sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O Líbano face às suas responsabilidades



Thierry Meyssan*

A economia libanesa afundou-se em sete meses. Os habitantes começam a padecer de fome. Uma solução é possível se analisarmos correctamente as causas do problema. 

Mas, é preciso aceitar reconhecer os erros e distinguir aquilo que é estrutural do que tem a ver com os problemas regionais. É inútil e maledicente acusar o inimigo tradicional (Israel), ou o seu brutal aliado (os Estados Unidos), de ter causado um problema que dura há séculos e se torna por isso anacrónico. É também perigoso ignorar a evolução do actual principal aliado do Hezbolla (o Irão).

Um problema estrutural, herdado do passado

Desde o início dos acontecimentos do Líbano, havíamos sublinhado que o problema estrutural não era a corrupção, mas a organização deste país segundo um sistema comunitário confessional [1]. Por outro lado, antes que o problema bancário se tivesse tornado público, havíamos anunciado e havíamos explicado que, como em todos os bancos, os bancos libaneses não possuem liquida senão a décima parte dos seus depósitos. Por conseguinte, logo que surge um problema político grave que altera a confiança, todos os bancos se mostram incapazes de reembolsar os seus clientes.

Continuamos a afirmar que os Libaneses se enganam ao lançar as culpas sobre os cor-ruptos. O Povo é o único responsável por ter aceite a continuação deste sistema feudal, herdado da ocupação otomana, e sob a cobertura do comunitarismo confessional, herda-do da ocupação francesa. São sempre as mesmas famílias que controlam o país desde há séculos; não as tendo a guerra civil (1975-90) renovado senão muito ligeiramente.

É assombroso ouvir os muçulmanos negar a colonização otomana e os maronitas a regozijarem-se perante a sua «Mãe França» (sic). É claro, todos têm motivos para ter come-tido estes erros, mas não é fechando os olhos ao passado que se criará um futuro viável.


Washington e Telavive não querem destruir o Líbano

Os Estados Unidos fazem claramente pressão contra o Hezbolla. No entanto, como disse o General Kenneth McKenzie, comandante do CentCom, durante a sua recente visita a Beirute, trata-se para eles de uma pressão indirecta contra o Irão. Ninguém cuida em destruir o Hezbolla, que é o exército não-estatal mais forte do mundo. Ninguém está a urdir guerra contra o Líbano, e menos ainda Israel.

Este esclarecimento é tanto mais necessário quanto os Estados Unidos ameaçaram o Lí-bano de retaliação se ele não aceitasse a iníqua linha divisória traçada pelo Embaixador Frederic Hof. Ela delimita as zonas marítimas israelita e libanesa de maneira a facilitar a exploração de reservas de gás por Telavive. Igualmente, eles fizeram pressão sobre o Líbano, de acordo com as suas necessidades tácticas, para atingir a Síria: um dia pedindo para se abster de qualquer intervenção, no dia seguinte exigindo que acolha e mantenha os refugiados a fim de afundar a economia de Damasco.

Quanto a Israel, este país é agora governado em simultâneo por dois Primeiros-Ministros. O primeiro Primeiro-Ministro, Benjamin Netanyahu, é um colonialista no sentido anglo-saxónico do termo. Ele pretende estender o território israelita «do Nilo ao Eufrates», tal como está simbolizado pelas duas listas (listras-br) azuis da bandeira israelita. O segundo Primeiro-Ministro, Beny Gantz, é um nacionalista israelita, que pretende viver em paz com os seus vizinhos. Os dois homens paralisam-se mutuamente, enquanto que o Tsahal (FDI) se inquieta com as devastações que o Hezbolla, em caso de guerra, não deixaria de causar desta vez em Israel.

O projecto persa que ninguém quer

O Líbano é um Estado artificial desenhado pelos Franceses. Ele não tem nenhuma possibilidade de viver com autonomia e depende, obrigatoriamente, não apenas dos seus dois vizinhos, Síria e Israel, mas também de toda a região.
A pressão dos EUA concentra-se no Irão. Há três semanas atrás, a base militar de Tarchin (a sudoeste de Teerão) explodiu, suscitando declarações oficiais dilatórias. Na semana passada, sete pequenos navios militares iranianos explodiram no Golfo. Desta vez, nem o Pentágono nem o Exército iraniano emitiram qualquer comunicado a propósito.

Desde 2013, o Irão (xiita) do Xeque Hassan Rohani mudou de propósitos. Deu-se como objectivo estratégico, oficialmente adoptado em 2016, a criação de uma federação de Es-tados com o Líbano(maioria relativa xiita), a Síria (laica), o Iraque (maioria xiita) e o Azerbaijão ( turco-xiitas). O Hezbolla equiparou este projeto ao «Eixo da Resistência» que se havia formado face às invasões israelitas e norte-americanas. No entanto, não são apenas Israel e os Estados Unidos que se opõem a isso, mas também aqueles que deveriam fazer parte desta federação. Todos se levantam contra a reconstituição de um império persa.

