Morales
alegada pela oposição na apuração do voto. É sobejamente conhecido que esse
órgão é um instrumento político permanente dos interesses dos Estados Unidos
(que aplaudiram o trabalho de perícia ao ter constatado “irregularidades” que
foram consideradas como fraude eleitoral) e dos países alinhados
automaticamente a esses interesses e influências de Washington, como os países
que integram atualmente o grupo de Lima.
Aceitar a perícia desse órgão e,
ainda mais, acreditar que fosse imparcial, acelerou as condições do golpe
contra o governo, na medida em que este ficou encurralado e na defensiva – isto
é, acabou ficando aos poucos refém da oposição (abertamente sob o comando de
Camacho) e do veredito final da OEA – ao se deparar do informe técnico dessa
instituição segundo a qual ter-se-ia constatado fraude, porém sem demonstração
detalhada da veracidade da mesma. O governo deveria ter exigido, como requisito
básico para garantir a imparcialidade, uma comissão colegiada de países para
que participassem da perícia do computo de votos, como, por exemplo, México,
Rússia, China e à ONU. Nada disso foi feito. O governo praticamente aceitou a
empreitada da OEA e, ao constatar parcialidade de alguns integrantes da
comissão de observação eleitoral, já era tarde demais, pois caiu na emboscada
política perpetrada pela oposição com ajuda desse agente ou órgão
internacional.
A dupla prática ou ação
diversificada da OEA oculta permanentemente seus interesses políticos concretos
que defende e que, no caso do processo eleitoral boliviano, três dias depois do
pleito convocou reunião do Conselho Permanente para tratar o caso diante da
vitória do candidato governista, contestada pela oposição. Feita a perícia,
irresponsavelmente denuncia eufemisticamente “sérias irregularidades” da
apuração de votos, sobredimensionando o problema, caldo de cultivo para
desencadear o estopim incendiário da oposição.
É ocioso lembrar que Almagro fez
esse jogo duplo ao seduzir Morales antes, durante e depois do processo
eleitoral, demonstrando imparcialidade da OEA, respeito e seriedade em relação
ao processo eleitoral boliviano – os dois se reuniram na Bolívia em várias
oportunidades, tudo se passando como se o primeiro estivesse apoiando
seriamente o segundo em relação à reeleição, provocando estupor e indignação de
integrantes da oposição, quando na verdade era uma jogada política devidamente
planejada.
A aceitação desse jogo por parte
do governo boliviano trouxe um enorme custo político, pois Morales decidiu
convocar novas eleições dando munição para o estopim da oposição se alastrar e
aprofundar o golpe. Em contraposição ao golpe perpetrado pela oposição (negados
pelos governos estadunidense e brasileiro e pela própria OEA), Almagro
confirmou na mídia que não houve golpe de Estado dirigida pela oposição e, ao
contrário, o que houve foi um golpe de Estado do governo Morales nas eleições
de 20 de outubro.
No caso das irregularidades do
processo eleitoral do México em 2016 e das eleições em Honduras no ano seguinte
(cujas irregularidades foram constatadas pela OEA passando a propor novas
eleições, porém os Estados Unidos declararam ganhador o candidato Hernandes,
tendo o órgão aceitado sem conflito o veredito desse país), curiosamente a OEA
ficou em absoluto silencio. Já as eleições na Venezuela são sistematicamente
desqualificadas como irregulares e ilegítimas. Isto sem falarmos do silencio
sepulcral desse órgão sobre o levante político no Chile contra o governo Piñera
e da brutal repressão policial desatada contra as massas populares em rebelião
que ocorreu quase paralelamente ao processo eleitoral na Bolívia.
Em suma, quais foram as causas do
golpe de Estado na Bolívia? Aqui tão somente colocamos uma hipótese indicativa.
