Teresa de Sousa | opinião
Para a Europa, trata-se hoje de
regressar às origens. Não é só uma questão de solidariedade. É de interesse
próprio
1. Já não é apenas um caso entre
António Costa e Mark Rutte ou o seu ministro das Finanças. Nem apenas um caso
entre os Países Baixos, de um lado, e a Itália e a Espanha, os dois países
europeus mais brutalmente fustigados pela pandemia, do outro. De repente, os
Países Baixos transformaram-se no lugar geométrico da prova de vida a que a
Europa e as suas democracias estão a ser sujeitas neste exacto momento da sua
história. O debate interno ameaça a coligação de governo. A pandemia aproxima o
sistema de saúde da ruptura. Ontem, diante do Parlamento da Haia, Rutte
anunciou a sua intenção de propor aos seus homólogos italiano e espanhol um
“fundo de emergência” para ajudar a cobrir os gastos imediatos dos países mais
afectados pela pandemia. O primeiro-ministro holandês lamentou não ter deixado
clara a sua solidariedade com eles. Voltou a rejeitar a emissão de “coronabonds”.
2. Comecemos pela situação
interna de um país que é um dos seis fundadores da Comunidade Europeia, um dos
seus membros mais ricos e mais influentes, com uma trajectória que acompanha a
da própria União. De país da tolerância e da abertura ao mundo, fortemente
europeísta, os Países Baixos têm vivido nos últimos anos uma profunda e
complexa transformação interna que fez deles um dos precursores da vaga de
populismo nacionalista que varreu a Europa, sobretudo a partir da crise
financeira de 2008-2009.
Começou antes dos outros, com o
malogrado Pin Fortuyn e o seu partido anti-imigrantes, assassinado em 2002;
continuou com Geert Wilders, um dos rostos mais conhecidos da extrema-direita
europeia; tem hoje a sua expressão mais exuberante no jovem académico Thierry
Baudet, que venceu as eleições para a Câmara Alta do Parlamento em Março do ano
passado. A sua bandeira é simples: “Dutch First.” Contra os imigrantes, contra
a Europa, contra o euro, apenas à espera de ver como decorre o “Brexit” para
propor que o seu país siga o mesmo caminho. Alguns analistas justificam a
intransigência muito pouco europeia de Mark Rutte com o receio de perder votos
para a extrema-direita. A fragmentação do espectro político foi outra das
consequências políticas da ascensão dos partidos populistas e nacionalistas um
pouco por toda Europa. Rutte governa o país à frente de uma coligação de quatro
partidos.
3. Não foram apenas as vozes dos
banqueiros centrais holandeses que se ergueram contra as declarações do
ministro das Finança. São hoje públicas as críticas de dois dos parceiros de
coligação liderada pelos liberais de Mark Rutte. “A Itália está em ruínas. No
que me diz respeito, a primeira mensagem devia ser: nós vamos ajudar-vos”, diz
Gert-Jan Segers, líder da União Cristã, citado pelo Financial Times. Não foi ao
ponto de defender a emissão de dívida conjunta, mas apelou a um Plano Marshall
para as economias do Sul. Rob Jetten, líder do D66, outro dos partidos da
coligação, foi um pouco mais duro: “A mentalidade de contabilista do país
ameaça transformar-se num desastre diplomático.” O líder do Partido
Trabalhista, na oposição, lembrou, por seu turno, que se está a dar o sinal
errado aos países que reconquistaram duramente a confiança dos mercados
financeiros depois de anos de austeridade. Rutte não conseguiu isolar o
episódio que envolveu o seu ministro das Finanças.
O debate está instalado e não
escapa à questão dos eurobonds, arrastando consigo outras velhas questões que
dividem os europeus. Doze políticos italianos, entre os quais os presidentes
das câmaras de Milão, Bérgamo, Veneza e Génova, acabam de publicar uma carta no
diário alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung, classificando a posição da Haia
como “desprovida de o mínimo de ética ou solidariedade” e acusando os Países Baixos
de terem uma política fiscal cujo objectivo é “desviar para si os impostos das
grandes empresas dos seus parceiros europeus”, numa referência ao número
elevado de multinacionais que aí instalam as suas sedes, beneficiando de
impostos mais baixos.
4. Na frente europeia, as coisas
também não são simples. Por mais surpreendente que hoje possa agora parecer,
eram boas as relações entre Mark Rutte e António Costa, ao ponto de se terem
conseguido entender sobre um instrumento orçamental próprio da zona euro. No
Conselho Europeu da passada quinta-feira, perante as divisões insanáveis em
torno de uma resposta comum à crise pandémica, o primeiro-ministro português
teve o cuidado de não acicatar os ânimos, acabando por facilitar a vida à
chanceler alemã no seu esforço bem-sucedido para evitar uma ruptura que chegou
a estar iminente.
O problema não ficou resolvido,
mas apenas adiado para a reunião do Eurogrupo, a 7 de Abril. Ganhou-se algum
tempo para continuar o debate e mudar de perspectiva. Até porque os “coronabonds”
não são uma mera questão económica ou técnica, que pode ser debatida apenas em
torno da possibilidade de ser posta em prática a tempo, ou da sua eficácia na
resposta à crise, em comparação com outros instrumentos à disposição da União.
São uma questão política fundamental.
A Europa vai — ou não — combater
junta esta pandemia e enfrentar junta a reconstrução económica e social, que
partirá de um nível de destruição cuja dimensão ninguém ainda consegue avaliar
a não ser que será devastadora? O “fundo de emergência” de que Rutte falou
agora pode ajudar no imediato, mas não resolve o problema da reconstrução.
Para a Europa, trata-se hoje de
regressar às origens. Partilhar soberania para quê? Para evitar novas guerras.
Para acelerar a reconstrução do pós-guerra. Para garantir a segurança perante a
ameaça soviética. Para enfrentar um mundo que se move em sentido contrário. Para
enfrentar uma tempestade considerada a maior desde a II Guerra? Nunca este
regresso às origens terá feito tanto sentido. É por isso que a questão
ultrapassa largamente a tradicional divisão entre Norte e Sul. Atravessa a
Holanda como atravessa a Alemanha.
Há dois dias, sete economistas
sobejamente conhecidos em Berlim (seis alemães e um austríaco) propuseram a
emissão de um bilião de euros de “crisisbonds” (o equivalente a 8% do PIB da
zona euro) como forma de financiar a longo prazo os países que vão ter maiores dificuldades
de financiamento nos mercados depois da crise. O argumento já foi sobejamente
repetido: evitar que os mercados financeiros voltem a avaliar os países do euro
de forma diferenciada, cobrando muito a uns e premiando outros. Foi o que aconteceu
depois da crise financeira de 2008. Será difícil de imaginar que a Europa e o
euro resistam a um cenário igual. “Se o Sul se afundar, o Norte opulento
deixará de existir”, disse o antigo governador do Banco Central dos Países
Baixos Nout Wellink. Não é só uma questão de solidariedade. É de interesse
próprio. Esta pandemia mudou tudo.
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