#Publicado em português do Brasil
– De Polanyi à Nova Arqueologia Económica
Michael Hudson [*]
Os anos de formação de Karl
Polanyi, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, foram um período de
turbulência monetária. Os Estados Unidos da América tornaram-se, pela primeira
vez, uma nação credora e exigiram o pagamento das dívidas de guerra, que Keynes
avisou serem impagáveis sem destruir os sistemas financeiros da Europa
(Hudson, Super Imperialism, 1972, faz um resumo desta era). A França
e a Grã-Bretanha submeteram a Alemanha ao pagamento de reparações
insustentavelmente elevadas, ao mesmo tempo que impunham austeridade às suas
próprias economias, aderindo ao padrão de ouro. Jacques Rueff, em França, e
Bertil Ohlin, nos Estados Unidos da América, argumentaram que a Alemanha
poderia pagar qualquer nível de reparações em ouro - e os Aliados poderiam pagar
as suas dívidas militares denominadas em moeda estrangeira - impondo um
desemprego suficientemente alto para fazer com que os seus salários fossem
suficientemente baixos para tornar os seus produtos suficientemente baratos
para gerar um excedente comercial suficientemente grande para pagar o seu
serviço de dívida.
A maioria dos países seguiu a ideia do dinheiro sólido ("hard
money"), de que o dinheiro era (ou podia tornar-se num substituto de)
uma mercadoria, sendo convertível
Quando o padrão-ouro foi reinstituído após a Primeira Guerra Mundial, as
economias foram espremidas de dinheiro para reduzir os seus preços e salários,
numa tentativa fútil de pagar as suas dívidas. Rueff, Ohlin e Hayek afirmaram
que impor às economias devedoras esta deflação e pobreza representaria (e
deveria representar) um equilíbrio estável.
Tudo – incluindo dinheiro, terra e trabalho – era visto como uma mercadoria
cujo preço seria fixado de forma justa pela oferta e procura, sendo a
"procura" corroída pelo serviço da dívida, pago sem limites aos
credores. A criação de dinheiro devia ser mantida fora das mãos dos governos,
porque, como Margaret Thatcher parafraseou da ideologia de Hayek: "Não
existe tal coisa como a sociedade". Existe (e deve existir) apenas um
mercado – um mercado que é inevitavelmente dominado por fortunas financeiras,
bancos e donos de propriedades.
Polanyi culpou a imposição da ideologia do mercado livre pela rotura do
pós-guerra e pela Grande Depressão. Escrevendo que "A década de 1920 viu o
prestígio do liberalismo económico no seu auge", ele previu que, "Sem
dúvida, a nossa era será vista como o fim do mercado autorregulador" (Polanyi,
1944: 148). Ele esperava que o caos resultante da implementação desta ideologia
maníaca demonstrasse a falácia das afirmações de que os mercados são
autorreguladores e podem ser desencastrados ("disembedded") do
seu contexto social regulatório sem que isso cause destruição económica,
desemprego e pobreza.
Nos Volumes II e III de O Capital, Marx considerou a renda da terra e a usura como sobrevivências dos tempos feudais, falsos encargos da produção ("faux frais of production") que ele esperava que o capitalismo industrial eliminasse, libertando as economias de proprietários extratores de renda da terra e de banqueiros usurários. Em vez disso, estes interesses rentistas recuperaram o controlo das economias, opondo-se à regulação pública acenando com a bandeira do individualismo livre-mercantil. Idealizando os ganhos monetários sem qualquer preocupação com a forma como isso afeta o bem público, os banqueiros e outros rentistas definem economias "naturais" ou "puras" como implicando nenhuma regulação de preços ou do funcionamento dos mercados em função de considerações de bem-estar social. A economia é vista como um mercado livre para todos, e não como um sistema social que regula a propriedade, o crédito e a dívida para dar prioridade à estabilidade social e ao aumento do nível de vida.
Ao descrever o poder regulador público como "não natural", a política do mercado livre assume que é natural e desejável remeter para a riqueza privada a existência de regras para propriedade, crédito e dívida. A realidade é que nunca existiu um mercado "natural", sem regulamentação social. O que passa por um mercado livre equivale a pouco mais do que uma luta por posições, com as vantagens a estar sempre do lado dos indivíduos mais ricos. O interesse destes reside em minimizar a supervisão pública e a tributação das suas atividades empresariais rentistas, de crédito e execução ou outras.
Polanyi propôs-se demonstrar a loucura de sujeitar a política laboral, fundiária e monetária a "mercados livres" não regulamentados. O que realmente está em questão é que tipo de mercados as economias terão, e quem serão os seus principais beneficiários – ou vítimas. Na sua clássica obra A Grande Transformação (1944) creditou o feudalismo e o capitalismo industrial inicial da Inglaterra, com as suas leis para pobres ("Poor Laws") ainda em funcionamento, por preservarem objetivos sociais amplos e regulamentos, em vez de atirarem o trabalho e a terra aos lobos (os ricos), tratando-os como mercadorias. Mesmo nos primeiros dias do desenvolvimento do capitalismo, as nações mercantilistas "eram todas igualmente avessas à ideia de comercializar o trabalho e a terra - a condição prévia da economia de mercado". ... O mercantilismo, com toda a sua tendência para a comercialização, nunca pôs em causa as salvaguardas que protegiam estes dois elementos básicos da produção – o trabalho e a terra – de se tornarem objetos de comércio" (ibidem: 70).
