segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Armas de destruição macia

Durão Barroso é português mas as razões que existem para nos felicitarmos com a sua nomeação, são as mesmas que poderão levar as feministas a felicitar-se com a ascensão de Marine Le Pen em França e as mesmas que fariam os activistas da luta antirracista defender a governação de José Eduardo dos Santos: nenhumas

Carmo Afonso | Expresso | opinião

Quem viu lembra-se. Quem não viu está perfeitamente a tempo de colmatar a falta; “Pulp Fiction” de Quentin Tarantino é um filme que cruza várias histórias e essas histórias vão de muito boas a absolutamente geniais. Quero fazer isto usando o menor número possível de adjectivos mas vai ser difícil. Evitar adjectivos pode ser como era para aquele personagem do Herman José não dizer palavrões. Sugiro então que digam um palavrão por cada adjectivo que escrever. Seria como um jogo e este tipo de entretenimento é terapêutico.

Uma das melhores histórias do filme é a do relógio de ouro. É uma cena em que “Captain Koons” (Christopher Walken) entrega a uma criança “Butch” (personagem que na idade adulta foi interpretada por Bruce Willis) um relógio de bolso em ouro, contando-lhe a história desse relógio. Tinha sido comprado pelo bisavô de “Butch” e oferecido ao seu avô, para dar sorte, quando este foi combater na II Guerra Mundial. O avô teve-o consigo até perceber que ia morrer, altura em que o entregou a um gunner (um desconhecido), pedindo-lhe que o entregasse ao pai de “Butch”. O gunner assim fez. O pai de “Butch” veio a combater também numa guerra, a do Vietnam, e levou consigo o relógio. Foi prisioneiro de guerra durante cinco anos, período em que guardou o relógio de ouro no ânus. Acabou por morrer de desinteria mas não sem entregar o relógio a “Koons” (Christopher Walken), soldado da sua confiança e que como ele foi prisioneiro, pedindo-lhe que o entregasse um dia ao seu filho, “Butch”. “Koons” quis honrar o pedido do seu amigo e, para isso, guardou também ele o relógio no ânus, durante mais dois anos, até à sua libertação para poder entregá-lo a “Butch”, o que efectivamente fez. Esta cena, mesmo com a estranheza de ter uma criança a receber em mãos um objecto que passou por tão tortuoso percurso, poderia parecer um final feliz para a história do relógio de ouro e até para a da criança. Cumpriam-se grandes desígnios.

Era uma vez um rapaz chamado José Manuel Durão Barroso. Foi militante do MRPP de onde foi expulso, a seguir fez-se militante do PSD, militância que ainda mantém, e foi primeiro-ministro coligado com o CDS/PP. Nessa altura, 2002, considera, e refere-o numa intervenção pública, que o país “está de tanga”. No ano seguinte acolheu, na Base das Lajes, a cimeira onde se decidiu a intervenção militar no Iraque. Vimos Durão Barroso ao lado de George W. Bush, presidente dos Estados Unidos, de Tony Blair, primeiro-ministro do Reino Unido, e de José Maria Aznar, líder do governo espanhol e assistimos a um dos piores momentos da vida política portuguesa. Portugal saiu do armário da invisibilidade internacional para promover uma intervenção militar em busca de armas químicas que nunca foram encontradas até porque não existiam.

Uma operação militar que acabou por deixar o Iraque, com o abandono do território pelas forças militares dos Estados Unidos em 2011, em guerra civil entre sunitas e xiitas e mais tarde numa luta contra grupos jihadistas radicais. Os iraquianos continuam em fuga. Centenas de milhares de vidas perdidas, outras destruídas, foram o resultado de uma intervenção militar, desprovida de fundamento, e à qual Portugal ficou associado.

No ano seguinte, e cumprida apenas metade da legislatura num país que “estava de tanga”, Durão Barroso arranca para Bruxelas e assume o mandato de presidente da Comissão Europeia até 2014.

Mais tarde é nomeado chairman do Banco “Goldman Sachs International”. Aqui tem que se abrandar. Como é que se dá esta passagem de presidente da Comissão Europeia para uma instituição como a Goldman Sachs? Se é legal? É.

Se é aceitável? Não.

Os “EU employees” e a própria provedora de Justiça da UE não se conformaram com este passo de Durão Barroso. A provedora deu seguimento às queixas apresentadas e que punham em causa o óbvio: ir para a Goldman Sachs, uma entidade associada, no pior dos sentidos, à grande crise financeira, “desonrava a função pública europeia e a UE no seu conjunto”. Chegou a ser instaurado inquérito.

Depois de algumas insistências o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, solicitou um parecer ao comité de ética ‘ad hoc’ do executivo comunitário, que concluiu que Durão Barroso não violou as regras mas que tinha demonstrado falta de sensatez.

Segundo o comité de ética, Durão Barroso “não demonstrou a sensatez que se poderia esperar de alguém que ocupou o cargo de presidente durante tantos anos”.

Este é o grande problema do sistema liberal tal qual o conhecemos hoje: ele permite que se faça o inaceitável sem que se cometa qualquer ilegalidade.

