sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Das ruínas da explosão, pode nascer um novo Líbano?


#Escrito e publicado em português do Brasil

O desastre de Beirute intensificou os apelos, de dentro e fora do país, por uma reforma completa do sistema político libanês, marcado pelo sectarismo. Mas uma mudança brusca é tida como improvável num país tão volátil.

Já à beira do colapso econômico, o Líbano enfrenta agora um futuro político incerto. A explosão de 4 de agosto em Beirute, causada, ao que tudo indica, por negligência das autoridades, elevou à indignação dos libaneses. O primeiro-ministro Hassan Diab apresentou na segunda-feira (13/08) a renúncia de seu governo e ocupará o cargo apenas até que um novo gabinete possa ser escolhido.

Durante dias, bonecos de políticos foram penduradas em forcas simbólicas. Elas foram erguidas por manifestantes que veem o sistema de governo no Líbano, no qual o poder é dividido entre facções muçulmanas e cristãs, como fonte de corrupção oficial. Nomeações importantes e controle sobre setores-chave são usados para promover os interesses de cada lado em um sistema de clientelismo.

Um relatório recente do grupo de análise Synaps, baseado em Beirute, constatou que os acordos de divisão de poder que moldam o governo do Líbano desde 2008 provavelmente aceleraram a falência do país.


O cientista político libanês Amal Saad argumentou no Twitter que a única esperança para o desmantelamento do sistema sectário seria uma nova lei garantindo representação proporcional. Isso, argumenta ele, estimularia o voto entre as religiões.

Mas, segundo Heiko Wimmen, da ONG International Crisis Group, seria extremamente improvável que essa proposta obtivesse apoio de grupos minoritários, que veem o sistema atual como uma espécie de garantia de sobrevivência. Com alguns dos senhores da guerra ainda no poder, diz ele, o legado da guerra civil libanesa de 1975-90 ainda assombra o cenário político.

A questão é que algumas comunidades minoritárias temem que a representação proporcional as deixaria vulneráveis à dominação por outros grupos e que o sectarismo, apesar das mudanças, continuaria a se manifestar, deixando-as com pouca influência e ainda menos proteção.

O papel do Hisbolá

Muitos veem como problema o fato de propostas para erguer instituições estáveis considerarem o Hisbolá, a maior força xiita do Líbano, como um obstáculo, ignorando a realidade do amplo apoio popular da organização. "Esse cenário não existe na realidade, porque seria necessário algum tipo de ditador trabalhando por dez anos sem interferência para construir esse sistema", diz Wimmen.

Esse cenário leva grupos da sociedade civil, como o LiHaqqi (Pelos meus direitos), de esquerda, a moderar suas exigências para derrubar o sistema sectário.

A aliança entre o Hisbolá e o presidente, o cristão Michel Aoun, é vista atualmente como um pilar do status quo. Após a explosão, o LiHaqqi rejeitou novas eleições supervisionadas pelos grupos no poder, descartou apoio a um governo de unidade nacional e pediu a renúncia de Aoun e do presidente do Parlamento, o xiita Nabih Berri.

Para Wimmen, os partidos políticos independentes que, como o LiHaqqi, se concentram em programas socioeconômicos para combater a pobreza enquanto promovem os direitos universais poderiam desempenhar um papel em mudanças graduais. Eles poderiam, por exemplo, apresentar candidatos que promovam a transparência e o não sectarismo.

Mesmo um pequeno bloco de independentes, com assentos no Parlamento em eventuais novas eleições, pode ter uma chance de mudar os rumos da conversa política em direção à transparência, afirma Wimmen.

Um exemplo seria tornar pública a informação que eles recolhem através do acesso a documentos parlamentares internos. "A mensagem deve ser: 'Você não pode mais jogar esse jogo – se você não estiver pronto para mudar esse tipo de comportamento, você estará governando sobre as ruínas'", completa Wimmen.

Pressão internacional

Líderes globais pressionam políticos no Líbano a garantir mais transparência e instituir reformas. As autoridades americanas, por exemplo, culpam cada vez mais publicamente o Hisbolá pelos infortúnios do Líbano. Após a explosão em Beirute, o ministro das Relações Exteriores alemão, Heiko Maas, pediu um "forte recomeço" e reformas econômicas de longo alcance para reconstruir a confiança dos cidadãos.

No mesmo tom, em visita a Beirute, se manifestou o presidente francês, Emmanuel Macron, que prometeu ajudar na construção de um governo de unidade nacional. A mídia e observadores locais acreditam que tal acordo poderia envolver a volta do premiê sunita Saad Hariri em troca de concessões por parte do Hisbolá. Visto como mais palatável para o Ocidente, Hariri também deu ao Hisbolá cobertura política nos círculos internacionais. 

A ajuda inicial acertada no domingo, em uma conferência de doadores internacionais organizada após a explosão, contornaria o governo do Líbano, com assistência a longo prazo condicionada à capacidade de resposta das autoridades às necessidades do povo. Entretanto, as autoridades libanesas têm resistido aos apelos internacionais de transparência sobre as causas da explosão.

O apelo de Macron para uma investigação internacional foi logo rejeitado pelo presidente libanês como "uma distorção da verdade". Desde a explosão, foi revelado que tanto Aoun como Berri, presidente do Parlamento, haviam sido advertidos há semanas sobre o perigo que representavam os produtos químicos causadores da explosão.

A mídia libanesa também lembrou que o juiz do tribunal militar Fadi Akiki, que é casado com a sobrinha de Berri, está supervisionando a investigação preliminar sobre a explosão. Relatórios não confirmados sugerem que ele está sendo considerado para supervisionar a investigação do Conselho Judiciário, que seria responsável pelo relatório final do governo.

Mas o médico libanês Fred Bteich, que cuida de manifestantes baleados pelas forças de segurança durante protestos, adverte que não se pode subestimar o poder das ruas. "Eles estão brincando conosco, mas nós não somos idiotas", diz. "Desde que o governo renunciou, estamos dizendo que isso não é suficiente. Espero que possamos mudar alguma coisa."

Tom Allinson | Deutsche Welle

Sem comentários:

Mais lidas da semana