Global Research, April 06, 2020
Agora, que a maior parte de nós,
em todo o mundo, fomos obrigados a estar naquilo que facilmente pode ser
descrito como prisão domiciliária, de repente temos imenso tempo para ler
livros, assistir a grandes filmes e ouvir música esplêndida.
Muitos de nós andam, há anos, a
repetir tristemente o mesmo: “se eu tivesse tempo…”
Agora temos imenso – imenso
tempo. O mundo parou. Está a acontecer algo horrível; algo que nunca quisemos
que ocorresse. Sentimo-lo, estamos aterrorizados, mas não sabemos exactamente o
que é. Não já, ainda não.
A ficção tornou-se realidade.
Albert Camus e a sua “Peste”. José Saramago e o seu “Ensaio Sobre a Cegueira”.
Não sabíamos que algo do género
podia acontecer; mesmo aqueles entre nós que não têm qualquer confiança na sabedoria
da civilização ocidental.
Ainda hoje, mais uma vez, leio os
mesmos argumentos que me fazem sentir arrepios na espinha sempre que os
repetem. E repetem-nos, de modo frequente agora, pelo menos na Europa. Ali,
nota-se que regressou o fascismo. Citando o Dr. Luboš Motl, físico teórico
checo, professor assistente na Universidade de Harvard entre 2004 e 2007:
“E acreditam que as estruturas
que lhes permitem sobreviver – os governos, os bancos e por aí fora – são
‘maléficas’. Alguns são só analfabetos financeiros. Mas outros estão cientes do
que afirmam e regozijam-se a exigir que se sacrifiquem triliões para evitar
numa proporção infinitésima a probabilidade de que alguém com mais de 90 anos
não seja infectado e viva um pouco mais. Não aceitam de todo quão dependentes
estão da sociedade e do sistema. Não percebem que os seus valores morais, os
seus ‘direitos humanos’, só existem se forem pagos por sociedades prósperas.”
Um doutor… Deus meu! Uma
“sociedade próspera” significa, como é óbvio, uma sociedade capitalista,
ocidental. Imperialismo, neo-colonialismo! Para pessoas como ele, é claro, as
vidas humanas não são todas iguais. O seu ‘valor’ depende da idade, e talvez da
raça?
Sempre foi assim, no Ocidente,
mas pelo menos era, de certa maneira, dissimulado. Agora está à vista. E tremo.
Não de medo, mas de repulsa. Definitivamente não quero viver no “mundo de
Motl”.
***
Mas regressemos ao tema central
desta peça.
Agora finalmente temos o
proverbial tempo para ler, para ver filmes e para ouvir música. Involuntariamente,
mas tempo não nos falta, seja como for. Temos também imenso tempo para pensar,
pensar e pensar.
O grande agora falecido escritor
uruguaio, ícone da esquerda, Eduardo Galeano, disse-me uma vez, no seu adorado
Café Brasileiro em Montevideu:
“Para podermos ser grandes
escritores, primeiro temos que ser grandes ouvintes.”
E devo acrescentar: e sermos
grandes leitores, observadores.
Só podemos produzir grandes
livros, filmes e ensaios, depois de ouvirmos o que milhares de pessoas dizem;
pessoas ricas e pobres, brilhantes e disparatadas. Depois de lermos centenas de
livros, e termos visto centenas de excelentes filmes.
É impossível mudar o mundo para
melhor, quando só se consumiu a pop e a pornografia mais baratas.
A minha mãe russa/chinesa,
pintora e arquitecta, sempre me disse, desde muito novo:
“Mesmo que te tornes num pintor
abstracto, não podes fugir ao mais básico: primeiro tens que aprender a
desenhar um rosto, um corpo humano. Tens que conhecer os clássicos, filosofia…
só então podes deixar-te levar pela fantasia.”
Agora, com a repulsiva era do
COVID-19, estamos todos sitiados.
É altura de nos pormos a par do
que andamos a negligenciar, no que diz respeito às absorções intelectuais.
Estamos sentados nos nossos
sofás, abrimos os portáteis, prontos a sacar grandes filmes e música e… e…
nada!
***
Vão à Netflix e tentem alugar
algo muito básico, como os filmes do brilhante cinema japonês da Nova Vaga.
Tentem assistir ao mais recente e incrível filme iraniano contemporâneo, ou a
alguma maravilhosa peça mestra checa como “No Telhado” [“Na Strese”], ou “A
Senhora Terrorista” (“Teroristka”, em checo).