O golpe foi perpetrado pelas frações de classe dominantes nacionais articuladas
ao capital do agronegócio, setores da agroindústria exportadora (principalmente
grãos e carne bobina), as classes o grande e médio latifúndio, o capital
estrangeiro articulado principalmente ao setor extrativo (mineração, como gás,
petróleo, ouro, lítio e outros minérios), a burguesia rentista (que vive da
renda e do espólio dos royalties do setor mineração) e sua aliada, a classe
média conservadora cristã fundamentalista que dirige os famosos comitês cívicos
do país, principalmente da região leste. Essas frações de classe burguesa, em
aliança política com o imperialismo estadunidense e europeu, estavam
descontentes e em franca oposição das políticas nacionalista e neodesenvolimentistas
do Estado sob o governo Moralaes desde 2006. Essas forças golpistas expulsam da
direção do Estado o partido MAS.
Este partido político
converteu-se em força social que conseguiu dirigir o país num contexto de crise
de hegemonia no período neoliberal, com base na nacionalização do gás e
petróleo e os demais recursos energéticos, realização de uma reforma agrária de
cunho redistributivista e a aplicação de uma política social também
redistributivista (diversas bolsas famílias) a favor das maiorias sociais –
camponeses, indígenas, trabalhadores rurais e urbanos, etc. (DURAN GIL, 2008a).
Embora tais políticas estatais criaram as condições socioeconômicas de expansão
do capitalismo, beneficiando sobretudo os setores dominantes da economia, com
crescimento sustentado do PIB acima de 4% ao ano e com baixa inflação, foram
paradoxalmente rejeitadas tais setores e aplicam o golpe.
III
O golpe contra o governo Morales
revela que a estratégia democrática adotada, de aceitação das “regras do jogo”
democrático, da defesa da não ruptura institucional, confirma o erro prático de
utilizar a democracia burguesa como fim em si, como estratégia única e
unilateral sem dinamização da luta proletária ou dos movimentos populares
anticapitalistas para defender o chamado “proceso de cambio” ou “revolução
democrática e indigenista” iniciada no país desde 2006. Esta questão foi muito
cara ao processo revolucionário na Bolívia sob o governo em questão, e que
suscita um debate teórico e prático mais aprofundado nos campos da esquerda e
socialista, que não entraremos aqui por falta de espaço.
De qualquer maneira, não é que o
governo e o MAS desconsideraram o apoio crucial das suas bases sociais de
apoio, mas o trabalho feito em relação à politização das massas populares e
indígenas foi insuficiente para conter o avanço da desestabilização das forças
da oposição e que, no calor do confronto entre movimentos populares pró-governo
na cidade e no campo (camponeses, indígenas das terras alta e baixa,
associações de bairro e de trabalhadores como a COB, a CSUTCB, a FSTMB, as
bartolinas, os cocaleros, os ponchos rojos, etc.) contra o movimento golpista,
o pêndulo cedeu para este último, mesmo que, uma vez consumado o golpe através
da renúncia de Morales, as forças que apoiam e apoiaram o governo deposto
saíram às ruas em sua defesa reivindicando “guerra civil”.
É curioso que o governo Morales
parece ter sido vítima da sua própria estratégia democrática ao
sobredimensionar este mecanismo, passando a defender não só a reeleição
indefinida mas a própria logica da democracia burguesa, que tem caráter de
classe e limitada na sociedade capitalista. O que explicaria vários elementos
dos erros dessa estratégia e da prática política democratizante do governo e do
MAS no caso boliviano.
Comecemos pela questão da defesa
da reeleição indefinida de Morales e sua suposta invencibilidade eleitoral,
este seria o primeiro elemento – isto é, pergunta-se se a defesa estratégica do
processo eleitoral como solução de permanência do líder ou do processo de sucessão
governamental não teria configurado uma empreitada de aventureirismo
eleitoreiro.
Não estamos insinuando que a
questão da reeleição em geral, e a de Morales em particular, seria sinônimo
desse tipo de aventureirismo. O problema não está na reeleição indefinida no
âmbito da democracia representativa liberal-burguesa enquanto tal, pois ela é
compatível com esse tipo de democracia por ser uma questão política e funcional
aos interesses do capital, como demonstraram os casos da Merkel na Alemanha e
Netanyahu em Israel que, se não me falha a memória, a primeira cumpriu quatro
mandatos consecutivos e o segundo cinco, os quais foram apoiados pelos Estados
Unidos e a União Europeia, e que, no caso da reeleição de Chávez, Maduro e
Morales, esses mesmos países condenaram a reeileção por ser uma prática
ditatorial ou aberração política.
