domingo, 19 de julho de 2020

Monopólios farmacêuticos não combatem a Covid-19


#Escrito e publicado em português do Brasil

As leis de patentes da maioria dos países e a Declaração de Doha de 2001 da Organização Mundial do Comércio (OMC) são claras sobre o licenciamento compulsório durante uma emergência de saúde ou uma epidemia.


Os EUA compraram quase todo o estoque do medicamento Remdesivir da farmacêutica Gilead, tornando quase impossível que esse medicamento para Covid-19 esteja disponível em qualquer outro lugar do mundo. Depois de deixar os EUA adoecerem, Trump tenta compensar o fracasso de seu governo comprando a produção de Gilead pelos próximos três meses, não deixando nada para o resto do mundo.

Isso torna tudo mais urgente para a Índia e outros países que se destacaram em lutas anteriores com leis de patentes de medicamentos contra as grandes farmacêuticas nos EUA e em todo o mundo por mais de uma década para quebrar a patente de Gilead e emitir licenças obrigatórias para fabricar o medicamento em seus países. As leis de patentes da maioria dos países e a Declaração de Doha de 2001 da Organização Mundial do Comércio (OMC) são claras sobre o licenciamento compulsório durante uma emergência de saúde ou uma epidemia. A Covid-19 obviamente se qualifica em ambos os requisitos.

Em 1º de julho, os EUA atingiu o ponto de mais de 50 mil novos casos de Covid-19 num único dia, cerca de 23% dos 218 mil novos casos em todo o mundo naquele dia, tornando-o líder global em como não combater a epidemia da Covid-19. Em 1º de julho, Brasil e Índia estavam em segundo e terceiro lugar, respectivamente, para novos casos.

Mas se o Remdesivir reduz o período infeccioso, além de ser benéfico para os pacientes que o recebem, também é útil para a sociedade. Ao reduzir o período infeccioso do paciente, reduz a taxa de transmissão do vírus.


Argumentei anteriormente que, após a batalha pelo acesso a medicamentos baratos contra a Aids, a próxima grande batalha seria travada com medicamentos e vacinas contra a Covid-19. Na Assembleia Mundial da Saúde, os EUA foram o único país que se opôs à decisão de que todos os medicamentos e vacinas deveriam ser colocados em um conjunto comum de patentes e acessível a todos os países a custos razoáveis.

Agora sabemos o motivo da oposição dos EUA – manter o controle sobre medicamentos e vacinas para combater a pandemia. Uma razão é fazer com que nos EUA os cidadãos percebam que Trump cuida deles garantindo medicamentos, mesmo que seu governo tenha falhado miseravelmente na luta contra a Covid-19. A segunda razão é que, controlando o medicamento para o resto do mundo, Trump pode negociar e tentar recuperar o status de hegemonia global que os EUA você perdeu.

Com esta etapa, os EUA também deixaram clara sua intenção com relação às vacinas Covid-19. Os EUA apoiaram um conjunto de cinco empresas usando cerca de US$ 13 bilhões, como parte de sua Operação Warp Speed ​​para apoiar o desenvolvimento de vacinas. Um desses cinco monopólios é a Moderna, uma empresa estadunidense de biotecnologia, pioneira nos atuais testes de vacinas. As outras quatro empresas apoiadas pelos EUA são AstraZeneca (em consórcio com a Universidade de Oxford); Johnson & Johnson; Merck; e Pfizer/BioNTech.

Se alguma dessas vacinas tiver êxito e outras não, pode-se esperar que os EUA guardarão a vacina, como faz com o medicamento para Covid-19, no caso do Remdesivir. Felizmente para o mundo, há um total de 17 vacinas na lista de experiências clínicas em andamento na Organização Mundial da Saúde (OMS) e outras 132 em pesquisa.

Além dos EUA comprando quase todo o estoque de Remdesivir, a outra questão para tornar o Remdesivir acessível a quem precisa é o preço cobrado pela Gilead.

O custo para os pacientes é de cerca de US$ 3 mil para um tratamento típico de cinco dias (que consiste em seis frascos do medicamento – dois no primeiro dia e um por dia depois disso). A Gilead concedeu algumas licenças a fabricantes de medicamentos em outros países – incluindo três empresas indianas, Cipla, Hetero e Jubilant – para vender Remdesivir genérico. Isso significa que um tratamento completo de Remdesivir para pacientes indianos custará cerca de US$ 400 (a US$ 66 por frasco, para seis frascos).

Qual é o custo real do Remdesivir? De acordo com um artigo no Journal of Virus Eradication, em abril, o ingrediente ativo para o tratamento de um dia não deve custar mais de US$ 1. Se somarmos a isso o custo de fazê-lo no tempo típico de cinco dias, de seis injeções, o custo total não deveria ser superior a US$ 6.

