segunda-feira, 3 de agosto de 2020

O que há de errado com um défice orçamental?

Prabhat Patnaik [*]

Escrevi acerca disto anteriormente, mas considerando que a má teoria económica torna-se cada vez mais espessa entre os representantes do capital financeiro, especialmente as instituições de Bretton Woods localizadas em Washington DC, não há mal em que me repita.

A questão refere-se ao défice orçamental e actualmente tem-se tornado urgente porque as receitas dos governos – por toda a parte do mundo, inclusive a Índia – têm diminuído devido ao confinamento induzido pela pandemia, ao passo que a necessidade de gastos governamentais em socorro e cuidados de saúde escalou acentuadamente e exige maiores défices orçamentais.

Duas proposições grosseiramente erradas são avançadas neste contexto pelos representantes da finança: uma, de que um défice orçamental para além de um certo limite (habitualmente 3 por cento do PIB) deve sempre ser evitado pois ou tende a ser inflacionário (se for monetizado, isto é, se a tomada de empréstimo adicional do governo vier do banco central), ou exclui (crowds out) o investimento privado (se a contracção do empréstimo adicional do governo provier do sector privado). Ao longo desta discussão ignorarei, para maior simplicidade, o caso da tomada de empréstimos no estrangeiro.

A segunda proposição errada é que se, ao invés de contrair empréstimo, o governo financiar suas despesas pela venda de algum activo de sua propriedade, tais como participações do sector público ou terra governamental, então não haveria efeitos danosos como aqueles de um défice orçamental. De facto as receitas da venda destes activos são apresentadas como rendimento do governo, a par da sua receita fiscal, e portanto o défice orçamental ampliado desaparece. Vamos examinar estas duas proposições uma por uma para verificar porque são erradas.


Numa economia onde há capacidade não utilizada e desemprego, isto é, numa economia que é constrangida pela procura, um défice orçamental – mesmo se financiado pela contracção de empréstimos do governo junto ao banco central – não pode ser inflacionário. A inflação ocorre se a oferta não puder aumentar enquanto a procura aumenta, a preços de base. Mas numa economia constrangida pela procura um aumento da procura provocará um aumento da produção e portanto da oferta – e não dos preços. Portanto não existe a questão de ser inflacionária numa situação como a actual, onde existe tanto capacidade não utilizada como desemprego.

A única diferença que faz contrair empréstimos do banco central, em oposição a contrair empréstimos do sector privado, é a seguinte:   se o governo toma emprestado do banco central, o qual imprime moeda e a dá ao governo, então a despesa do governo coloca esta moeda em mãos privadas. Se ao invés o governo contrai empréstimos do sector privado então isso colocaria títulos do governo em mãos privadas. Se a moeda é colocada em mãos privadas então estas terão direitos sobre o banco central o qual por sua vez tem direitos sobre o governo (contra o qual aquela moeda foi impressa): portanto o sector privado mantém direitos sobre o governo indirectamente. Mas se o governo tomar emprestado directamente do sector privado então este possui direitos sobre o governo directamente. Esta é toda a diferença que há entre as duas situações.

Temos estado a falar acerca do "sector privado", mas como os trabalhadores mais ou menos consomem tudo o que ganham, trata-se dos capitalistas cujas poupanças aumentam devido ao défice orçamental e que possuem direitos sobre o governo. Os direitos que os capitalistas possuem contra o governo por causa do défice orçamental foram colocados nas suas mãos pelo próprio défice orçamental. Trata-se de uma benesse (booty) que lhes é entregue pelo governo, a qual eles nada fizeram para ganhar. Os recursos que o governo obtém para despesas através de um défice orçamental surgiram da maior produção gerada pelo estímulo que ele proporciona – e a parte do lucro desta produção simplesmente aterra no colo dos capitalistas, uma fracção da qual eles mantém como poupanças, na forma de direitos sobre o governo.

Isto também nos diz porque um défice orçamental não é um bom caminho para financiar gastos governamentais. Não é por causa dos argumentos espúrios avançados pelos representantes da finança, mas sim porque um défice orçamental aumenta a desigualdade de riqueza. Se por exemplo o governo tributasse esta benesse através de um imposto sobre o lucro ou um imposto sobre a riqueza, então a riqueza dos capitalistas permaneceria a mesma que era antes do aumento da despesa do governo; mas se não o fizer, então esta riqueza aumenta exactamente no montante do défice orçamental. Isto aumenta a desigualdade de riqueza no país.