Não conseguem.
Vão à Apple TV, e irão encontrar
o mesmo resultado, “quase nada”.
Claro, ainda podemos ver alguns
excelentes filmes internacionais se voarmos na Emirates, ou na Air France, mas
recorde-se, estamos sitiados.
Em pânico, corremos para o
YouTube, só para descobrir que caso falemos russo, checo, espanhol ou chinês,
podemos ver os melhores filmes desses países, a maior parte de graça, mas só na
sua língua original, sem legendas. Mas se quisermos partilhá-los com os nossos
amigos e familiares, que só dependem do inglês, só conseguimos encontrar
trailers e excertos curtos.
Quantas línguas dominam os meus
leitores? Eu compreendo 8, quanto muito 9. Como tal, não posso ver filmes em
vietnamita, chinês ou persa. Todas línguas com excelentes realizadores.
Países como a Rússia e a China
estão a disponibilizar os seus filmes clássicos, e para todos, ali, online. Mas
os EUA-RU censuram-nos e os distribuidores gananciosos asseguram-se de que
nunca os conseguiremos ver de graça, ou até mesmo por um certo valor, em inglês
ou com legendas em inglês.
É suposto vermos porcarias de
Hollywood, e sitcoms desdentadas e sobrevalorizadas da BBC. Não gosta? Azar!
A determinada altura, começamos a
procurar freneticamente outras formas de obter essas importantes formas de
arte.
Muitos, depois de várias e fúteis
tentativas, simplesmente desistem e começam a ver a merda que estiver
disponível.
Há anos e décadas, como um
castor, tenho vindo a acumular DVDs e CDs, de todo o mundo. Actualmente tenho
cerca de 800 CDs, entre a Ásia e a América Latina, e centenas de DVDs, até VHS.
Há uma razão para tal – e sempre
soube que haveria. Não confio no regime.
Nunca confiei nos formatos
electrónicos para filmes e música, ou em arquivar as minhas coisas numa
qualquer ‘nuvem’ e em pens, ou esperando que o que quero estivesse sempre
disponível através da Amazon, YouTube, Netflix, Apple TV e outros negócios
brutais.
Neste preciso momento, as minhas
previsões concretizaram-se: nem conseguimos ver “La Dolce Vita” de Fellini na
Apple TV! Ou, esquecendo os melhores filmes feitos por Pasolini, os primeiros
filmes (de realismo socialista) de Kurosawa, a Nova Vaga dos anos 30 de Xangai,
ou quase todas as obras mestras de Tarkovsky.
Sim, amealhei uma tremenda
cinemateca e discoteca, em todos os formatos.
Repito: pura e simplesmente não
confio no regime ocidental.
Principalmente agora, quando
tornar a população mundial cada vez mais burra, cada vez mais complacente, se
tornou, parece-me, no principal objectivo dos apparatchiks ocidentais.
Lembram-se de quando criaram
“zonas” para os DVDs? Foi só o princípio. O nosso planeta foi fragmentado, a
bem dos negócios e dos direitos de autor. Mas, na realidade, a razão era
completamente clara: não era suposto que as pessoas se compreendessem umas às
outras. Não era suposto que compreendessem de modo directo o modo como os
outros viam o mundo. Só os “hubs” de Londres, Nova Iorque ou Paris puderam
decidir e pré-mastigar como a parte conquistada da humanidade podia interagir
intelectual, cultural e ideologicamente.
***
Os livros; ó sim, os livros!
Não começaram a queimar livros,
ainda, como no romance “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury. Repito, ainda.
Mas o sistema assegurou-se de que
os livros com as mais ínfimas refutações no que toca ao sistema sejam de
difícil acesso ao público.
Escusado será dizer que me
assegurei de que contava com duas imensas bibliotecas pessoais, tanto na Ásia
como na América Latina.
Recordem, disseram-vos quão
‘anti-ecológica’ é a edição de livros em papel? Tem piada, nunca vos disseram
quão tóxicos são os tablets, os computadores e os telemóveis. O que também
nunca vos disseram é que quando começamos a depender exclusivamente de
livros electrónicos, essa torneira pode ser fechada, a qualquer altura, e que
quando o fizerem ficará sem acesso à informação.
Na Ásia e na América do Sul,
acumulei milhares de livros essenciais (e não tão essenciais). E sou co-editor
de uma pequena, mas vigorosa, editora, a Badak Merah (‘Rinoceronte Vermelho’).