Por que um tratamento completo com Remdesivir, que custa menos de US$ 10 para ser produzido, custa US$ 3 mil, ou 300 vezes o custo de produção nos EUA? Mesmo ao preço de concessão da Gilead (US$ 400) para a Índia, ainda é 40 vezes o custo de sua produção! O argumento de Gilead é que, porque seu medicamento reduz o tempo de hospitalização, leva à economia de US$ 12 mil para os pacientes com Covid-19 em contas hospitalares – e cobrando apenas um quarto disso, mesmo que seja 300 vezes o custo de produção, a Gilead está fazendo um grande favor aos clientes.

Como sabemos pelos resultados das pesquisas clínicas, o Remdesivir combate o vírus, mas se o paciente ficar gravemente doente, o remédio não terá um impacto estatisticamente significativo nas taxas de mortalidade. Se o fizesse, provavelmente o preço da Gilead teria levado em consideração os ganhos da vida economizados pelo Remdesivir, e provavelmente teria sido até 10 vezes mais alto!

Mas mesmo que o Remdesivir se torne significativamente mais barato, é incerto que possa chegar a países fora dos EUA, graças ao plano de comprar quase todo o estoque da Gilead. Então, o que o resto do mundo pode fazer? Pode ser necessário se preparar para travar uma longa batalha, como a Índia e outros países fizeram durante a epidemia de Aids contra os EUA. e seus aliados no cartel de drogas como Suíça, França, Reino Unido e Alemanha.

As grandes empresas farmacêuticas avaliaram os medicamentos contra a AIDS em torno de US$ 10 mil a US$ 15 mil por um ano de tratamento nos EUA e Europa, e o preço “concessional” de US$ 4 mil para os países pobres. As empresas indianas estavam fabricando a versão genérica desses medicamentos por uma fração desse preço, mas os países que queriam importar da Índia medicamentos contra a Aids enfrentaram ações judiciais e pressão política dos EUA.

Foi uma batalha travada por quase uma década. Na Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, a Declaração de Doha aceitou que, em caso de uma emergência de saúde ou epidemia, qualquer país tem o direito de emitir uma licença obrigatória para a produção de medicamentos para salvar vidas. E a licença para produzir o medicamento poderia ser emitida mesmo para uma empresa fora das fronteiras do país.

A fabricante indiana de medicamentos genéricos Cipla poderia então fornecer os medicamentos contra a Aids a US$ 350 ao ano para vários países, que de outra forma ficariam completamente falidos pelos preços mais altos dos medicamentos patenteados – ou então veriam seus pacientes com Aids morrerem em grande número sem medicação.

A vitória para garantir medicamentos genéricos baratos para a Aids estabelece um precedente para a atual pandemia. A Covid-19 já matou cerca de meio milhão e infectou mais de 10 milhões. Ninguém pode contestar que é uma emergência de saúde e uma pandemia.

A permissão de uso de uma licença compulsória já existe na maioria das leis de patentes dos países e na Declaração de Doha. Por que, então, outros países não iniciam a fabricação do Remdesivir? Eles esperam que Gileade e os EUA se comportarão melhor do que antes, na epidemia de Aids? Ou têm medo da ameaça de sanções retaliatórias dos EUA?

Todo ano, nos EUA, o Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR) emite um Relatório Especial que usa para ameaçar sanções comerciais contra países. A Índia figura com destaque neste relatório ano após ano, por emitir uma licença compulsória em 2012 para a Natco vender o Nexavar por menos de 3% do preço da Bayer, que supera US$ 65 mil por ano.

Depois que a Índia emitiu a licença compulsória para o Nexavar, Marijn Dekkers, executivo da Bayer, disse: “Não desenvolvemos este medicamento para os indianos. Desenvolvemos para pacientes ocidentais que podem pagar”.

Em abril, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi cedeu sob a ameaça de Trump e exportou hidroxicloroquina para os EUA, mesmo estando sob proibição de exportação na época. Ele – e os líderes de outros países – estarão dispostos a enfrentar os EUA em relação ao Remdesivir? Ou eles concordam com Trump que o Remdesivir deve ser reservado apenas para pacientes dos EUA, mesmo que tenham capacidade de produzi-lo?

Prabir Purkayastha, Engenheiro, ativista científico, presidente do Movimento de Software Livre na Índia e editor do Newsclick  |   Texto em português do Brasil, com tradução de José Carlos Ruy

*Exclusivo Editorial PV (Fonte: CounterPunch) / Tornado


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