No website da Embaixada
portuguesa em Caracas pode ler-se: a Venezuela «é um dos países da América
Latina com o qual Portugal vem mantendo relações mais próximas». Estranha
diplomacia esta.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Por muito que o Chefe de Estado,
ministros, TAP e a comunicação social corporativa tentem compor uma imagem de
vitimização, própria de quem pretende desviar o assunto da sua essência, a
verdade é que existiram anomalias graves, e que estão a necessitar de
explicações sérias, relacionadas com o voo TP173 de Lisboa para Caracas, no dia
13 de Fevereiro.
O ministro da Administração
Interna prometeu uma investigação às ocorrências. Apesar de não ter sido
concluída – pelo menos os seus resultados não foram divulgados a quem tem mais
direito de conhecê-los, os portugueses – o Chefe de Estado acha que as decisões
da Venezuela anunciadas na sequência do comportamento da TAP no citado voo são
«injustas e inaceitáveis»; o ministro dos Estrangeiros, o mesmo que se preocupa
com o racismo sobretudo porque «dá má imagem de Portugal no estrangeiro»,
entende que as atitudes de Caracas são «inamistosas e injustificadas»; e a
companhia aérea considera, mesmo sem dar explicações oficiais sobre o ocorrido,
que a suspensão de voos para a capital venezuelana durante 90 dias imposta por
Caracas é uma «medida gravosa que prejudica os nossos passageiros».
Ao Chefe de Estado teria sido
melhor esperar pelo apuramento dos factos porque a Pátria não está acima de
qualquer suspeita e alguns dados que circulam exigem aprofundamento e o
correspondente esclarecimento; ao chefe das Necessidades poderá perguntar-se,
já que fala de amizade, se não será «inamistoso» para os venezuelanos o
«reconhecimento político» atribuído a um indivíduo que não participou em
eleições presidenciais e que corre mundo a pedir aos governos que aprofundem
sanções contra o seu povo; e à TAP será oportuno lembrar que deveria ter
pensado nos passageiros logo na altura em que tornou possível a existência de
ocorrências que estão na base das acusações venezuelanas.
O estranho caso do senhor Antonio
Márquez
Enunciando os factos que correm
mundo desde o dia 13 de Fevereiro não será difícil perceber que é necessário
investigá-los com profundidade e apurar responsabilidades. Fazer
antecipadamente de vítima, porém, é um mau prenúncio quanto à disponibilidade
das autoridades portuguesas para actuarem com transparência.
No voo TP173 de Lisboa para
Caracas embarcou Juan Guaidó, cidadão venezuelano que há um ano se
autoproclamou presidente do país sem ter concorrido ao cargo e que recentemente
teve de provocar uma secessão na Assembleia Nacional para continuar a
afirmar-se «presidente» deste órgão, sendo-o apenas de uma facção dissidente.
De Guaidó, um instrumento nas mãos de Donald Trump, conhecem-se igualmente
práticas terroristas, golpistas e a apropriação a título pessoal de bens
enviados para o país a título «humanitário».
O nome de Juan Guaidó não
figurou, no entanto, na lista de passageiros do voo TP173. Terá o «interino»
viajado clandestinamente? Nem tanto: fê-lo disfarçadamente: tornou-se «Antonio
Márquez» recorrendo a outra combinação de nomes presentes na sua identificação.
Isto é, por alguma razão que ele, a TAP, provavelmente o ministro Santos Silva
e o Departamento de Estado norte-americano saberão, o «presidente» e também
golpista de 30 de Abril de 2019 quis passar despercebido num voo da TAP que o
levou de regresso à Pátria depois de ter andado a pedir a alguns dos principais
dirigentes do mundo que contribuam com novas sanções para a fome dos seus
compatriotas.
Fome? Exagero? Definitivamente
não. Eis como em 12 de Outubro de 2018 o embaixador dos Estados Unidos em
Caracas, William Brownfield, definiu as sanções contra a Venezuela: «Devemos
tratá-las como uma agonia, uma tragédia continuada até que chegue a um final
(…) e se pudermos fazer alguma coisa para acelerá-la devemos fazê-la, mas
devemos fazê-la percebendo que irá ter um impacto negativo em milhões de
pessoas que já estão com dificuldades em encontrar alimentos e medicamentos (…)
o fim desejado justifica este severo castigo».
Foi em nome deste «fim» que Juan
Guaidó fez o recente périplo pela Europa e pelos Estados Unidos até entrar como
Antonio Márquez no avião da TAP que o devolveu a Caracas.