Sayyed Hassan Nasrallah, Secretário-Geral do Hezbollah, acha que esta federação respeitaria os diferentes sistemas políticos dos Estados que a formassem. Outros, pelo contrário, nomeadamente os partidários do Secretário-Geral adjunto, Naïm Qassem, pensam que todos deverão admitir a governação por sábios, tal como descrito por Platão no seu livro A República, e instituída no Irão pelo Imã Rouhollah Khomeiny (grande especialista no filósofo grego) sob a denominação de Velayat-e faqih. O Hezbolla já não é simplesmente a rede de Resistência que jogou o ocupante israelita para fora do Líbano. Ele tornou-se um partido político com tendências e facções.

Ora, o Velayat-e faqih, atraente no papel, tornou-se, na prática, o suporte da autoridade do Guia da Revolução, o Aiatola Ali Khamenei. O Irão não conseguirá seguramente estender este sistema aos seus aliados, sobretudo no momento em que é contestado em ca-sa. É um facto: todos na região, incluindo os seus inimigos, admiram o Hezbolla, mas quase ninguém deseja o projecto iraniano, nem pode confiar sequer apenas no compro-misso de Sayyed Hassan Nasrallah.
Na semana passada, o Embaixador do Irão em Damasco declarou partilhar os objectivos da Rússia contra os exércitos jiadistas, mas divergir sobre o futuro da região. Pela primeira vez, um funcionário iraniano admitia o que escrevemos desde há muito tempo: a Rússia e os Estados Unidos, também eles, entendem-se quanto a este ponto. Não querem, nem um nem outro, esta pretendida Federação xiita da Resistência.

Esta semana, a agressão do Azerbaijão (turco-xiita) contra a Arménia (russo-ortodoxa), fora da zona de confronto tradicional de Nagorno-Karabaque, atesta que o problema li-gado a este projeto de Federação se estende pela região.

A renúncia do Hezbolla a esta fantasia teria pesadas consequências porque dissolveria o sonho de um novo império persa. Mas como ninguém o quer e é improvável que veja a luz do dia, o Partido de Deus prefere manter a dúvida sobre a sua posição e tirar provei-to, o maior tempo possível, do seu aliado iraniano.

A pressão dos Estados Unidos visa forçar o Hezbolla a dar esse passo. Bastará que o Partido de Deus declare não escolher este projecto de Federação da Resistência para que a agressividade de Washington, e dos seus aliados, a seu respeito acalme.

Como curar o Líbano ?

Todavia, isso não resolverá de forma alguma o problema actual do Líbano. Isto pressu-põe que todos renunciem aos seus privilégios comunitários confessionais, quer dizer, não apenas os maronitas à presidência da República, os sunitas ao posto de Primeiro-ministro e os xiitas à presidência da Assembleia Nacional; mas também aos lugares (as-sentos-br) reservados na Assembleia Nacional; e ainda a todas as formas sectárias de distribuição de postos na Função Pública. Só então é que os Libaneses poderão procla-mar a igualdade de todos os seus cidadãos, de acordo com o princípio «um homem, um voto» e, conseguir, finalmente, tornar-se a democracia que sempre alegaram ser e que jamais tiveram.
Este gigantesco empreendimento deverá pôr fim a vários séculos de confessionalismo sem, no entanto, provocar guerra civil. É, portanto, quase impossível de aí chegar sem passar por uma fase autoritária, a única capaz de bloquear antagonismos durante o perí-odo de transição. Aquele que desempenhar o papel de reformador deve, ao mesmo tem-po, dispor do apoio da maioria e não estar em conflito com nenhuma das 17 comunida-des religiosas.

Alguns inclinam-se para o General Chamel Roukoz, o vencedor da Fatah al-Islam (bata-lha de Nahr al-Bared, 2007) e do Xeque Ahmed al-Assir (batalha de Sidon, 2013). Mas este prestigiado militar tem o azar de ser um dos genros do Presidente Michel Aoun, o que, devido à divisão sectária, lhe fez perder a nomeação como Chefe das Forças Arma-das. Os Estados Unidos desejam que aquele que, finalmente, foi designado para este cargo, o General Joseph Aoun (sem laço de parentesco com o precedente), assuma o Po-der. Para recuperar as suas chances, o General Chamel Roukoz acaba de apelar à demis-são dos «três presidentes», o da República (o seu sogro), o do Governo e o da Assem-bleia Nacional.

O Exército regular jamais recebeu as armas necessárias para defender o país e, portanto, apoia-se no Hezbolla para prevenir uma nova invasão israelita. Chamel Roukoz e Joseph Aoun sempre mantiveram boas relações com o Partido de Deus. Eles gozam, um e outro, de uma imagem de imparcialidade em todas as comunidades.

Thierry Meyssan* | Voltairenet.org | Tradução Alva

Imagem: O General Chamel Roukoz é a personalidade libanesa com mais legitimidade para reformar o país. No entanto, os Estados Unidos prefeririam que o General Joseph Aoun (sem laço de parentesco próximo com o Presidente da República) jogasse o papel de « ditador » (no sentido romano antigo do termo).

*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

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