Desde a Antiguidade até à Europa feudal, a terra formou a base tributária universal. Em contraste com as mercadorias normais, que têm um custo de produção, a terra é fornecida livremente pela natureza. "Terra, trabalho e dinheiro não são obviamente mercadorias", explicou Polanyi. Trabalho "é vida", e "terra é apenas um outro nome para a natureza". Não tendo sido produzida pelo trabalho e, portanto, não tendo um custo de produção (valor clássico), a renda da terra é apenas uma privilégio legal conferido à propriedade. Mas os mercados dão-lhe um preço, de forma que transferir certos direitos de uso permite aos proprietários extrair benefícios do arrendamento sem trabalho (ibidem, 72). Embora o valor dos terrenos seja criado principalmente pelo investimento em infraestruturas públicas, os proprietários lutam por guardar a renda da terra para si próprios. Isso impede que os governos mantenham a renda da terra no domínio público, como a base tributária. E na Antiguidade, grandes investidores e credores hipotecários executantes expulsaram os pequenos proprietários, privando os governos de impostos, bem como de mão-de-obra em corveia e de um exército de livres cidadãos.
Quando Polanyi chamou ao dinheiro uma mercadoria fictícia, estava a rejeitar a ideia de o tornar escasso, limitando o seu fornecimento ao de ouro, imitando assim as mercadorias, como se o dinheiro fizesse parte de um sistema de permutas. Isso também dava aos credores um poder esmagador sobre o resto da economia, especialmente sobre o trabalho e a terra, empurrando os níveis salariais e os preços das colheitas para abaixo das necessidades básicas quando os governos foram privados da capacidade de criar crédito para empregar mão-de-obra. Ele criticou Ricardo por ter "doutrinado a Inglaterra do século XIX na convicção de que o termo «dinheiro» significava um meio de troca", com as notas bancárias a serem prontamente convertíveis em ouro (ibidem: 196). Essa política levou à deflação, dada a oferta limitada de ouro. A queda dos preços e dos salários penalizou os devedores quando os países voltaram à convertibilidade do ouro após inflacionamentos em tempo de guerra. Isso ocorreu na Grã-Bretanha depois de 1815, e nos Estados Unidos da América depois da década de 1870, quando se procurou reduzir os preços para que o preço do ouro - e, portanto, os salários e os preços das mercadorias - voltassem a descer para o seu nível anterior à Guerra Civil. O resultado foi uma depressão económica prolongada, fazendo com que a terra e outros bens fossem transferidos dos devedores para os credores.
A alternativa preferida de Polanyi era fazer o dinheiro servir objetivos sociais, tornando-o uma pura criação pública da lei. Tal dinheiro simbólico não tem custo de produção inerente, "mas surge através do mecanismo da banca ou das finanças do Estado", e por isso não é uma mercadoria com um custo de produção em trabalho: "o dinheiro real, finalmente, é apenas um sinal de poder de compra que, em regra, não é produzido de todo, mas surge através do mecanismo da banca ou das finanças do Estado" (Ibidem: 72).
Os adversários austríacos de Polanyi argumentaram que a criação de dinheiro público, programas de despesas sociais, regulamentos e subsídios distorciam a supostamente eficiente economia "natural" dos mercados fixadores de preços. Na prática, isso significava salários baixos e uma transferência das terras para os ricos. Forças de mercado não regulamentadas e a procura de ganhos levaram o sistema social a ser gerido com o objetivo puramente financeiro de "máximos ganhos monetários", sujeitando a terra, o trabalho e o dinheiro a um viés pró-credor, em vez de favorecer a maioria endividada da população. Era para evitar esta polarização económica e esta austeridade, afirmava Polanyi, que "a regulação e os mercados... cresceram em conjunto". O comércio e os rendimentos foram regulados durante a maior parte da história, graças ao facto de que, "em regra, o sistema económico foi absorvido pelo sistema social". (ibidem: 68)
Mas em meados da década de 1920, operações de caça ao dinheiro ("money-seeking drives") estavam a desestabilizar a agricultura e a indústria. A França impôs a austeridade ao aderir ao padrão-ouro, e uma política semelhante da Grã-Bretanha levou a uma Greve Geral a nível nacional, em
"Permitir que o mecanismo de mercado fosse o único diretor do destino dos seres humanos e do seu ambiente natural, na verdade, de facto, mesmo da quantidade e da utilização a dar ao poder de compra, resultaria na completa demolição da sociedade. ... a administração pelo mercado do poder de compra liquidaria periodicamente as empresas, pois a escassez e o excesso de dinheiro seriam tão desastrosos para as empresas como as inundações e as secas na sociedade primitiva" (Ibidem: 73).
O projeto interdisciplinar de
Polanyi
A
A primeira investigação do grupo sobre alternativas à versão livre-mercantil da
história foi publicada no volume Trade and Market in the Early
Empires (Comércio e Mercado nos Primeiros Impérios) (1957), um resultado
dos debates do início do século XX entre os chamados primitivistas e os
modernistas. A leitura modernista da história insiste em que os indivíduos
egoístas inventaram espontaneamente o dinheiro e a empresa, sem que caciques,
palácios ou templos desempenhassem nisso um qualquer papel. Contra esta ideia,
Karl Bücher (1847-1930) contrapôs que as antigas economias não estavam
organizadas segundo linhas individualistas modernas. Ele "opôs-se à
economia clássica e neoclássica com o argumento de que estas teorias tinham um
conceito de economia vinculado ao seu tempo, um conceito que eles assumiram ser
aplicável a todos os períodos históricos" (Polanyi, 1962: 164).
Tal como Bücher, Polanyi rejeitou reconstruções que se liam como se um
economista livre-mercantil entrasse numa máquina do tempo e voltasse ao
Neolítico para organizar o crédito e os mercados segundo linhas modernas. Se
qualquer economia arcaica tivesse seguido esse modelo idealizado de manual,
observou o seu seguidor Johannes Renger (1972), os devedores teriam aí fugido
ou desertado para rivais que prometessem cancelar as suas dívidas. A ajuda
mútua e os seus associados constrangimentos à ganância eram condições para a
sobrevivência social. Esperava-se dos chefes que fossem generosos, protegendo
os fracos e os necessitados.