Outro elemento importante seria a
paralisação parcial e desorganização política das massas populares ou da base
social de apoio que defendiam o governo, pois teriam ficado passivamente à
espera do escrutínio eleitoral que daria a vitória a Morales. A base social de
apoio do governo foi surpreendida pela reação violenta da oposição, que
demonstrou ser planejada com antecedência.
Entretanto, talvez o elemento
crucial que sintetizaria a “aventura eleitoralista” seria a questão da
inexistência de grupos de apoio militar ao governo Morales e às forças armadas
(o povo em armas), pois deixaram a maioria social ou base social aliada
governamental indefesa a mercê das forças milicianas e paramilitares da
oposição, apoiadas pela polícia e o exército. No caso da Venezuela temos os
coletivos e outros grupos de defesa da revolução bolivariana; em Cuba temos as
Milicias Nacionales Revolucionarias, e no Irã a Guarda Revolucionária. Esses
casos remetem aos antigos Guardas Vermelhos da Revolução Russa e que, no caso
da China, estão ativos. Tais grupos são ou foram atuantes, fizeram a grande
diferença ao apoiar os regimes revolucionários nascentes. Não houve nada
parecido no caso do governo mencionado. O único grupo civil armado é o dos
chamados Ponchos Rojos que surgiram na Revolução de 1952 e que reaparecem em
2005-6 em apoio a Morales, porém suas armas, que foram arrebatas ao exército no
processo revolucionário no início da década de 1950, são obsoletas, e cujo
poder de fogo é mais ornamental e propagandístico a favor do governo Morales.
Na verdade, o governo em questão
deixou nas mãos da polícia e das forças armadas a defesa do regime, num apelo
ao papel constitucional das duas forças, principalmente da segunda, como sendo
guardiãs da democracia. Acreditando que essas duas forças armadas estavam sob
seu controle político por obra de uma política social que manteve os
privilégios (reforma institucional, modernização das duas armas, manutenção de
altos salários e privilégios, boa aposentadoria e atendimento médico, etc.), um
belo dia se transformaram em fuzis apontados contra o governo e à maioria
social que o apoia. O que teria demonstrado que as reformas nos dois setores do
aparelho estatal tinham bases bastante frágeis.
Trata-se de um erro recorrente
destes tipos de regimes autodenominados socialistas e que – a nosso ver –
acabam subestimando o poder militar e sendo até indulgentes com a rebelião de
integrantes do oficialato que lutaram para derrocada do regime. O caso do
governo Torres na Bolívia (que ascendeu ao poder governamental graças à luta
draconiana do movimento de trabalhadores mineiros e fabris) demonstra isso ao
ser indulgente com o coronel golpista Hugo Banzer em 1971, que acabou
liquidando politicamente a Comuna de La Paz (Assembleia Popular), uma das mais
importantes experiências de luta pelo socialismo até o momento (Cf. DURAN GIL,
2014, 2019). E o caso paradigmático do governo Allende em 1973, só para nos
atermos a estes duas experiências avançadas de luta pelo socialismo na América
do Sul na década de 1970. Dois casos que evidentemente devem ser elogiados
enquanto experiência histórica, mas também avaliados criticamente.
Resta saber se o caso da
Venezuela bolivariana, que resistiu a inúmeras tentativas de golpe sem sucesso
até hoje, estaria revelando a importância de superação de tais erros, se tal
experiência seria um avanço relativo nesse sentido.
