sexta-feira, 24 de abril de 2020

Portugal | 24 HORAS


Miguel Guedes | Jornal de Notícias | opinião

Hoje seria uma curiosa data de encerramento. A divisão artificialmente criada à volta da realização da cerimónia do 25 de Abril no Parlamento fez desta data uma arma de arremesso e de viral joguete político.

Compreendamos este triste serviço à democracia no contexto do vírus do cansaço e da inércia. Apesar de diplomas a fio votados em interminável sequência-linha-bingo como se de sortido húngaro se tratasse, a pandemia teve o condão de aliviar clivagens entre partidos, entre Governo e Oposição, moderando os habituais arremessos retóricos entre deputados. Entretanto, neste esforço colectivo para o bem comum, instalou-se o nervosismo da perfídia e da avidez. Como fazer oposição quando o país exige moderação, união reforçada, sentido crítico com confiança nos decisores e os maiores consensos?

Ao contrário do exemplo de responsabilidade da maioria dos partidos com assento parlamentar, alguns encontraram a oportunidade para marcar território em tempos de confinamento e de contenção partidária, admitindo que a Oposição se pode fazer com todas as armas, como se marchassem sem senha para o 24. É difícil compreender como é possível exigir que o mesmo Parlamento que sempre esteve limitado mas aberto com contenção, especiais cuidados e rigor para debater e aprovar as medidas do estado de emergência, deva encerrar categoricamente no momento em que lembramos, com a mesma contenção, especiais cuidados e rigor, o dia da Liberdade. Um puro, mas perigoso, exercício de demagogia.

A demagogia que se aproveita das fragilidades é crime sem castigo mas que deixa marcas. Divisora pelo aproveitamento, tantas vezes joga com o que de mais íntimo mantém as pessoas unidas, sólidas de esperança e com convicções para resistir, viver o presente e fazer futuro. Comparar a cerimónia de homenagem ao 25 de Abril com a impossibilidade colectiva de ver e abraçar familiares e amigos ou com a tristeza ilimitada de alguns por não se terem podido despedir condignamente dos seus entes queridos no momento da morte, é um exercício sabujo que parece querer fotografar a cerimónia da liberdade na Assembleia da República como se de uma festa com bar aberto se tratasse.

O espírito não é de comemoração, muito menos neste tempo. Trata-se de honrar a memória, mais do que nunca, um imperativo dos dias. Apesar de vermos algumas máscaras cirúrgicas a cair, ser contra ou a favor da cerimónia da Revolução no Parlamento não acantona, neste contexto, fascistas e democratas em lados opostos. Não entrincheira ninguém, nem dá lições fáceis de democracia. Mas há uma falta de pudor ilimitado na argumentação de quem pretende encerrar o Parlamento, apelando ao sabor das circunstâncias trágicas individuais para ganhar território político e disso retirar dividendos.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

*Músico e jurista

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