Elaborando as ideias desenvolvidas em A Grande Transformação, Polanyi
recorreu à Antropologia e à História antiga para mostrar que as
"obrigações monetárias não surgem normalmente das transações", da
troca de bens nos mercados. Tinham mais a ver com o pagamento de impostos,
dívidas e outras obrigações: "É vital fazer uma equiparação de bens tais
como a cevada, o azeite e a lã, em que os impostos ou os arrendamentos têm de
ser pagos, ou que podem constituir rações ou salários alternativos"
(Polanyi, 1957:
Polanyi caracterizou a troca mercantil como um de três sistemas de troca
distintos: a reciprocidade (troca de presentes), a redistribuição e a troca
"de mercado". "O comportamento de reciprocidade entre indivíduos
integra a economia apenas se forem dadas estruturas simetricamente organizadas,
tais como um sistema simétrico de grupos de parentesco". Tais simetrias
podem ser perturbadas pela "ascensão do mercado a uma força dominante na
economia", sobretudo quando "a terra e os alimentos forem mobilizados
através da troca, e a mão-de-obra for transformada numa mercadoria livre para
ser adquirida no mercado" (ibidem: 225). Ele não via isto como tendo-se
desenvolvido já por volta de
Polanyi resumiu a sua esperança de que a sociedade se curasse de ter
desencastrado os mercados do seu contexto social, restaurando "formas
reminiscentes da organização económica de tempos primordiais". A sociedade
precisava de reencastrar as estruturas de mercado para bens e serviços,
administrando preços e rendimentos chave numa nova economia redistributiva. Tal
redistribuição "pressupõe a presença de um centro de afetação na
comunidade", um palácio ou templo em tempos antigos, escritórios
governamentais democráticos no mundo de hoje.
A influência de Polanyi na Assiriologia
Dois dos seguidores de Polanyi, Leo Oppenheim e Johannes Renger, descreveram a
Suméria e a Babilónia como economias redistributivas, a partir do templo ou do
palácio. O artigo de Renger de 1984 sobre o contexto palaciano do comércio e
das empresas mostrou o papel destas grandes instituições na alocação e na
fixação dos preços dos recursos. Para levar a cabo o planeamento antecipado das
suas próprias operações e para realizar transações com a economia em geral,
palácios e templos precisavam de avaliar o pagamento de rendas e taxas em
cereais num balanço geral consolidado, juntamente com o comércio, o pastoreio e
outras atividades. A sua solução para este problema foi criar aquilo que hoje
conhecemos como dinheiro.
A caracterização por Polanyi da redistribuição como um modo de troca abrangendo
toda a economia – como se a Mesopotâmia não pudesse ser simultaneamente
redistributiva e uma economia de mercado – implicava que a Mesopotâmia não
podia ter também um comércio florescente orientado para o lucro, num sector
onde os preços variavam, especialmente entre as cidades. Isto deixou-o exposto
a críticas, designadamente as de Morris Silver, que citou exemplos de comércio
privado em busca de lucro, como o dos assírios na Capadócia, bem como provas de
que os preços excediam frequentemente os prescritos nas proclamações reais
(Silver, 1983; Silver 1995).
Renger descreveu como muitas das necessidades palacianas da terceira dinastia
neo-sumeriana de Ur III (final do terceiro milénio AC) "foram tratadas por
empresários para a casa [real] ("Palastgeschäft") pela qual
atuavam" (Renger, 1994: 197). Os comerciantes conduziam o comércio
empresarial por sua própria conta, frequentemente por consignação do palácio,
mas também vendendo, com uma margem de lucro, para o resto da economia. Também
emprestaram por sua própria conta, e cobraram impostos e taxas pelo palácio. A
mistura entre a economia palaciana redistributiva e as partes menos formais da
economia, onde os preços eram mais flexíveis, torna muitas vezes difícil
distinguir entre "público" e "privado", e assim entre troca
redistributiva e "de mercado", empréstimo e juros, e rendas ou outras
obrigações (Yoffee, 2003: 6).
O comércio empresarial para o mercado e o crédito na Mesopotâmia coexistiram
com a redistribuição palaciana com preços administrados e troca de presentes,
cada um na sua própria esfera. E a Mesopotâmia não estava sozinha como uma
"economia mista". Quase todas as sociedades nos últimos cinco mil
anos têm sido compósitas, apresentando simultaneamente os três modos de troca
de Polanyi. Ainda hoje, a troca de presentes entre familiares e amigos e os
preços administrados para bens e serviços públicos coexistem com as trocas no
mercado.
No entanto, a procura de ganhos monetários era geralmente encastrada ("embedded") num
contexto social mais geral. As proclamações reais de abolição de dívidas ("Royal
Clean Slate") e de "justiça e equidade", anularam o acúmulo
de impostos em cereais e outras dívidas agrárias, libertaram servos e restauraram
as terras confiscadas aos pequenos proprietários. (Forneço uma história de tais
atos em …and forgive them their debts – Lending, Foreclosure and
Redemption from Bronze Age Finance to the Jubilee year – 2018). Isto
preservou uma cidadania livre para servir no exército e fornecer mão-de-obra de
corveia, em vez de cair em servidão permanente por dívidas a credores não
oficiais.
As últimas décadas de investigação assíriológica mostraram que a Mesopotâmia
não era nem primitiva nem moderna enquanto tal. Como Dominique Charpin resumiu,
a ideia de Polanyi da Babilónia de Hammurabi como sendo uma economia não
mercantil foi formulada teoricamente, sem o benefício da documentação agora
disponível. Muitos dos textos publicados nos últimos anos mostram muito claramente
que a flutuação dos preços caracterizou o mercado. É demasiado fácil utilizar
estes termos de forma anacrónica e permitir que surjam mal-entendidos (Charpin,
2003: 196).
