terça-feira, 31 de dezembro de 2019

A era dos eleitores cínicos


Em meio à crise civilizatória, risco de descer mais um degrau. Abandonadas pela democracia, maiorias seguem exemplo dos políticos: renunciam ao futuro e votam segundo interesses cada vez mais mesquinhos e oportunistas

Slawomir Sierakowski | Outras Palavras | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Yue Minjun, Arca de Noé, (2006)

Muitos dos que votaram em Donald Trump para presidente dos EUA sabiam que ele é um mentiroso contumaz, assim como a base do Partido Conservador no Reino Unido sabe que Boris Johnson, provável futuro primeiro-ministro, subiu trapaceando e mentindo. Na Polônia, não é segredo que o partido do governo, Lei e Justiça (PiS), está inchando as instituições de governo com seus lacaios, deformando a mídia pública, recompensando comparsas e minando a independência dos tribunais. No entanto, o PiS goleou os partidos de oposição da Polônia nas eleições para o Parlamento Europeu, em maio.

O fato de poloneses, britânicos e norte-americanos abrirem as portas para governos moralmente falidos é sintomático daquilo que o filósofo alemão Peter Sloterdijk descreveu como “razão cínica” no início dos anos 1980. Sloterdijk argumentava que, na ausência de narrativas de progresso amplamente compartilhadas, as elites ocidentais absorveram as lições do Iluminismo mas as colocaram a serviço de interesses pessoais estreitos, ao invés do bem comum. Problemas sociais tais como a pobreza e a desigualdade já não podiam mais ser atribuídos somente à ignorância humana. Contudo as pessoas esclarecidas não tinham determinação para resolvê-las. Como diz Slavoj Zizek, hoje a operação da ideologia já não é “eles não sabem, mas estão fazendo”, e sim “eles sabem, mas estão fazendo assim mesmo”.

Na visão de Sloterdijk, esse cinismo começou na elite. Agora todos nós nos comportamos como egoístas esclarecidos. Embora saibamos lutar contra as desigualdades, elas estão aumentando. O autoritarismo (seja russo ou chinês) lida melhor com a pobreza do que a democracia. As sociedades ricas são pouco sensíveis a guerras ou crises de refugiados.

Grandes ideias que prometem significativas mudanças sociais, sejam elas da democracia social ou da democracia cristã, estão encontrando ressonância somente entre as gerações mais velhas. Eleitores indiferentes ao fato de que populistas como Trump ou o primeiro-ministro húngaro Viktor Orban mudam suas declarações de um dia para o outro não são admiradores cegos do poder. São apenas defensores de seus próprios interesses particulares. Se reduzir emissões de gás de esfeito estufa significa fechar minas de carvão e usinas termoelétricas a carvão, aqueles que têm interesse no setor de carvão não apoiarão as políticas climáticas. Da mesma forma, aqueles que vivem nas áreas mais ricas não se importam muito com a demissão dos mineradores de carvão.

Na Europa, a emergente divisão entre Verdes e populistas parece refletir um novo eixo pós-ideológico. Nos dois lados da linha divisória, os eleitores comportam-se agora como velhos políticos, destacando determinados assuntos enquanto evitam outros cuidadosamente. Eles internalizaram a linha partidária (muitas vezes uma colcha de retalhos de antigas políticas de esquerda e direita), que repetem em grupos de discussão, nas mídias sociais e em torno da mesa de jantar. Os partidos políticos já não representam os eleitores; ao contrário, os eleitores representam os partidos, às vezes até antes de emergirem, como demonstraram os protestos dos coletes amarelos na França.

A presidência de Trump, o desastre do Brexit do Reino Unido e a ascensão do PiS e de Orban sugerem um generalizada perda de fé no progresso. A visão de progresso da Europa Oriental foi por muito tempo sinônimo de transição do comunismo ao capitalismo. Mas três décadas de aperto dos cintos à espera de um amanhã melhor cobraram uma pesada taxa de confiança das pessoas na democracia liberal. O populismo apela aos eleitores com sua promessa de uma espécie de revolução de Copérnico, revertendo o aperto dos cintos, bem como as suposições predominantes no passado.

Pouco depois da vitória do PiS nas eleições para o Parlamento Europeu, nas quais ele obteve 45,5% dos votos, o serviço de notícias OKO.press perguntou aos poloneses, “O atual governo do PiS persegue os próprios interesses partidários mais do que os governos anteriores do PO-PSL (Partido Popular Polonês-Plataforma Cívica)?”

No total, 68% dos entrevistados responderam que sim e apenas 24% disseram que o PiS tem menos interesses do que seus predecessores. Mesmo entre os eleitores do PiS, 38% reconheceram que o aparato estatal está mais aparelhado do que sob o PO e o PSL. Quando perguntados se o governo atual do PiS faz mais para o ganho financeiro pessoal de seus funcionários do que o governo anterior do PO-PSL, 58% consideram o PO e o PSL mais honestos.

Contudo, em pesquisas qualitativas com eleitores poloneses ouve-se consistentemente coisas do tipo “Sei que o PiS não é particularmente honesto, mas eles cuidam das pessoas; roubam e enrolam, mas ao menos repartem”. Em outras palavras, esses eleitores apoiam o PiS a despeito de seus óbvios defeitos, porque não acreditam que podem dar-se ao luxo de votar contra o partido que, à sua maneira, tem canalizado dinheiro e outros benefícios sociais em sua direção.

A teoria das perspectivas, modelo de economia comportamental introduzido pelos ganhadores do Prêmio Nobel Daniel Kahneman e Amos Tversky, prevê que as pessoas se tornarão menos avessas ao risco se lhes forem apresentadas apenas possibilidades negativas. Nosso cálculo depende não apenas do que podemos ganhar ou perder em termos absolutos, mas de nossas expectativas e situação atual. Quando alguém que está esperando um pagamento alto recebe menos do que imaginava, fica decepcionado, ao invés de sentir-se satisfeito por ter pelo menos ganho alguma coisa.

Essa heurística mostra como os eleitores podem tornar-se ligados a políticos tipo Trump ou o líder do PiS Jaroslaw Kacynski. Eleitores poloneses, britânicos e norte-americanos fizeram escolhas políticas que sabem ser arriscadas porque sentem que não têm nada a perder e, afinal, suas opções são entre “ruim” e “pior”. A defesa de ideais elevados como a democracia, a ordem constitucional e a liberdade de imprensa parece um luxo exorbitante. Eles não estão dispostos a sacrificar benefícios materiais por princípios abstratos.

Quem pode culpá-los? As corporações multinacionais ocidentais que fazem negócios na Rússia, China e outros países vêm há anos sacrificando o liberalismo em nome do lucro. Como Sloterdijk observou quase 40 anos atrás, a razão cínica escorre para baixo. Se isso ao menos fosse verdade sobre a riqueza, a história poderia ter sido bem diferente.

*Fundador do movimento Krytyka Polityczna, é diretor do Instituto de Estudos Avançados em Varsóvia e membro da Academia Robert Bosch em Berlim.

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