IV
A tomada do poder político por
parte da oposição de direita fascista através do golpe de Estado civil-militar
na Bolívia revela que a derrota do governo Morales e da forma de Estado e
regime político correspondente denotariam a importância do controle político do
aparelho e instituições estatais para desenvolver reformas socioeconômicas importantes,
e que, ao mesmo tempo, demonstrariam seus limites estruturais e de classe,
revelando a tendência de contrarreformas ou ações contrarrevolucionárias. Se
não, como explicar por que nesta tentativa do movimento oposicionista golpista
(com forças internas e externas, nacionais e estrangeiras e imperialista)
contra um regime que durou treze anos consegue derrubar de forma acelerada um
governo em tão curto período de tempo? Quais foram os principais erros e
contradições do regime que, numa conjuntura eleitoral, decretaram seu colapso?
O que instiga, por um lado, a
realizar uma análise sobre o caráter de classe das transformações adotadas na
Bolívia ou sobre a natureza da “revolução boliviana” sob o governo Morales
(2006-2019); e por outro, obriga ao analista a desenvolver uma avaliação
crítica sobre o desvendamento da crise política nacional, especialmente a
análise da crise de hegemonia no período. Por motivos de espaço não é possível
aqui empreendermos essa tarefas, que será feita em outro momento. Em alguns
trabalhos de nossa autoria já fizemos algumas análises introdutórias sobre
esses assuntos (DURAN GIL, 2008a, 2008b, 2017, entre outros).
V
A atual situação do país como
produto de ruptura institucional não só é calamitosa como profundamente
preocupante para as forças sociais que apoiaram e apoiam o MAS e o governo
deposto. E aqui somente podemos indicar algumas tendências políticas como
ensaio do que poderá vir num contexto de alta incerteza política, econômica e
social.
Primeiro, como na maioria dos movimentos
contrarrevolucionários, é previsível a ação cirúrgica do “Termidor boliviano”
que buscará declarar ilegal o MAS e os movimentos populares a ele articulados,
além de tentar impor um processo de inquérito de responsabilidade aos
principais líderes do governo, do parlamento e de outras instâncias da
burocracia estatal. Não por acaso houve uma enxurrada de renúncias dos
principais cargos do executivo e do legislativo, seguida de saída ao exílio do
presidente e vice-presidente depostos. Os deputados e senadores do MAS não
compareceram à primeira sessão do parlamento para tratar da sucessão
presidencial conforme a Constituição devido à falta de segurança para se
deslocarem a casa legislativa. Trata-se de uma “caça as bruxas” para liquidar
politicamente o principal partido governante e expulsá-lo da direção do Estado.
Tarefa que deve ser estendida ao
desmonte do Estado vigente, no sentido de que a cúpula e o escalão médio do
aparelho estatal deverão ser ocupados por integrantes das forças golpistas (é o
caso da autodenominada nova presidente do país num parlamento totalmente
esvaziado). Deve também ocorrer uma depuração da direção dos aparelhos policial
e militar indicados pelo governo deposto, premiando os integrantes que se
rebelaram contra o mesmo com cargos de direção na cúpula policial e castrense.
Segundo, a oposição no poder
buscará governar interinamente através de uma coalizão de partidos e forças
conservadoras, respeitando a constituição vigente no discurso, e que pode
convocar eleição geral nacional para os principais cargos do país, porém
buscará punir o MAS excluindo-o do processo eleitoral. As novas forças do
parlamento igualmente empenhar-se-ão eliminar a Carta Constitucional vigente
elaborada em 2008-9 e aprovada numa Assembleia Constituinte com predomínio das
forças do MAS, ou propor nova constituinte, ou então uma reforma constitucional
com o objetivo cirúrgico de eliminar os entraves contra o grande e médio
capital e contra o grande e médio latifúndio.