Um tio à prova de bala
Com Juan ou Antonio viajou outro
Márquez, Juan José, seu tio, «seu mentor e seu guia que o incentivou a realizar
os seus sonhos e objectivos», como o definiu um velho amigo do próprio, Ángel
Briceño, numa entrevista à BBC.
Juan José Márquez entrou no avião
da TAP envergando um colete à prova de bala, o que é absolutamente vedado pelos
regulamentos da Organização Internacional da Aviação Civil (OIAC).
Desconhece-se a razão de tal precaução – mas, segundo as alegações das autoridades
venezuelanas, a companhia de bandeira portuguesa não tomou as necessárias
medidas para fazer cumprir os regulamentos. Nas bagagens do tio Márquez viajou
ainda um outro colete à prova de bala, não detectado pelos serviços de
segurança do aeroporto. Nas declarações conhecidas atribuídas à TAP não surge
qualquer alusão ao comprometedor episódio relacionado com este tipo de
vestuário ilegal.
O tio Márquez, ao que dizem as
autoridades venezuelanas, era uma autêntica caixinha de surpresas. À chegada a
Caracas os serviços de segurança apreenderam-lhe materiais explosivos nos
compartimentos para as baterias de duas lanternas eléctricas e em cinco
recargas de perfumes.
Nada disto foi detectado pela
segurança do lado de Lisboa. E tê-lo-ia sido, assegura uma declaração atribuída
a uma fonte da TAP. Porém, há estudos das universidades norte-americanas de San
Diego e John Hopkins segundo os quais os scanners de segurança de 160
aeroportos, só nos Estados Unidos, não conseguem detectar o explosivo C4,
aquele de que falam os responsáveis de Caracas.
Haverá outras razões para não ter
sido detectada matéria explosiva? Juan José Márquez, tio de Juan Guaidó, aliás
Antonio Márquez, terá mesmo viajado com explosivos – além dos coletes à prova
de bala – a bordo do avião da TAP que fez o voo TP173 para Caracas no dia 13 de
Fevereiro? É indispensável que esta situação seja apurada até às últimas
consequências, exactamente por questões de segurança dos passageiros e da
credibilidade da companhia. A Venezuela foi abrindo caminho entregando provas
do que diz à OIAC.
A gravidade deste caso torna
ainda mais difícil de perceber a minimização do episódio e a imagem de
ofendidas assumida pelas autoridades portuguesas.
Onde entra o embaixador
À chegada a Caracas, muito
naturalmente, Juan José Márquez foi detido devido à posse de explosivos. Assim
aconteceria, por exemplo, na Bélgica, em Portugal, nos Estados Unidos, na
Alemanha ou em qualquer outro país «civilizado». A investigação da sua bagagem
revelou ainda a existência de uma pen com documentos da CIA que
demonstram a ligação operacional entre o explosivo viajante e um agente
identificado como «Charles».
O comportamento dos serviços de
segurança venezuelanos, porém, foi de «intimidação e detenção arbitrária»,
segundo o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Santos Silva.
Como estará então o ministro tão
seguro da «arbitrariedade» num caso de detenção por razões que parecem óbvias?
Aqui fica uma hipótese: graças à opinião transmitida pelo embaixador de
Portugal em Caracas, Carlos Sousa Amaro, de quem as autoridades venezuelanas
dizem «ter interferido nos assuntos internos» do país ao «interceder por Juan
José Márquez» quando este foi detido. Defender assim tão às cegas um suspeito
de transportar explosivos num avião?
De modo que, seguindo a pista
aberta pelas explicações oriundas da Venezuela, o embaixador de Portugal
estaria no aeroporto de Caracas para receber o avião que transportou Juan
Guaidó, aliás transformado num vulgar Antonio Márquez na lista de passageiros
da TAP. Presumindo-se, da maneira mais elementar, que o pretendido anonimato do
«presidente» venezuelano golpista era do conhecimento de responsáveis pela
diplomacia de Portugal e da sua companhia aérea de bandeira – a TAP.
Pelo caminho mais longo
A somar ao «anonimato» de Guaidó
na lista de passageiros, aos coletes à prova de bala e aos explosivos do tio,
às nada diplomáticas diligências do embaixador de Portugal, a outras supostas
irregularidades de que falam as autoridades venezuelanas há ainda mais um
elemento de mistério: o roteiro da viagem do trumpista Guaidó.
O que trouxe o «interino» e o tio
quase anonimamente até Lisboa, vindos de Boston, quando poderiam ter ligado o
Massachusets à Venezuela de maneira muito mais célere e sem mudar de
continente?