Tais mal-entendidos tiveram já consequências de grande alcance, há meio século
atrás. Um dos mais influentes seguidores de Polanyi, Moses Finley, excluiu o
antigo Próximo Oriente da narrativa da civilização ocidental. Expulso do ensino
na América durante a caça às bruxas maccartista dos anos 1950, por ter sido
comunista, Finley insistiu em que a civilização ocidental se desenvolveu a
partir de comunidades primitivas cujas práticas de chefia evoluíram diretamente
para as clássicas cidades-estado gregas e romanas. Na sua opinião:
"As economias do Próximo Oriente eram dominadas por grandes complexos sediados em palácios ou templos, que possuíam a maior parte das terras aráveis, praticamente monopolizaram tudo o que se pode chamar «produção industrial», bem como o comércio externo (que inclui o comércio entre cidades, e não apenas o comércio com partes estrangeiras), e organizaram a vida económica, militar, política e religiosa da sociedade através de uma única operação de manutenção de registos complicada, burocrática, para a qual a palavra "racionamento", tomada em termos muito gerais, é a melhor descrição de uma só palavra que me ocorre. ... A exclusão do Próximo Oriente não é, portanto, arbitrária..." (Finley, 1985: 28).
Esta exclusão das economias do
Próximo Oriente, sob o pretexto equivocado de que não teriam mentalidade
empreendedora, perde por completo de vista o seu carácter "misto". A
sua atitude dualista caracteriza a tendência de alguns seguidores de Polanyi
para pensar as sociedades como sendo ora "sociais" ora "de
mercado livre", como se a empresa comercial e a dívida remunerada fossem
incompatíveis com os regulamentos públicos e os preços administrados. Finley
tratou estes últimos como sendo um beco sem saída primitivista, à maneira da
interpretação de Karl Wittfogel do "despotismo oriental", imaginando
que as economias irrigadas tinham necessariamente um autoritarismo totalitário
do tipo estalinista. Na realidade, os palácios foram patrocinadores de empresas
e de uma economia mista resiliente, que mais tarde forneceriam à Grécia e Roma
clássicas as suas técnicas básicas de empresa comercial e de dívida remunerada.
Comentando como a visão dualista de Finley foi controvertida pela massa de
documentação entretanto surgida sobre comerciantes e investidores, Steven
Garfinkle observa:
"O uso do termo «primitivo»,
portanto, torna-se particularmente censurável quando aplicado à economia
mesopotâmica ... Para Finley, o antigo Próximo Oriente não era apenas
primitivo, era estranho e, portanto, não fazia parte da «nossa» história. Ao
colocar o antigo Próximo Oriente fora da experiência ocidental, Finley foi
capaz de justificar a sua exclusão da história antiga; mas apenas se
compreendermos o termo "história antiga" como aplicável
exclusivamente às origens cuidadosamente escrutinadas do «Ocidente»"
(Garfinkle, 2012:
"Os assiriólogos têm demonstrado o papel dos empresários buscadores de
ganhos monetários, surgindo sobretudo em conjugação com a economia palaciana,
gerindo empresas realengas e comerciando com outras cidades e regiões. De
facto, de que outra forma poderiam ter tido lugar o comércio e a
privatização?" (Garfinkle, 2004a; 2004b)
A Nova Arqueologia Económica como
um derivado da abordagem de Polanyi
A Nova Arqueologia Económica é, em muitos aspetos, um derivado do grupo de
Polanyi na Universidade de Columbia, enfatizando que os mercados foram quase
sempre regulados para evitar desequilíbrios crónicos e insolvência. Esta
escola, porém, vai para além da Polanyi, ao enfatizar o papel da dívida e
também o papel das empresas que emergiram de uma simbiose entre a economia
palaciana da Mesopotâmia e os comerciantes individuais. A International
Scholars Conference on Ancient Near Eastern Economies (ISCANEE) procurou
preencher as lacunas da história da civilização através de um levantamento das
empresas da Idade do Bronze, do palácio e do templo, da posse da terra, da
dívida e do desenvolvimento precoce do dinheiro, bem como da distinção
primordial entre o crédito comercial e a usura agrária.
O nosso grupo começou em 1994 quando trabalhei com Karl Lamberg-Karlovsky no
departamento de Antropologia de Harvard – o Museu Peabody – para organizar uma
série de colóquios para os quais convidámos importantes assiriologistas,
egiptólogos e arqueólogos, para encontrar as origens das práticas comerciais e
monetárias da civilização e a forma como as civilizações primordiais
conseguiram evitar que a dívida pessoal desestabilizasse e polarizasse as
economias, como se tornou o caso na Grécia e
A primeira conferência foi realizada em novembro de 1994, na Universidade de
Nova Iorque, sobre 'Privatização no Antigo Próximo Oriente e no Mundo Clássico'
(publicada pelo Museu Peabody de Harvard, 1996). Centrou-se na relação entre as
grandes instituições e o resto da economia, numa época em que a terra era
ocupada por unidades clãnicas e as atividades mercantis eram dominadas pelo
palácio, enquanto os templos atuavam mais como aquilo a que hoje se chamaria
serviços públicos, fornecendo produtos de artesanato a comerciantes que se
dedicavam ao comércio de importação e exportação.
Este colóquio foi seguido por uma combinação de duas reuniões, a primeira
organizada pela Universidade de Nova Iorque, em 1996, e a segunda pelo
Instituto Oriental da Rússia,
Estes dois volumes lançaram as bases do que pretendíamos ser a pedra de toque
da nossa série, abordando a lógica que levou os governantes da Idade do Bronze
a anular dívidas de usura rurais e pagamentos em atraso, de modo a preservar a
estabilidade económica. O terceiro colóquio foi realizado em 1998 na
Universidade de Columbia: 'Dívida e Renovação Económica no Próximo Oriente
Antigo' ( Debt and Economic Renewal in the Ancient Near East – CDL
Press, 2002). Em contraste com a crença modernista então difundida que
rejeitava as Limpezas de Cadastro ("Clean Slates") como sendo um
ideal utópico do passado, o nosso grupo documentou registos legais mostrando
que estas amnistias reais eram de facto aplicadas na prática.