Em suma, realizar-se-ão ataques
neoliberais ao tripé econômico do Estado Plurinacional: as políticas de
nacionalização, reforma agrária e redistributiva (subsídio as populações
carentes, como bolsa família etc.). No que diz respeito à influência dos
movimentos camponês e indígena, como dos movimentos populares em geral (que
tinham afinidade com o governo deposto através de vários ministérios e
instituições públicas, cuja influência está também estampada na Constituição
vigente), buscarão também ser eliminados ou diminuídos ao máximo – como os diversos
bonos ou bolsas famílias (de crianças, mulheres grávidas, anciãos, etc.) para
populações carentes. O desmonte do Estado anterior deve também eliminar as
políticas de reforma agrária e as políticas de nacionalização e estatização
empreendidas pelo Estado Plurinacional. O que poderá ser acompanhado de uma
reforma econômica de cunho neoliberal, com drástico recorte do orçamento e do
gasto público, sendo redefinidos e dirigidos aos setores “produtivos”.
Igualmente poderá ser implementada uma política de arrocho salarial com
drástica diminuição e corte de salários, enfim.
Terceiro, a reaparição das forças
masistas que aglutinam os movimentos populares (indígenas e camponeses),
sindicais e partidários a favor do governo deposto prometeram lutar numa
“guerra civil” contra a eliminação ou diminuição dos seus direitos civis, políticos
e sociais conquistados durante o Estado Plurinacional. Resta saber até que
ponto esse conjunto de movimentos teria a capacidade de se reorganizar e
liderar a luta de oposição numa guerra civil de fato para reconquistar o poder
político, num contexto em que perderam o controle e influência do Estado
Plurinacional e num momento de ataque e início de desmonte desse Estado (caso
se consolide pode levar ao ponto de sua desintegração ou crise terminal
provocado pela política de cunho neoliberal) por parte das novas forças que
controlam o aparelho estatal. Mas é cedo para falarmos dessa variante de
consolidação do poder das forças oposicionistas.
Os cenários possíveis que se
poderiam vislumbrar (não descartam violência e derramamento de sangue) seriam
os seguintes:
(i) uma greve massiva indefinida
por parte dos movimentos populares, sindicais e partidários a favor do governo
deposto, com ações de resistência civil armada em todo o país e com ocupação de
instituições estatais plurinacionais, obrigaria os golpistas a recuar e os
forçaria a restabelecer o governo deposto com garantias de segurança dos seus
integrantes para terminar o mandato, e este convocaria novas eleições gerais;
ou forçaria os golpistas a cumprir a constituição vigente com convocação de novas
eleições gerais com participação do MAS, o que de fato, nesta variante,
precisaria de um governo de transição – nos dois casos requerem um tipo de
saída negociada conforme Morales estava propondo;
(ii) a instauração de uma junta
militar que formaria um governo de transição que favoreceria a oposição ou
favoreceria o restabelecimento das forças sociais que defendem o governo
deposto para uma saída negociada (novas eleições etc.). Com efeito, qualquer
dessas hipóteses ou tendências podem não ocorrer de acordo com o aguçamento do
conflito dos grupos funcionais ou da luta de classes.
Até o momento (29/11/2010), o
desenlace dos acontecimentos caminhou para a tendência de uma saída política
negociada comandada pelo atual governo interino. E qual é essa saída política?
Depois da massacre das massas populares pelas forças que assaltaram o poder
governamental, o governo de fato impôs curiosamente a pacificação do país, uma
a tentativa de consolidar o golpe contra o governo Morales e a derrota dos
movimentos sociais e do MAS, uma espécie de acordo ou pacto do vencedor com
roupagem democrático que busca colocar um “manto de legalidade” (tese que
circula na mídia estrangeira mais crítica sobre o caso boliviano), que a nosso
ver, não é outra coisa que imposição da desorganização das massas populares,
principalmente dos movimentos operários, camponeses e indígenas que lutam pelo
socialismo. Esse seria um dos papeis justamente da democracia burguesa. Tanto
os ex-líderes do governo anterior (Morales e García Linera) quanto os
dirigentes do MAS apostaram e ainda apostam na democracia liberal-burguesa,
tendo dificuldades de entender que a democracia burguesa, mesmo na sua mais
avançadas expressões e variações, é uma forma de dominação e desorganização das
classes dominadas na história da República burguesa.
