quinta-feira, 30 de abril de 2020

Portugal | Austeridade: uma discussão semântica


Anselmo Crespo | TSF | opinião

Do latim austeritas. Qualidade ou característica do que é austero. Rigor, severidade. O dicionário podia ajudar a resolver de vez uma discussão enviesada sobre um futuro que já está presente na vida de quase todos por estes dias. Direta ou indiretamente, não há português que, neste momento, não esteja a sentir os efeitos de uma austeridade que foi imposta pela pandemia. O que não significa que não haja uma discussão política profunda a fazer.

A força com que os Estados puxaram o travão de mão da economia teve o efeito de um choque em cadeia: a paragem de algumas empresas provocou o encerramento de outras e, consequentemente, atirou milhões de trabalhadores borda fora: uns para o lay-off - no melhor cenário -; outros para o desemprego; outros ainda para a pobreza, que é o grau zero num mundo civilizado.

Mas o choque não acaba aqui. No fim da linha, o enorme aumento da despesa que tudo isto representa para o Estado só pode encontrar resposta no endividamento público. E as dívidas, por definição, têm de ser pagas. Se o Estado somos nós, quem é que acham que vai receber a fatura?

Ultrapassada - e justificada - esta fase de emergência em que os Governos tiveram de se comportar como bombeiros apanhados no meio das chamas e se viram obrigados a despejar dinheiro para a economia, o salve-se quem puder vai ter de acabar. A forma artificial como muitas empresas estão a funcionar não só não é sustentável como representa um fardo demasiado pesado e injusto para toda a gente, a começar pelos trabalhadores que estão a financiar os seus próprios postos de trabalho, uns através do lay-off - o Estado somos nós -, outros através do corte de salários.

A resposta - ou a falta dela - que a União Europeia der a esta crise será absolutamente determinante. Vai ser preciso acelerar as rotativas e injetar muito dinheiro na economia. Vai ser preciso decidir se esse dinheiro é a fundo perdido ou será concedido em forma de empréstimos futuros. Mas vai ser preciso, sobretudo, um plano - coisa rara na Europa da última década. Um plano político e económico que utilize esta crise como trampolim para fazer renascer o velho continente e que aproveite para acabar com vários vícios do passado.

É agora que vamos ver se há adultos na sala. Se quem está aos comandos nesta Europa em definhamento - muito antes da pandemia - está à altura do desafio. É agora que a política é absolutamente determinante para desenhar uma estratégia e para acabar com a ditadura dos mercados, das agências de rating e de uma economia fictícia assente em dívida. É agora a oportunidade para acabar com a manipulação de dois ou três grandes players do setor financeiro, que são a maior central de empregos de ex-governantes. É agora que os vários Estados-membros têm de dizer se querem estar dentro ou estar fora.

Não é exagero dizer que é a sobrevivência da União Europeia que está em causa. Não é exagero imaginar que, depois de uma crise de saúde pública, a Europa corre o risco de mergulhar numa profunda recessão económica e social, que a faça retroceder civilizacionalmente. Não é exagero pensar que cada brecha que ficar aberta depois desta pandemia será imediatamente aproveitada pelo extremo-oportunismo dos populistas que estão a ganhar terreno em Itália, em França, em Espanha, na Alemanha, na Holanda e também em Portugal.

É também por tudo isto que Portugal precisa de uma nova estratégia. Política, económica e social. Que dependerá sempre da estratégia europeia, mas que não se esgota aí. Se esta crise não servir para começarmos do zero e delinearmos um plano de médio/longo prazo, que não assente apenas no turismo, nos serviços e no consumo interno, então esta vai ser uma oportunidade perdida. Se esta crise não servir para os partidos políticos perceberem que o Estado nunca será sustentável se continuar a alimentar-se de dívida e de impostos, então nada de bom sairá desta crise.

É por isso que a discussão sobre a austeridade é tão risível. Se aos impostos futuros, ao desemprego, à perda de rendimentos e à degradação dos serviços públicos queremos chamar austeridade ou outra coisa qualquer, é absolutamente indiferente. Chamem-lhe Joaquim, que vai dar no mesmo. A austeridade, a crise, a perda de rendimentos são consequências óbvias de qualquer crise. A pergunta que valerá a pena fazer é se, sobrevivendo a isto, a seguir, vamos conseguir viver. E não apenas sobreviver.

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