Miguel Guedes | Jornal de Notícias
| opinião
Hoje seria uma curiosa data de
encerramento. A divisão artificialmente criada à volta da realização da
cerimónia do 25 de Abril no Parlamento fez desta data uma arma de arremesso e
de viral joguete político.
Compreendamos este triste serviço
à democracia no contexto do vírus do cansaço e da inércia. Apesar de diplomas a
fio votados em interminável sequência-linha-bingo como se de sortido húngaro se
tratasse, a pandemia teve o condão de aliviar clivagens entre partidos, entre
Governo e Oposição, moderando os habituais arremessos retóricos entre
deputados. Entretanto, neste esforço colectivo para o bem comum, instalou-se o
nervosismo da perfídia e da avidez. Como fazer oposição quando o país exige
moderação, união reforçada, sentido crítico com confiança nos decisores e os
maiores consensos?
Ao contrário do exemplo de
responsabilidade da maioria dos partidos com assento parlamentar, alguns
encontraram a oportunidade para marcar território em tempos de confinamento e
de contenção partidária, admitindo que a Oposição se pode fazer com todas as
armas, como se marchassem sem senha para o 24. É difícil compreender como é
possível exigir que o mesmo Parlamento que sempre esteve limitado mas aberto
com contenção, especiais cuidados e rigor para debater e aprovar as medidas do
estado de emergência, deva encerrar categoricamente no momento em que
lembramos, com a mesma contenção, especiais cuidados e rigor, o dia da
Liberdade. Um puro, mas perigoso, exercício de demagogia.
A demagogia que se aproveita das
fragilidades é crime sem castigo mas que deixa marcas. Divisora pelo
aproveitamento, tantas vezes joga com o que de mais íntimo mantém as pessoas
unidas, sólidas de esperança e com convicções para resistir, viver o presente e
fazer futuro. Comparar a cerimónia de homenagem ao 25 de Abril com a
impossibilidade colectiva de ver e abraçar familiares e amigos ou com a
tristeza ilimitada de alguns por não se terem podido despedir condignamente dos
seus entes queridos no momento da morte, é um exercício sabujo que parece
querer fotografar a cerimónia da liberdade na Assembleia da República como se
de uma festa com bar aberto se tratasse.
O espírito não é de comemoração,
muito menos neste tempo. Trata-se de honrar a memória, mais do que nunca, um
imperativo dos dias. Apesar de vermos algumas máscaras cirúrgicas a cair, ser
contra ou a favor da cerimónia da Revolução no Parlamento não acantona, neste
contexto, fascistas e democratas em lados opostos. Não entrincheira ninguém,
nem dá lições fáceis de democracia. Mas há uma falta de pudor ilimitado na
argumentação de quem pretende encerrar o Parlamento, apelando ao sabor das
circunstâncias trágicas individuais para ganhar território político e disso
retirar dividendos.
O autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico e jurista
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