Uma vez que um défice orçamental coloca riqueza nas mãos dos capitalistas sem que estes façam nada para ganhá-la, aumenta gratuitamente a desigualdade de riqueza na economia – e é isso que está errado com ele, quando comparado por exemplo com despesas governamentais financiadas por impostos.

Quanto ao financiamento da despesa governamental através da venda dos seus activos, o FMI não considera isto como parte do défice orçamental, o que é absurdo pela seguinte razão:   Vimos que (numa economia fechada) um défice orçamental coloca nas mãos dos capitalistas um montante de direitos sobre o governo exactamente equivalente. Estes direitos podem ser detidos indirectamente, quando capitalistas detêm dinheiro, ou directamente, quando detêm dívida pública. A venda para eles de activos do governo, como participações do sector público ou terras do governo, apenas altera a forma dos seus direitos sobre o governo.

Se participação do sector público for vendida, então tal participação apenas substitui moeda nas mãos dos capitalistas (se o défice for financiado pela tomada de empréstimo junto ao banco central); da mesma forma ela apenas substitui títulos do governo quando o défice não é monetizado. Portanto o efeito de vender activos do governo não é absolutamente diferente daquele do défice orçamental convencional. De facto, despesas governamentais financiadas pela venda de activos do governo deveriam ser contadas como défice orçamental, exactamente como o gasto financiado pela venda de títulos governamentais.

Mas por que o FMI pensa de outra forma? A razão é inteiramente ideológica. Apesar de possivelmente não poder haver qualquer diferença entre as duas situações – aquela em que o governo financia seus gastos colocando direitos sobre si próprio na forma de títulos da dívida pública nas mãos dos capitalistas, e a outra em que o governo gasta colocando suas participações nas mãos de capitalistas – a razão porque o FMI conta a primeira como défice orçamental e franze as sobrancelhas em relação a ela, ao passo que permite a segunda, é porque quer que o sector público seja privatizado. É esta preferência ideológica que faz com que o FMI pretenda que a venda de participações do sector público não deveria ser contadas como défice orçamental.

O mesmo se pode dizer da venda de terras governamentais. Apesar de as suas consequências económicas serem exactamente as mesmas da venda de títulos da dívida pública (a qual é o que implica um défice orçamental), ela não é contada como défice orçamental como deveria ser. Em suma, é claramente errado tratar a venda de terras governamentais como uma medida para aumentar receitas. Mas muitos economistas, influenciados pelo pensamento do FMI, assim o fazem.

Isto tem uma consequência infeliz. Quer o governo gaste através da venda de títulos ou da venda de terras não faz diferença para o facto de que isto aumenta a desigualdade de riqueza. Um défice orçamental aumenta a riqueza dos capitalistas ao colocar títulos da dívida pública (ou moeda) nas suas mãos bem além da riqueza que eles possuíam antes de o governo ter decidido gastar mais através do recurso a um défice orçamental. Colocar terra ou participação no sector público nas mãos de capitalistas não faz um mínimo de diferença para isto; apenas muda a forma da sua riqueza, não o facto de capitalistas obterem riqueza adicional e portanto haver um aumento na desigualdade de riqueza da sociedade.

Se bem que aumento da despesa governamental na Índia nas presentes circunstâncias seja um dever, uma vez que a economia indiana é constrangida pela procura, advogar que esta despesa deveria ser financiada através de uma venda de terras do governo demonstra uma falta de consciência tanto do facto de que a venda de terras não é diferente de um défice orçamental como de que isto também implica um aumento da desigualdade de riqueza.

Se a economia é para ser estimulada e se a desigualdade de riqueza é para ser impedida de se tornar ainda pior do que o nível horrendo já atingido, então o único meio para que isto possa ser feito é através de maior despesa governamental que seja financiada por um imposto sobre os ricos, ou um imposto sobre os lucros ou um imposto sobre a riqueza.

26/Julho/2020

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2020/0726_pd/what-could-be-wrong-fiscal-deficit . Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/

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