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e publicado em português do Brasil
As
leis de patentes da maioria dos países e a Declaração de Doha de 2001 da
Organização Mundial do Comércio (OMC) são claras sobre o licenciamento
compulsório durante uma emergência de saúde ou uma epidemia.
José Carlos Ruy, em
São Paulo | Tornado
Os
EUA compraram quase todo o estoque do medicamento Remdesivir da farmacêutica
Gilead, tornando quase impossível que esse medicamento para Covid-19 esteja
disponível em qualquer outro lugar do mundo. Depois de deixar os EUA adoecerem,
Trump tenta compensar o fracasso de seu governo comprando a produção de Gilead
pelos próximos três meses, não deixando nada para o resto do mundo.
Isso
torna tudo mais urgente para a Índia e outros países que se destacaram em lutas
anteriores com leis de patentes de medicamentos contra as grandes farmacêuticas
nos EUA e em todo o mundo por mais de uma década para quebrar a patente de
Gilead e emitir licenças obrigatórias para fabricar o medicamento em seus
países. As leis de patentes da maioria dos países e a Declaração de Doha de
2001 da Organização Mundial do Comércio (OMC) são claras sobre o licenciamento
compulsório durante uma emergência de saúde ou uma epidemia. A Covid-19
obviamente se qualifica em ambos os requisitos.
Em
1º de julho, os EUA atingiu o ponto de mais de 50 mil novos casos de Covid-19
num único dia, cerca de 23% dos 218 mil novos casos em todo o mundo naquele
dia, tornando-o líder global em como não combater a epidemia da Covid-19. Em 1º
de julho, Brasil e Índia estavam em segundo e terceiro lugar, respectivamente,
para novos casos.
Mas
se o Remdesivir reduz o período infeccioso, além de ser benéfico para os
pacientes que o recebem, também é útil para a sociedade. Ao reduzir o período
infeccioso do paciente, reduz a taxa de transmissão do vírus.
Argumentei
anteriormente que, após a batalha pelo acesso a medicamentos baratos contra a
Aids, a próxima grande batalha seria travada com medicamentos e vacinas contra
a Covid-19. Na Assembleia Mundial da Saúde, os EUA foram o único país que se
opôs à decisão de que todos os medicamentos e vacinas deveriam ser colocados em
um conjunto comum de patentes e acessível a todos os países a custos razoáveis.
Agora
sabemos o motivo da oposição dos EUA – manter o controle sobre medicamentos e
vacinas para combater a pandemia. Uma razão é fazer com que nos EUA os cidadãos
percebam que Trump cuida deles garantindo medicamentos, mesmo que seu governo
tenha falhado miseravelmente na luta contra a Covid-19. A segunda razão é que,
controlando o medicamento para o resto do mundo, Trump pode negociar e tentar
recuperar o status de hegemonia global que os EUA você perdeu.
Com
esta etapa, os EUA também deixaram clara sua intenção com relação às vacinas
Covid-19. Os EUA apoiaram um conjunto de cinco empresas usando cerca de US$ 13
bilhões, como parte de sua Operação Warp Speed para
apoiar o desenvolvimento de vacinas. Um desses cinco monopólios é a Moderna,
uma empresa estadunidense de biotecnologia, pioneira nos atuais testes de
vacinas. As outras quatro empresas apoiadas pelos EUA são AstraZeneca (em consórcio com a Universidade de
Oxford); Johnson & Johnson; Merck; e Pfizer/BioNTech.
Se
alguma dessas vacinas tiver êxito e outras não, pode-se esperar que os EUA
guardarão a vacina, como faz com o medicamento para Covid-19, no caso do Remdesivir.
Felizmente para o mundo, há um total de 17 vacinas na lista de experiências
clínicas em andamento na Organização Mundial da Saúde (OMS) e outras 132 em
pesquisa.
Além
dos EUA comprando quase todo o estoque de Remdesivir, a outra questão para
tornar o Remdesivir acessível a quem precisa é o preço cobrado pela Gilead.
O
custo para os pacientes é de cerca de US$ 3 mil para um tratamento típico de
cinco dias (que consiste em seis frascos do medicamento – dois no primeiro dia
e um por dia depois disso). A Gilead concedeu algumas licenças a fabricantes de
medicamentos em outros países – incluindo três empresas indianas, Cipla, Hetero
e Jubilant – para vender Remdesivir genérico. Isso significa que um tratamento
completo de Remdesivir para pacientes indianos custará cerca de US$ 400 (a US$
66 por frasco, para seis frascos).
Qual
é o custo real do Remdesivir? De acordo com um artigo no Journal of Virus
Eradication, em abril, o ingrediente ativo para o tratamento de um dia não deve
custar mais de US$ 1. Se somarmos a isso o custo de fazê-lo no tempo típico de
cinco dias, de seis injeções, o custo total não deveria ser superior a US$ 6.