A razão era suficientemente clara: As sociedades teriam sucumbido à servidão e
à monopolização da terra há milénios atrás, se tivessem considerado que
"mercados livres" significavam a santidade da obrigação de pagamento
das dívidas pessoais. Roma foi a primeira grande sociedade a não cancelar as
dívidas agrárias e pessoais. Para a sua oligarquia, a "santidade da
propriedade" significava uma licença para executar a hipoteca das terras
de autossustento e de outras propriedades dos devedores.
O nosso grupo foi reconhecido como prolongador do trabalho da geração de Polanyi,
e o colóquio incluiu uma visita ao arquivo dos seus documentos
O papel dos templos e dos palácios nas origens do dinheiro
O dinheiro teve origem nas práticas contabilísticas desenvolvidas pelas grandes
instituições da Mesopotâmia, no terceiro milénio AC, para denominar transações
entre elas e o resto da economia, desde logo o pagamento de impostos, taxas e a
aquisição de bens e serviços. A prata servia para denominar as dívidas
contraídas pelos comerciantes por avanços com vista a encomendas de
matérias-primas e bens de luxo (de que o palácio era, normalmente, o principal
cliente), enquanto que a renda da terra, as taxas por serviços e os
adiantamentos aos cultivadores, durante o ano agrícola, eram medidos em grãos
de cereais. A maior parte das trocas ocorreu a crédito, a liquidar no final da
época de colheita, na eira, ou no final de um período estipulado para a
concretização de um ato de comércio. A aceitação da prata e do grão pelo
palácio tornou-os aceitáveis como meio geral de pagamento por toda a economia.
Polanyi enfatizou a criação legal do dinheiro pelo governo. Aristóteles
observou também, há muito tempo, que o termo grego para cunhagem, nomisma, se
baseia na raiz nomos (a raiz do nosso termo numismática), que
significa lei. O que dava capacidade de circulação às mercadorias monetizadas
era, acima de tudo, o serem aceites pelo palácio e pelo templo no pagamento de
impostos ou taxas por bens e serviços. Os governos modernos podem pagar as
despesas sociais e fornecer à economia dinheiro para crescer, desde que cobrem
impostos para criar um valor de uso para esse dinheiro.
Impostos, serviço da dívida e criação pública de dinheiro são ignorados por
aqueles que seguem o economista austríaco Carl Menger e a fábula do dinheiro
por ele elaborada em 1871. Ele descreveu o dinheiro como emergindo entre os
indivíduos que trocam entre si mercadorias e preferem pequenos objetos
portáteis como o seu veículo de troca e, eventualmente, também de poupança e
acumulação de riqueza (Menger, 1871/1892). Subsequentes austríacos
denunciaram Trade and Market in the Early Empires (1957) como uma
ameaça a esta linha individualista e abertamente antigovernamental de
teorização. Fritz Heichelheim chamou a este esforço académico
"amador" e "um livro muito lamentável", dizendo que não
deveria ter sido publicado. "Os teóricos económicos sistemáticos terão de
rejeitar completamente ou remodelar as ideias sobre história económica
expressas neste livro" (Heichelheim, 1960: 108).
Heichelheim criara anteriormente uma fábula de "empresa privada" que
não reconhecia qualquer papel para templos e palácios arcaicos. Ele teorizou
que o juro teve origem quando os credores neolíticos "adiantaram" os
animais e as sementes de culturas em troca de uma parte do excedente. A sua
suposição "modernista" de que as taxas de juro iniciais refletiam a
produtividade, as taxas de lucro e o risco, nem sequer é válida hoje em dia,
mas é aplicada retroativamente no tempo como se explicasse a origem dos juros
(Heichelheim, 1958:
O mito da criação individualística de dinheiro e dos juros retrata cultivadores
e artesãos a trocarem os seus produtos entre si, e a pedirem juros por
empréstimos de gado e de cereais com vista a produzir um excedente, a partir do
qual o devedor pagará juros aos credores. Diz-se que os credores mais abastados
terão manifestado preferência por peças de metal, como meios de poupança
compactos e não perecíveis. Não se diz é de onde é que este metal é suposto ter
vindo. Durante toda a Antiguidade foi refinado nos templos, o que garantiu o
seu grau de pureza, enquanto o palácio patrocinava o comércio para obter a
prata e o ouro. A prata importada era o artigo de maior prestígio, com doações
reais aos templos estabelecendo o seu estatuto social e cerimonial. O palácio
fez dela o principal meio para o comércio e os contratos mercantis, bem como
para a gestão de empresas do sector palaciano.
As permutas entre particulares não podem ser uma explicação realista. Uma longa
tradição de denúncia de comerciantes e credores por usarem pesos e medidas
falsos vai desde a "literatura da sabedoria" babilónica até à Bíblia
- um peso leve para emprestar ou vender, um peso pesado para comprar ou receber
pagamentos dos devedores. Este registo literário deixa claro que mesmo o
dinheiro-mercadoria nunca poderia ser deixado aos particulares, porque fazê-lo
seria franquear os portões para que credores e comerciantes agissem de forma
tortuosa. Uma autoridade pública eficaz foi sempre necessária para controlar a
fraude e garantir uma negociação justa nas trocas do mercado. É por isso que os
defraudadores procuram, sempre que possível, desmantelar a capacidade
reguladora do governo, usando a palavra de ordem hipócrita dos mercados livres.