As forças dos movimentos
populares, camponeses e indígenas se adiantaram ao diálogo com o governo de
fato e decidiram que a única saída de pacificação seria a convocação de novas
eleições o mais breve possível como saída a atual crise política do país,
sobretudo para paralisar a sede de repressão violenta do governo vigente. Entre
os grupos sociais que apoiam o acordo com o governo, estão os seguintes: a
Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia (CSUTCB); a
Confederación Nacional de Mujeres Originarias Campesinas de Bolivia-Bartolina
Sisa; a Confederación Sindical de Comunidades Interculturales de Bolivia
(CSCIB); a Confederación de Pueblos Indígenas del Oriente Boliviano (CIDOB); y
el Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qullasuyu (Conamaq). A comissão de
pacificação foi composta pelo Ministério do governo (o ministro Murillo, o
carrasco do atual governo), a Central Obrera Boliviana, o Pacto de Unidad (que
apoiava o anterior governo, porém se dividiu na crise do golpe), a Comissão de
Direitos Humanos e representantes da UE. A Assembleia Legislativa Plurinacional
(ALP), liderada ainda pelas forças do MAS, numa situação clara de refém e de
recuo político, aceitou o acordo de pacificação do governo feito com setores
dos movimentos populares mencionados, anulou as eleições de 20 de outubro,
aceitou a convocação de novas eleições, bem como emitiu lei de criação dos
integrantes do TSE.
Com efeito, alguém contestará
nossas reflexões acima perguntando por que os dirigentes do MAS no seio da ALP
e dos que lideram os movimentos sociais, base social de apoio ao regime
anterior, iriam defender medidas de luta e resistência contra o governo vigente
ampliando a carnificina contra as massas populares e castigando economicamente
a população mais pobre numa situação de prolongamento da resistência devido ao
encarecimento e falta dos bens de consumo básicos.
Respondemos que prevaleceu tanto
nas forças masistas na ALP e no seio dos movimentos populares a proposta de
acordo de pacificação para conter o avanço da massacre ao povo, uma decisão
pragmática da corrente conciliadora do MAS e das correntes desses movimentos,
para atenuar a derrota política das forças sociais que eram favor do governo
deposto. Já no interior dos movimentos populares supramencionados, a proposta
de pacificação foi articulada pelos setores que estavam em franca crise ou
oposição ao governo deposto e que se acelerou no momento do golpe.
Evidentemente, a saída da crise política atual é pacífica fortalecendo a tese
da não ruptura institucional. Esse pragmatismo político pode ser caro ao MAS
(possibilidade de derrota política) com consequências políticas bastante
sérias, pois, além de diminuir o poder potencial do voto nas próximas eleições,
pavimenta o caminho para a direita se fortalecer eleitoralmente e conquistar
novamente a cúpula dos aparatos estatais, podendo incidir na aceleração do
desmantelamento do Estado Plurinacional, tal como foi mencionado em parágrafos
acima.
Resta saber se essa saída da crise
política não desaguaria na consolidação das forças políticas conservadoras e
fortaleceria o autoritarismo de cunho civil (imposição da política de
criminalização dos movimentos populares, considerando-os como sediciosos ou
terroristas) e se de fato a pacificação do país seria concreta, não induzindo à
perseguição política e julgamento sumário dos ex-dirigentes do governo deposto.
Enfim, a luta das forças
contendoras conota uma séria crise de hegemonia, cuja resolução está sendo
restabelecida ou redefinida, porém com alto grau de incertezas e que acaba
inaugurando uma nova fase de crise política, de violência e de instabilidade
política, num país tido como um laboratório político na América do Sul
juntamente com a Venezuela. Esse será o desafio analítico que empreenderemos em
outro momento.
Conclusão
Temos analisado brevemente a
conjuntura sobre o golpe cívico-militar na Bolívia em curso. As cinco reflexões
apresentadas servem como proposta de analise sobre o caráter de classe do golpe
em tela e que podem servir como introdução para evaluações ou balanços críticos
posteriores sobre duas temáticas correlatas: o caráter das transformações
socioeconômicas encetadas pelo governo Morales e a natureza de classe da crise
de hegemonia na Bolívia atual.
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