E nunca concordei em publicar nenhum dos meus mais de 20 livros, em 35 línguas
até à data, em formato digital antes de serem primeiro editados em papel.
Actualmente, por paradoxal que
seja, a não ser que vivamos em Londres, Paris, Nova Iorque e também em Moscovo,
Pequim ou Havana, são poucas as probabilidades de obtermos os nossos livros de
eleição naquelas cadeias gigantescas de livrarias, pelo menos à primeira
tentativa.
Seremos bombardeados desde o momento
em que entramos na loja, com lixo, pop, e coisas de auto-ajuda, até que este
nos distraia de todos os temas sérios e essenciais.
Aliás, já nem estou certo de que
no Ocidente, hoje em dia, ainda seja possível construir uma grande biblioteca
pessoal do nada.
***
Contudo, é quase impossível
analisar “emergências” (tanto reais como ‘injectadas’) como o coronavírus, sem
consultar filósofos e os romancistas acima mencionados, como Saramago, Camus e
Bradbury.
Compreender os filósofos chineses
e russos seria algo muito útil para compreender porque é que estes países
obtiveram tanto sucesso a combater o vírus, e estão agora a auxiliar dezenas de
nações em todo o mundo; até mesmo aquelas que há anos os atormentam. Ler os
pensadores revolucionários e internacionalistas cubanos, também traria alguma
luz à actual situação.
Mas a probabilidade é de que tal
não lhe seja permitido.
Sim, as torneiras estão a fechar,
e os ocidentais assemelham-se cada vez mais a zombies ou, mais precisamente, ao
EIIL.
Em grande parte, não conseguem
obter livros cruciais que os fariam pensar, analisar e compreender. Mas na
maior parte do tempo, as pessoas já nem sequer têm qualquer vontade de ler, ver
ou ouvir coisas que os ajudem a compreender o que está a acontecer à sua volta.
Em vez de darem ouvidos a seres
humanos de todos os continentes, os indivíduos, principalmente aqueles que
vivem no Ocidente, só ouvem predominantemente coisas acerca deles próprios. É
uma espécie de interacção ao “estilo selfie” com o mundo.
Os indivíduos que vivem neste
tipo de ambiente, aprendem a aceitar ordens simples, a reagir sem pensar
demasiado e, acima de tudo, a obedecer.
Entretanto, aproxima-se o colapso
intelectual; ou já terá até chegado.
Agora, pessoas como eu,
apercebem-se de que já não lhes é permitido ler, assistir ou ouvir o que
querem. Mas pelo menos já ouvimos muita coisa, antes. E temos uma grande
munição de livros, filmes e música.
Ainda estamos a escrever sobre o
que está a acontecer.
Mas em breve, talvez muito em
breve, a vasta maioria dos indivíduos irá deixar sequer de se preocupar com
estas questões. Irão meramente aceitar: calar-se e aceitar, e ler, ver e ouvir
o que lhes empurrarem garganta abaixo. Ou, para utilizar uma nova terminologia
– irão entrar numa auto-quarentena, intelectual.
Se tamanho cenário se
concretizar, será irrelevante se o COVID-19 ou qualquer outra pandemia estiver
a destruir a nossa raça humana. Pois já não seria a raça humana.
É por essa razão que, neste
preciso momento, temos que defender todo e cada ser humano, cada vida, doente
ou saudável, mesmo que a pessoa tenha 90 ou 100 anos. E temos que defender os
grandes livros, obras e música, pois neles reside o nosso conhecimento, a nossa
humanidade, bem como a chave para a nossa sobrevivência.
Andre Vltchek*
Artigo em inglês:
Artigo publicado originalmente na
New Eastern Outlook
Tradução: Flávio Gonçalves
*Andre Vltchek é jornalista
de investigação, filósofo, romancista e cineasta. Já cobriu guerras e conflitos
em dezenas de países. Entre as suas obras encontramos estas quatro: China and
Ecological Civilization com John B. Cobb, Jr., Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o romance
revolucionário “Aurora” o e best seller de não ficção política, “Exposing Lies Of The Empire”. Pode consultar aqui as
restantes obras. Veja Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e
a República Democrática do Congo e o seu filme/diálogo com Noam Chomsky “On Western Terrorism”. Vltchek reside actualmente no
Oriente asiático e no Médio Oriente, continuando a trabalhar em todo o mundo.
Pode ser contactado através do seu portal, do seu Twitter e do
seu Patreon.
The original source of this
article is Global Research
Copyright © Andre Vltchek, Global Research, 2020
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