Pedro
Tadeu* | Plataforma | opinião
O
governo dos Estados Unidos, assim que soube da relativa eficácia do medicamento Remdesivir para
a diminuição dos sintomas da Covid-19 e do efeito que ele tem na aceleração da
recuperação dos doentes, comprou à farmacêutica Gilead, que o fabrica em
exclusivo, praticamente todo o stock disponível para os próximos três meses.
Já
a meio de março passado vários governantes alemães comentaram, com indignação,
uma notícia que garantia ter o governo norte-americano oferecido mil milhões de
dólares à farmacêutica
alemã CureVac, para esta lhe dar o exclusivo da vacina para a Covid-19, que
está para testar.
A
notícia acabaria por ser desmentida pela empresa e pela diplomacia
norte-americana, mas muitos desconfiam que a mentira está no desmentido, não na
informação original.
Mais
significativo ainda: mesmo que a alegada tentativa, por Donald Trump, de
obtenção de exclusivo mundial da vacina para a Covid-19 tenha sido uma mentira,
a verdade é que tantos acharam ser isso possível que quase parece ser natural,
previsível ou aceitável esperar que os Estados Unidos usem a força do dinheiro
para açambarcarem qualquer medicamento que livre da pandemia o país mais
poderoso do planeta, mesmo se o resto do mundo ficar a contar mortos, sem
acesso ao fármaco.
Mas
antes de começarmos o ritual da indignação, há que perguntar: podemos criticar
o presidente dos Estados Unidos, ou de qualquer outro país, por tudo fazer para
tentar salvar vidas do seu povo e para se estar nas tintas para as outras
nações?…
Coloco-me
no lugar do outro: se eu fosse primeiro-ministro de Portugal, ou governasse a
cidade de Lisboa ou, apenas, presidisse a uma pequena junta de freguesia,
tentaria qualquer coisa posta ao meu alcance para livrar “os meus” da doença.
Só depois pensava nas outras freguesias, nas outras cidades, nos outros países,
no resto do mundo.
Quando
a questão é, apenas, escolher entre vida ou morte, a solidariedade não é
prioridade – é essa certeza, aliás, a definir normalmente a separação entre
humanidade e santidade.
Não
é, portanto, desumano o egoísmo que nos leva a tentar salvar a vida de quem nos
está mais próximo, mesmo se isso implicar a consequência da diminuição das
hipóteses de sobrevivência de quem nos está distante. Mas isso não impede que
haja uma injustiça desumana no simples facto de tal hipótese ser colocada.
Sim,
é desumano ser possível, neste mundo, um país poder açambarcar medicamentos e
deixar à míngua todos os outros.
Sim,
é desumano ser possível, neste mundo, a posse de dinheiro decidir a
possibilidade de sobrevivência a um ataque de um vírus.
Sim,
é desumano ser possível, neste mundo, que a utilização do Remdesivir, que nem
sequer cura os doentes da Covid-19, apenas melhora a recuperação dos que se
conseguem curar, só esteja acessível a quem possa pagar, mais ou menos, 2000
euros por doente.
Sim,
é desumano ser possível, neste mundo, que a estimativa mais barata que se
encontra para o preço da futura vacina ao novo coronavírus ronde os 150 dólares
por dose – como, em 50 países do mundo, o rendimento médio mensal por pessoa
não chega a esse valor, é previsível que nesses lugares as pessoas não se
possam vacinar.
Sim,
é desumana a forma como organizamos, investigamos, patenteamos, comercializamos
e distribuímos os medicamentos no mundo.
Que
vai ser da Índia, o segundo país mais populoso do planeta, com mais de mil
milhões de pessoas, onde, em média, cada indivíduo ganha menos dinheiro num mês
do que vai precisar para pagar a vacina?
Que
vai ser de São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Moçambique, países de língua
oficial portuguesa, onde esse abismo entre o rendimento e o custo para pagar a
saúde se repete?
A
cura da Covid-19 vai ser só para os ricos, para pessoas ou países que podem
aceitar pagar os preços das farmacêuticas? Sim, pelo menos numa primeira fase,
infelizmente, não acredito que seja de outra maneira… E os que, de nós, tiverem
a sorte, do seu bolso ou através do Estado, de conseguirem obter a vacina, não
vão ter peso na consciência. Eu próprio, quase de certeza, não terei – e isso é
lamentável.
*Jornalista
– Portugal
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