A extrema-direita criou uma ficção em que parte do país cegamente caiu. A de que a corrupção é o pior dos males. Quem nos dera. A corrupção é crime e existe sempre a possibilidade de serem apanhados os prevaricadores, de serem afastados dos respectivos cargos, de contra eles correr uma investigação e de lhes ser aplicada uma pena justa. Não tem sido fácil mas é o que deve acontecer e o que já tem acontecido.

O grande problema do sistema é de facto aquilo que pode ser feito de forma legal e que põe em risco esta democracia. Sim, aquilo de que, não por acaso, a extrema-direita não fala. Desta vez não é sobre eles. Pelo contrário. Vamos lá desmanchar o boneco.

É que em contrapartida o sistema aponta, como soluções contra a ameaça da extrema-direita e do fascismo, caminhos que não são lá grande coisa. Nos Estados Unidos, Hillary e Biden são excelentes exemplos mas também os há cá. São as soluções que permitem que tudo fique na mesma e que eternamente se verifiquem as condições que podem determinar a autodestruição da democracia. Já aconteceu.

Adiante na história de Durão Barroso. Foi recentemente nomeado presidente da Aliança Global para as Vacinas. A Comissão de Investigação do Conselho fundamentou a escolha de Durão Barroso destacando o seu “notável estatuto e experiência, o seu historial como líder, a sua vasta experiência na presidência de instituições com múltiplos stakeholders e o seu empenho na cooperação internacional”.

As felicitações a Durão Barroso vieram de todo o lado, do próprio governo, e parece que o relógio de ouro chegou às mãos da criança. Também aqui parece que temos um final feliz.

O que achar disto?

Não se pode confiar numa entidade que considera o historial de Durão Barroso, como líder, digno de apreciação e há também o detalhe de não confiar numa organização, que tem a seu cargo uma missão desta importância, e que conta com a filantropia do casal Melinda e Bill Gates. Uma desgraça nunca vem só. A filantropia será o golpe final. Uma vez mais faz sentido lembrá-lo.

Até a propósito da pandemia as escolhas são sempre as mesmas.

Durão Barroso é português mas as razões que existem para nos felicitarmos com a sua nomeação, são as mesmas que poderão levar as feministas a felicitar-se com a ascensão de Marine Le Pen em França e as mesmas que fariam os activistas da luta antirracista defender a governação de José Eduardo dos Santos: nenhumas.

Durão Barroso, como aqueles carros dos recém-casados americanos, arrasta consigo algum ferro velho ruidoso: as vítimas da intervenção no Iraque, as ligações ao pior do sistema financeiro, uma carreira no que deveria ser corrigido no sistema.

Alerta mofo.

“Butch” ter-se-á sentido responsabilizado pela guarda do relógio de ouro. Já homem, na interpretação de Bruce Willis, arriscou a própria vida para o recuperar depois de o ter esquecido no seu apartamento. Voltar àquele apartamento era mesmo arriscar a vida. Afinal não morreu mas matou “Vincent Vega” (John Travolta) - que não acreditou na visão de “Jules Winnfield” (Samuel L. Jackson) de que lhes teria acontecido um milagre ao terem saído ilesos de disparos à queima-roupa e que, por isso, deveriam mudar de vida – um gangster encantador que morre pelos disparos da metralhadora de “Butch” quando sai da casa de banho depois de estar sentado numa sanita a ler o livro “Modesty Blase”.

Aquele relógio de ouro só deu chatices.

E afinal a história não acabou bem. “Butch” não queria matar ninguém, “Vincent Vega”, um homem cioso da sua masculinidade, merecia um fim mais digno.

A nomeação de Durão Barroso, e acompanhada destes regozijos, é mais uma admissão do que não deveria acontecer, mais um passo, entre muitos, que mancham e constituem um perigo para a democracia que conhecemos. E o que está em causa não é pouco. É esta a lógica que preside a uma entidade desta importância, a que vem da Goldman Sachs?

Com todas as suas falhas (e são tantas), ainda não se chegou a um sistema melhor do que aquele que conhecemos na Europa. É um “bem-estar relativo” mas é o melhor até agora. A direcção para os princípios de esquerda deve estar sempre presente; mesmo que nunca se tenha conseguido um modelo de esquerda perfeito foram sempre as decisões e as reivindicações da esquerda que historicamente nos encaminharam para sociedades mais justas. Assim foi em Portugal com o 25 de Abril como no Reino Unido no pós-guerra (com o grande exemplo da criação de um Serviço Nacional de Saúde mais tarde destruído por Margaret Thatcher).

É fundamental ter liberdade e é incompreensível, talvez indesculpável, que os amantes da democracia liberal estejam tão dispostos a perdê-la. É infantil a fantasia de que nada disto terá consequências, tão infantil como a fantasia das armas químicas escondidas no Iraque.

Não havia armas químicas escondidas no Iraque mas há armas de destruição macia à vista por todo o lado.

Para isto não há vacina nenhuma.

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