Por
que um tratamento completo com Remdesivir, que custa menos de US$ 10 para ser
produzido, custa US$ 3 mil, ou 300 vezes o custo de produção nos EUA? Mesmo ao
preço de concessão da Gilead (US$ 400) para a Índia, ainda é 40 vezes o custo
de sua produção! O argumento de Gilead é que, porque seu medicamento reduz o
tempo de hospitalização, leva à economia de US$ 12 mil para os pacientes com
Covid-19 em contas hospitalares – e cobrando apenas um quarto disso, mesmo que
seja 300 vezes o custo de produção, a Gilead está fazendo um grande favor aos
clientes.
Como
sabemos pelos resultados das pesquisas clínicas, o Remdesivir combate o vírus,
mas se o paciente ficar gravemente doente, o remédio não terá um impacto
estatisticamente significativo nas taxas de mortalidade. Se o fizesse,
provavelmente o preço da Gilead teria levado em consideração os ganhos da vida
economizados pelo Remdesivir, e provavelmente teria sido até 10 vezes mais
alto!
Mas
mesmo que o Remdesivir se torne significativamente mais barato, é incerto que
possa chegar a países fora dos EUA, graças ao plano de comprar quase todo o
estoque da Gilead. Então, o que o resto do mundo pode fazer? Pode ser
necessário se preparar para travar uma longa batalha, como a Índia e outros
países fizeram durante a epidemia de Aids contra os EUA. e seus aliados no
cartel de drogas como Suíça, França, Reino Unido e Alemanha.
As
grandes empresas farmacêuticas avaliaram os medicamentos contra a AIDS em torno
de US$ 10 mil a US$ 15 mil por um ano de tratamento nos EUA e Europa, e o preço
“concessional” de US$ 4 mil para os países pobres. As empresas indianas estavam
fabricando a versão genérica desses medicamentos por uma fração desse preço,
mas os países que queriam importar da Índia medicamentos contra a Aids
enfrentaram ações judiciais e pressão política dos EUA.
Foi
uma batalha travada por quase uma década. Na Rodada de Doha da Organização
Mundial do Comércio (OMC), em 2001,
a Declaração de Doha aceitou que, em caso de uma
emergência de saúde ou epidemia, qualquer país tem o direito de emitir uma
licença obrigatória para a produção de medicamentos para salvar vidas. E a
licença para produzir o medicamento poderia ser emitida mesmo para uma empresa
fora das fronteiras do país.
A
fabricante indiana de medicamentos genéricos Cipla poderia então fornecer os
medicamentos contra a Aids a US$ 350 ao ano para vários países, que de outra
forma ficariam completamente falidos pelos preços mais altos dos medicamentos
patenteados – ou então veriam seus pacientes com Aids morrerem em grande número
sem medicação.
A
vitória para garantir medicamentos genéricos baratos para a Aids estabelece um
precedente para a atual pandemia. A Covid-19 já matou cerca de meio milhão e
infectou mais de 10 milhões. Ninguém pode contestar que é uma emergência de
saúde e uma pandemia.
A
permissão de uso de uma licença compulsória já existe na maioria das leis de
patentes dos países e na Declaração de Doha. Por que, então, outros países não
iniciam a fabricação do Remdesivir? Eles esperam que Gileade e os EUA se
comportarão melhor do que antes, na epidemia de Aids? Ou têm medo da ameaça de
sanções retaliatórias dos EUA?
Todo
ano, nos EUA, o Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR) emite um
Relatório Especial que usa para ameaçar sanções comerciais contra países. A
Índia figura com destaque neste relatório ano após ano, por emitir uma licença
compulsória em 2012 para a Natco vender o Nexavar por menos de 3% do preço da
Bayer, que supera US$ 65 mil por ano.
Depois
que a Índia emitiu a licença compulsória para o Nexavar, Marijn Dekkers,
executivo da Bayer, disse: “Não desenvolvemos este medicamento para os indianos.
Desenvolvemos para pacientes ocidentais que podem pagar”.
Em
abril, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi cedeu sob a ameaça de Trump e
exportou hidroxicloroquina para os EUA, mesmo estando sob proibição de
exportação na época. Ele – e os líderes de outros países – estarão dispostos a
enfrentar os EUA em relação ao Remdesivir? Ou eles concordam com Trump que o
Remdesivir deve ser reservado apenas para pacientes dos EUA, mesmo que tenham
capacidade de produzi-lo?
Prabir Purkayastha, Engenheiro, ativista científico, presidente do Movimento de
Software Livre na Índia e editor do Newsclick | Texto em
português do Brasil, com tradução de José Carlos Ruy
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