Ricardo Paes Mamede | Diário de
Notícias | opinião
Não venho falar da decisão de
alguns países de proibirem a exportação de equipamentos essenciais para
conter a propagação do vírus noutros Estados membros. Nem da gafe monumental da presidente do Banco Central
Europeu. Nem do "discurso repugnante" do ministro das Finanças
holandês. Nem da dificuldade em decidir em tempo útil sobre a emissão de dívida
conjunta. A incapacidade da UE para lidar com os impactos económicos do
covid-19 estão para lá da falta de qualidade dos líderes ou da enésima
expressão dos egoísmos nacionais a que a UE nos habituou na última década. O
problema europeu é bem mais profundo do que isto. E é um desastre em curso.
Existe um modo eficaz de lidar
com os problemas económicos que estão a desenvolver-se a cada dia que passa: o
financiamento directo pelo banco central dos esforços nacionais de combate à
crise.
Ao nível teórico, a proposta é
hoje pouco polémica. É defendida tanto por marxistas e keynesianos como por
neoliberais (convencidos, erradamente, de que a proposta tem por autor
Milton Friedman). O principal argumento contra a monetarização dos défices
públicos são os riscos de inflação, mas esse cenário é hoje pouco provável,
dado o colapso da procura e do investimento a nível internacional. Os
argumentos decisivos para defender esta opção passam pela rapidez com que
poderia ser accionada, pela capacidade ilimitada dos bancos centrais para
emitirem moeda e pela relativa facilidade em desenhar a operação de modo a evitar
possíveis efeitos perversos.
No entanto, não encontramos nos
comunicados oficiais da zona euro qualquer referência a esta possibilidade. Não
é por acaso. A ideia é tabu e está proibida pelos tratados.
Nos últimos dias as atenções têm
estado centradas na eventual emissão de eurobonds, ou de coronabonds,
ou de uma qualquer variante de partilha de riscos na emissão de dívida pública
dos Estados membros da UE. O dramatismo em torno do tema é enorme e nele
parece residir o futuro da integração europeia. Num momento destes seria, de
facto, um péssimo sinal se os governos não se entendessem sobre uma forma tão
óbvia de solidariedade. Mas, para lá do seu simbolismo, a emissão de dívida
conjunta não chega para resolver os problemas actuais.
Importa reter uma noção
elementar: a emissão de dívida conjunta não evita o aumento da dívida dos
Estados. E o aumento da dívida pública é hoje uma questão central.
São inúmeros os apelos para que
os governos não olhem a esforços no combate aos efeitos económicos da crise
sanitária. O apelo é sensato: não é durante as crises que os Estados devem
poupar. Mas há um problema: sem financiamento monetário dos défices, ou
sem transferências financeiras a partir do exterior, tudo o que gastarmos hoje
teremos de pagar amanhã. Quanto mais generosos forem os Estados na protecção
das pessoas e das empresas afectadas pelas medidas de combate ao vírus, maior
será a restrição orçamental com que terão de viver no futuro.
Os países do Sul da Europa -
Portugal incluído - estavam já entre os mais frágeis antes do vírus, devido à
sua estrutura produtiva e à sua elevada dívida externa. Agora junta-se a queda
abrupta do sector do turismo de que tanto dependem (e que não será momentânea)
e uma dívida pública ainda maior.
Seriam necessárias três condições
para evitar o colapso das economias mais frágeis: uma resposta rápida das
autoridades; um volume de apoios públicos suficientemente elevado para proteger
o emprego e a actividade económica; e a garantia de que, passado o período de
emergência, as economias em causa teriam condições para pagar as dívidas
entretanto contraídas e para respeitar os compromissos internacionais, sem
dificuldades de maior.
A cada dia que passa há centenas
de empresários em Portugal que optam por declarar falência ou reduzir de forma
drástica a sua capacidade produtiva. Milhares de trabalhadores ficam sem
emprego e/ou vêem os seus rendimentos cair de forma abrupta. A urgência de uma
intervenção rápida e decisiva é evidente.
Mas o problema da UE no atual
contexto não é apenas a lentidão das decisões. Nem sequer as mensagens
equívocas das lideranças. A questão central é a incapacidade das instituições e
das regras europeias em impedir que o aumento das dívidas públicas devido ao
covid-19 se torne um problema colossal no futuro próximo para as economias mais
frágeis.
As medidas lançadas pelo BCE e a
eventual criação de dívida conjunta dos Estados ajudam a conter os custos
futuros do combate à crise. Mas, por si só, não asseguram que os países
periféricos estarão em condições de pagar essa dívida, cumprindo as regras
orçamentais em vigor. Não sem custos económicos, sociais e políticos elevados.
Perante isto, qualquer governo
responsável tem de ponderar bem cada euro gasto para proteger o emprego e a
capacidade produtiva. O resultado disto são intervenções nacionais tímidas, que
alimentam o cepticismo já instalado entre os investidores privados.
Neste momento, o BCE deveria
anunciar o financiamento monetário dos défices públicos decorrentes do combate
ao vírus. Em alternativa, as autoridades europeias deveriam comprometer-se com:
1) o financiamento dos Estados nacionais a custos muito reduzidos (através da
emissão de dívida conjunta ou de outras soluções possíveis); 2) a alteração das
regras orçamentais que hoje obrigam os Estados a reduções aceleradas das
dívidas públicas; 3) a emissão de dívida pelas próprias instituições europeias,
transferindo os fundos assim obtidos em função das necessidades nacionais; e 4)
o lançamento de um plano ambicioso de retoma económica após a emergência
sanitária.
Nenhuma daquelas alternativas se
afigura provável. Cada dia a mais sem decisões convincentes é mais um passo
para o desastre.
*Economista e professor do ISCTE.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.
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