Quem mais, senão templos e palácios, poderia ter fornecido normas honestas? A
troca monetária não poderia ter sido viável sem a sua supervisão de pesos e
medidas padronizados, atestando a pureza dos metais monetários, e estabelecendo
sanções contra a fraude. Foi por isso que a prata foi cunhada em templos desde
a Mesopotâmia até Roma. A nossa palavra para "dinheiro" vem do Templo
de Juno Moneta em Roma – a "alertadora", cujos gansos grasnantes
alertaram Roma para a ameaça de uma invasão. (A palavra "moneta"
referia-se originalmente a um presságio).
Não é possível explicar as origens e o desenvolvimento inicial do dinheiro sem
reconhecer o papel catalítico dos templos e palácios no 3º milénio AC. Para
além de denominar as dívidas subsistentes para com a economia palaciana, o
dinheiro forneceu uma base para a contabilidade dos custos dos palácios e dos
templos e para a afetação de recursos. O emprego e a produção nestas grandes
instituições foram numa escala muito superior à da permuta interpessoal. Como
parte da economia redistributiva, os templos sumérios aprovisionavam a
mão-de-obra empregada nas suas oficinas têxteis e de outros artesanatos, que o
palácio exportava por prata e outras matérias-primas.
Os templos criaram e regulamentaram pesos e medidas para o xéquel e a mina de
prata, e os "alqueires" ku de grão, no seu sistema sexagesimal
(baseado em 60) de alocação calendárica baseada em meses padronizados de 30
dias, para facilitar a distribuição de salários. A prata (cunhada com uma
pureza especificada) e os grãos foram designados como o principal meio de
pagamento de impostos, taxas e outras dívidas no tempo da colheita. O valor de
um xéquel de prata foi fixado como igual a um "quarto" gur de grão,
para o pagamento de taxas e impostos ao palácio ou a outros credores rurais. (É
verdade que os cereais eram comercializados entre cidades a preços que podiam
aumentar acentuadamente em épocas de fracasso das colheitas, como aconteceu no
final do império neo-sumeriano de Ur III).
Como aponta Lamberg-Karlovsky (2009), "No Estado patrimonial há pouca
divisão funcional entre as esferas privada e oficial. Os escritórios oficiais
têm a sua origem na casa do governante". Nesta relação, o objetivo não é o
lucro, mas sim a continuidade estável. A facilidade de manutenção da
contabilidade e relações de preços estáveis eram uma lógica que implicava não
deixar variar os preços. E a prata é o luxo cimeiro, sendo isenta de cálculos
de oferta e procura ou de custo de produção.
Além disso, a reciprocidade e a redistribuição são organizadas segundo linhas
tão racionais como uma economia de mercado, mas a lógica é diferente. Baseia-se
no estabelecimento de um sistema de regularidade e ordem, e não de mercados
flexíveis na formação de preços.
As importações do terceiro milénio na Mesopotâmia também não afetaram os
preços, nem pela variação na oferta e procura, nem por serem substancialmente
mais ou menos caras. Os preços de mercado ou foram administrados ou, uma vez
fixados, continuaram por inércia com pouca resposta a mudanças na oferta e na
procura, exceto no caso de variações sazonais nos preços das colheitas ou de
respostas a falhas nas colheitas. Além disso, em vez de depender do comércio
para o essencial do seu quotidiano, como é defendido hoje pelos entusiastas do
comércio, as principais importações da Mesopotâmia (onde os preços, pesos e
medidas e, portanto, a equivalência monetária é documentada pela primeira vez)
incluíam bens dos produtores como minérios, estanho ou cobre, assim como luxos
tais o ouro, a prata e pedras preciosas. As principais exportações foram
têxteis de prestígio fabricados nas oficinas do templo ou do palácio
(principalmente por viúvas de guerra dependentes e seus filhos), bem como
artigos funcionais como facas e cinzéis. Este "comércio de luxos (uma
percentagem significativa do comércio de longa distância da Mesopotâmia - como
evidenciado pelos achados arqueológicos) envolveu uma muito pequena parte da
população".
Estas conclusões são consistentes com as conclusões do colaborador inicial de
Polanyi, Leo Oppenheim, que descreveu a economia da Mesopotâmia como nem
primitiva, nem baseada em mercados "livres" fixadores de preços, mas
sim como uma economia mista, com preços administrados dentro das grandes
instituições, para a sua própria boa contabilidade e para denominar os
pagamentos que lhes eram devidos.
O papel dominante da dívida
Tendo em conta os problemas que a dívida tem causado ao longo dos tempos, a
análise de como as sociedades têm regulado o crédito e a dívida deveria estar
no centro da nossa compreensão do dinheiro. E tendo em conta que as dívidas
paradigmáticas da Mesopotâmia eram devidas aos palácios, templos e cobradores
da sua burocracia – por taxas e impostos, tributo de povos conquistados e por
mercadores que atuavam como consignatários de encomendas do palácio - a análise
do dinheiro primordial deve logicamente caminhar a par do estudo da dívida e da
política fiscal coetâneas.
Os economistas convencionais tratam o crédito (e implicitamente, os atrasados
bem como os empréstimos) como sendo sempre produtivo e útil, não como extrativo
e socialmente desestabilizador. Representam a intervenção governamental para
anular dívidas como conduzindo à crise económica, não como salvando as
populações do empobrecimento e da desordem. Esta abordagem doutrinária ignora o
facto de que, na prática, a "segurança da dívida" significava fazer
com que os antigos devedores em atraso pudessem perder as suas terras e a sua
liberdade pessoal. Isto significava a insegurança dos seus direitos de
propriedade. Essa é que é a verdadeira crise.
Por muito que Ricardo argumentasse que todas as dívidas estrangeiras poderiam
ser pagas por procura recíproca automática, os teóricos modernos do ciclo
económico descrevem o equilíbrio como sendo o resultado da flexibilidade
salarial e de preços. Para considerar o encerramento generalizado da
propriedade dos devedores como uma política viável, é necessário pressupor que
as economias se auto-ajustam de uma forma estável, justa e eficiente. A
realidade é que a desregulamentação da dívida e das relações de posse da terra
impõe uma austeridade assolada pelo endividamento.