Talvez seja esta mais uma questão
do «interesse nacional» de que os portugueses nada têm de saber pois é sua
obrigação confiar em pessoas como o ministro Santos Silva e os «segredos»
próprios do métier. Mesmo que não continue a compreender-se o que impeliu
o chefe das Necessidades para o «reconhecimento político» de Guaidó paralelo à
admissão, «de facto», de Nicolás Maduro como presidente.
O «reconhecimento político» do
também presidente do grupo fascista Voluntad Popular deve-se, segundo Santos
Silva, à sua posição «para desencadear eleições livres e transparentes». O que
é extraordinário, porque se trata do mesmo indivíduo que interpretou pelo menos
duas tentativas de golpe de Estado desde que se proclamou «presidente interino»
e que protagoniza a guerra híbrida montada e desenvolvida em Washington na
vigência dos três últimos presidentes norte-americanos para mudar
antidemocraticamente o regime em Caracas.
As sanções criminosas,
asfixiantes e em muitos casos mortais contra os venezuelanos constituem a
frente mais violenta dessa guerra, acima das quais estará unicamente a
intervenção militar, sempre no horizonte. Como pode um governo, como o de
Portugal, que se diz preocupado com os venezuelanos e a comunidade portuguesa
outorgar o seu «reconhecimento político» a um agente desestabilizador ao
serviço de interesses contrários aos dos venezuelanos e da comunidade
portuguesa – capaz de percorrer o mundo a pedir ainda mais sanções?
Sanções – e quem o diz é o
embaixador norte-americano William Brownfield – que «têm impacto em todo o
povo, no cidadão comum e corrente (…) ainda que isso provoque um período de
sofrimento de meses, talvez de anos».
Ou, como escreveu o almirante
norte-americano Kurt Tidd, ainda como chefe do Comando Sul, nos seus planos da
operação Venezuela Freedom 2: «É necessário aumentar o processo de
desestabilização e de falta de abastecimentos (…) recorrer à matriz através da
qual a Venezuela entre numa etapa de crise humanitária por falta de alimentos,
água e medicamentos”. Trata-se ainda, diz o almirante Tidd, de “intensificar a
descapitalização do país, a fuga de capitais, a deterioração da moeda nacional
mediante a aplicação de novas medidas inflacionárias que incrementem essa
deterioração. (…) Obstruir todas as importações e, ao mesmo tempo, desmotivar
os possíveis investidores estrangeiros».
Juan Guaidó é um instrumento
destas malfeitorias. O seu «reconhecimento político» é um acto que serve
objectivamente os interesses norte-americanos, por muito que o ministro Santos
Silva tente fazer crer o contrário e afirme cingir-se aos «interesses
portugueses». O Departamento de Estado norte-americano foi muito claro em 9 de
Janeiro de 2018: «As sanções financeiras que temos imposto obrigaram o governo
(da Venezuela) a cair em incumprimento. Estamos a viver um momento de colapso
total na Venezuela. Isso é porque a nossa política funciona, a nossa estratégia
funciona e iremos mantê-la».
É neste cenário abrangente que
tem de ser enquadrado o inquietante imbróglio do voo TP173 e dos seus
passageiros da família Márquez. Não vale a pena o ministro dos Estrangeiros
tentar convencer os portugueses de que a suspensão da TAP imposta pelo governo
legítimo da Venezuela é um «acto de retaliação» pelo reconhecimento de Juan
Guaidó por Portugal. Nesse caso Caracas teria punido as companhias de bandeira
dos mais de 50 países que apostaram no golpismo dirigido por Trump – o que não
aconteceu. Ao invés, é a companhia aérea nacional da Venezuela que sofre – e
arbitrariamente – os efeitos das sanções ditadas de Washington. Alguma coisa a
TAP e a diplomacia portuguesa fizeram em 13 de Fevereiro; seja o que for, é
essencial que venha a conhecer-se. Bem basta que continuem os silêncios
ministeriais sobre a eventual cumplicidade portuguesa – e da União Europeia –
na apropriação indevida por Londres e Washington das toneladas de ouro
venezuelano depositadas no Banco de Inglaterra; ou sobre o congelamento das
contas da Venezuela no Novo Banco.
No website da Embaixada
portuguesa em Caracas pode ler-se: a Venezuela «é um dos países da América
Latina com o qual Portugal vem mantendo relações mais próximas».
Estranha diplomacia esta.
Imagem: Regis Duvignau / Reuters
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