Representar o crédito e o plano de negócios financeiro como tendo apenas
efeitos económicos positivos produz uma caricatura da história. Ver a dívida e
os seus encargos em juros simplesmente como um arranjo entre indivíduos não
reconhece como o peso da dívida em toda a economia tende a crescer para além da
capacidade de ser paga. Faz vista grossa à forma como as oligarquias
financeiras agem na ausência de oposição pública. A ganância por dinheiro é
aplaudida, como se assegurar os créditos dos credores fosse a forma mais
racional de organizar uma economia. A implicação disso é que não haveria
necessidade de ação governamental "de fora" do mercado, por exemplo,
por meio de Limpezas de Cadastro ("Clean Slates") para
reverter os efeitos da usura rural que corroeu a posse tradicional da terra no
período da Velha Babilónia (2000-
Ao longo da história, a dívida tem sido a principal alavanca para privatizar a
terra e reduzir as populações à servidão. A Mesopotâmia conseguiu atrasar esta
dinâmica polarizadora, subordinando os direitos dos credores ao objetivo de
sobrevivência dinástica. Mas à Grécia e Roma clássicas faltava a tradição das
Limpezas de Cadastro reais. Esse foi o grande ponto de viragem. Tito Lívio,
Plutarco e Diodoro descreveram como o endividamento retirava direitos e
cidadania à população romana, mas um inquérito moderno, citando uma lista
aparentemente exaustiva de 210 causas às quais a posteridade, numa ou noutra
altura, atribuiu a responsabilidade pelo declínio e queda de Roma, não inclui
sequer o endividamento (Demandt, 1984).
A civilização ocidental como um desencastramento da economia do seu contexto
social
Os registos desaparecem no Egeu depois de
Os defensores do "mercado livre" retomaram o fio da civilização
ocidental "no meio", apenas depois de o crédito, a dívida e as
relações de propriedade se terem desencastrado e descontextualizado dos
controlos e equilíbrios ("checks and balances") que
sustentaram a descolagem ("takeoff") do Próximo Oriente. É
como se o cancelamento das dívidas agrárias da Idade do Bronze fosse um beco
sem saída (ou mesmo o "despotismo oriental"). A sua exclusão fomenta
a ideia de que, desde as clássicas Grécia e Roma até à atual onda de
austeridade e desregulamentação pró-credores, a "santidade da dívida"
e a execução hipotecária são um resultado primordial da seleção natural
darwiniana e da sobrevivência dos mais aptos (nomeadamente, os mais ricos), não
uma convenção que leva à dissolução social.
O conflito inerente entre governantes que procuram manter os seus cidadãos
livres da servidão por dívidas, por um lado, e credores que procuram os seus
próprios ganhos a expensas do palácio, tem sido um fio que percorre toda a
história da civilização. A característica distintiva das economias ocidentais é
a privatização do crédito, da terra natural e das infraestruturas públicas.
Este é o verdadeiro desvio em relação aos milénios anteriores. As sociedades
arcaicas tratavam a terra necessária à subsistência como um direito básico para
os seus cidadãos. Em vez de mercantilizar a mão-de-obra e a propriedade da
terra, para tornar irreversível a servidão por dívidas e a execução
hipotecária, os governantes da Mesopotâmia proclamaram Limpezas de
Cadastro ("Clean Slates") para evitar a polarização
financeira entre credores e devedores que mais tarde trouxeram uma Idade das
Trevas. Hoje, a dinâmica da dívida impõe austeridade ao mundo ocidental
contemporâneo, transferindo a propriedade para credores que ganharam suficiente
controlo sobre os governos para bloquear a proteção dos devedores.
A teoria otimista de Polanyi sobre o "duplo movimento" afirma que
quando uma sociedade se torna demasiado exploradora e polarizada, há uma reação
para a ressocializar. Isto é feito através do restabelecimento da regulação
pública do dinheiro, da troca e da terra, com vista a um crescimento a longo
prazo, em vez da procura de ganhos financeiros imediatos. Ele esperava que o
socialismo providenciasse os serviços básicos como um direito humano, na
premissa de que as pessoas não deveriam ter de perder a sua liberdade e os seus
direitos como o preço a pagar pelas suas necessidades básicas.
O socialismo seria, essencialmente, a tendência inerente a uma civilização
industrial para transcender o mercado autorregulador, subordinando-o
conscientemente a uma sociedade democrática. É a solução natural para os
trabalhadores industriais, que não vêm razão alguma para que a produção não
seja regulada diretamente e para que os mercados sejam mais do que uma marca
útil, mas subordinada, numa sociedade livre. Do ponto de vista da comunidade
como um todo, o socialismo é apenas a continuação desse esforço para fazer da
sociedade uma relação distintamente humana entre pessoas.
Na sua opinião, as políticas de "mercado livre" conduzem a tanta
pobreza e tensão que criam uma reação por uma maior regulação social. Esta é
uma versão política da Terceira Lei do Movimento de Newton: Cada ação cria uma
reação igual e oposta. Era esta a essência das reformas feitas à Economia
Política clássica no século XIX em direção ao socialismo: "A sociedade
protegia-se contra os perigos inerentes a um sistema de mercado
autorregulado" (Polanyi, 1944: 76). Polanyi esperava que a devastação
provocada pela Segunda Guerra Mundial criasse uma pressão política para renovar
o caminho em que as economias ocidentais pareciam estar já a avançar, antes do
desencadeamento das hostilidades.
Podemos agora ver que não há quaisquer garantias de que as sociedades evoluam
automaticamente para a frente e para cima. Esse determinismo centra-se no
potencial – o que as economias poderiam conseguir, se utilizassem todo o
conhecimento disponível no sentido do melhor aproveitamento para todos.
Senhores da guerra, credores, proprietários e monopolistas privaram sempre as
populações dos frutos do potencial tecnológico, ao longo da história. Nem
Polanyi nem qualquer outro futurólogo económico da sua época se debruçou sobre
o crescimento exponencial da dívida como a principal dinâmica polarizadora das
economias, servindo como alavanca para forçar a privatização e reverter as reformas
da Era Progressiva.
O "duplo movimento" de Polanyi pode tomar a forma de uma reação
patrocinada pelos interesses instalados, contra as reformas, não apenas a favor
delas. Apesar do florescimento do socialismo democrático britânico e europeu
após a Segunda Guerra Mundial, os anos 1980 assistiram a essa reação, na forma
do neoliberalismo, o Thatcherismo e a Reaganeconomia, que desencadearam uma
onda de privatizações e desregulamentação dos mercados. Os lobistas financeiros
de hoje e os seus académicos de estimação estão a defender a intervenção do
governo não para estabilizar as economias, mas precisamente para impedir uma
reação social como o duplo movimento de Polanyi.
Todas as formas de sociedade têm gerido os mercados. A chave é quem os gere,
sobretudo na esfera das relações de crédito e do equilíbrio entre a autoridade
governamental e a riqueza privada. Libertar a procura de ganhos monetários da
regulação é economicamente polarizador, como se verificou quando o longo
colapso da Antiguidade na servidão fez descarrilar muitas sociedades, durante
muitos séculos. A contribuição de Polanyi para a história social foi demonstrar
a necessidade de regular as finanças, a terra e os mercados de trabalho, num
contexto social global, a fim de manter a prosperidade em vez do
empobrecimento.
O enfoque de Polanyi nos modos de troca enfatizou que a terra e a sua posse
deveriam ser tratadas como uma instituição social, não como uma mercadoria.
Isso não estava em desacordo com o ponto de vista de Marx. Cada uma das fases
económicas por este consideradas tinha o seu próprio modo de posse de terra,
bem como um papel próprio da mão-de-obra na produção. A terra para
autossustento era a base para os cidadãos e militares da Antiguidade (até
perderem a sua terra e a sua liberdade por meio da usura). Sob o feudalismo, os
conquistadores apropriavam-se da renda da terra como terratenentes. Sob o
capitalismo industrial, assim o esperava Marx, a terra e a sua renda seriam
socializadas (como o seriam também para Polanyi). Em vez disso, a propriedade
imobiliária, sob o capitalismo financeiro, foi democratizada a crédito, sendo a
maior parte da renda da terra paga aos banqueiros na forma de juros
hipotecários.
Os modos do dinheiro e do crédito também evoluíram da Antiguidade através do feudalismo
até à era moderna. Refletindo a origem, na Idade do Bronze, do dinheiro de uso
geral nos pagamentos ao palácio (ou, na Antiguidade clássica, às autoridades
civis), os preços e as taxas de juro das dívidas e dos pagamentos fiscais eram
administrados. Esta era uma condição prévia inicial para a estabilidade. Antes
dos mercados de trabalho assalariado, a usura tornou-se a forma mais precoce de
obter trabalho dependente e a terra dos pequenos proprietários. Contudo, os
governantes da Mesopotâmia proclamaram periodicamente Limpezas de Cadastro,
para evitar a servidão por dívidas e a perda da posse da terra, em mais do que
numa base temporária.
Os imperadores romanos empenharam-se na emissão de moeda fiduciária, levando à
inflação de preços em resultado da sua incapacidade de tributar as famílias
ricas – as únicas capazes de pagar na economia imperial
Quando as dívidas de guerra reais não podiam ser pagas, os credores exigiam
direitos minerais, infraestruturas públicas e a criação de monopólios reais
(tais como as empresas comerciais das Índias Orientais e Ocidentais, dos Países
Baixos, França e Inglaterra). As finanças tornaram-se assim a principal
alavanca para privatizar o domínio público, do mesmo modo que arrancou os
direitos à terra na Antiguidade, tornando o solo "comercializável"
para os ricos e sujeito a execução hipotecária por credores predatórios –
irreversivelmente.
As taxas de juro são "redistributivas", quando fixadas pelo governo.
Assim são também os preços das obrigações e das ações, no âmbito do
Flexibilização Quantitativa pós-2008, prosseguida pelos bancos centrais dos
E.U.A. e da Europa. O capitalismo do Pentágono não é um mercado que minimize os
custos, como é descrito nos manuais de concorrência em mercado livre. Funciona
com base em contratos de custos acrescidos ("cost-plus
contracts"), nos quais as empresas militaro-industriais aumentam os
seus lucros através da maximização dos custos de produção.
Por detrás da atual defesa do "mercado livre" está o poder que tem a
riqueza financeira de se apropriar do papel político, fiscal e de planeamento
central que Polanyi, Marx e outros socialistas esperavam ver expandido nas mãos
de um governo democrático. O que daí resultou em termos de mercados
financeirizados de propriedades e instrumentos de dívida é o oposto do que os
reformadores esperavam criar há um século atrás. A tomada financeira ("financial
takeover") da política governamental reflete um plano empresarial de
despojamento de ativos e austeridade na economia em geral.
Isto não é o que Marx ou Polanyi esperavam. Se é para onde as dinâmicas de
mercado da civilização ocidental estão a conduzir, será uma repetição do
colapso da Antiguidade como um colapso no feudalismo.
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[*] Economista norte-americano, professor de
Economia na Universidade do Missouri,
O original encontra-se em michael-hudson.com/...
e a tradução de Angelo Novo em www.ocomuneiro.com/nr31_02_MichaelHudson.html
Este ensaio encontra-se em https://resistir.info/
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