domingo, 22 de novembro de 2020

Portugal | Não, o pior não é a diretora do SEF: é o SEF. E a nossa indiferença

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

Oito meses depois, a morte de Ihor começa finalmente a despertar indignação. Um relatório da IGAI e a desvergonha da ainda diretora do SEF acordaram os distraídos. Mas que a justa fúria contra Cristina Gatões e governo não nos distraia do essencial - o que está errado no SEF não se resolve só com demissões.

as últimas semanas, várias pessoas, entre comentadores muito encartados e anónimos das redes, afirmaram, na sequência de notícias sobre o relatório da Inspeção Geral da Administração Interna e da entrevista da diretora do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que houve um incompreensível silêncio sobre as circunstâncias da morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, ocorrida a 12 de março e conhecida publicamente 18 dias depois, quando três inspetores da polícia de fronteiras foram detidos pela PJ, indiciados por homicídio..

Não. Não houve "silêncio" sobre a morte de Ihor. Os jornais - com relevo para o DN e o Público - pegaram na história desde o início e nunca a largaram: publicámos dezenas de notícias. Nesta coluna, este é o quarto artigo de opinião sobre o assunto, que por qualquer motivo não tinha até agora despertado a indignação que merece. Chegou? Ainda bem; mas seria bom que quem até agora esteve calado assuma que fez parte do silêncio que pretende denunciar.

O motivo deste súbito interesse é em grande parte a entrevista que a diretora nacional do SEF, Cristina Gatões, deu à RTP, e na qual assume que Ihor foi vítima de "tortura evidente" mas se diz enganada: o que lhe foi transmitido, garante, é que morrera uma pessoa "de paragem cardiorrespiratória na sequência de convulsão". Infelizmente quem entrevistou Gatões não lhe perguntou quem a enganou, nem quando soube da morte e por quem, e o que fez a seguir.

Se calhar aqui é preciso lembrar que se trata da diretora de uma polícia criminal. Que se foi enganada é porque não sabe fazer o seu trabalho: é no mínimo inadmissível que não tenha sabido da morte no próprio dia em que ocorreu e não se tenha querido inteirar pessoalmente das circunstâncias. Que não tenha pugnado para que tudo fosse conduzido de forma a não haver suspeitas de que algo correra mal - por exemplo fazendo questão de chamar a PJ ou o MP ao local. Poderá dizer que confiou nos subordinados, nomeadamente no diretor de Fronteiras de Lisboa. Mas atendendo ao que a Inspeção Geral da Administração Interna afirma no seu relatório sobre esta morte - que o diretor de Fronteiras de Lisboa esteve junto ao cadáver duas horas depois do óbito e comandou a redação de uma versão "conveniente" dos dois últimos dias de Ihor no SEF -, tal significa que, no mínimo, não sabe escolher as pessoas em quem deposita confiança.

Há ainda, no que respeita à conduta de Gatões após a morte de Ihor, o facto de ser obrigatório a direção do SEF, perante um facto desta gravidade, abrir um processo de averiguações. Isso sucedeu logo a 13 de março, afirmou ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, no parlamento (a 8 de abril). Mas no relatório da IGAI não há, como o DN noticiou esta semana, rasto desse processo de averiguações - nem explicação sobre a sua falta.

Aliás, curiosamente, o relatório da IGAI não refere a direção nacional do SEF. Mas não é por isso que deixa de ser um manifesto da sua total incompetência.

Ler em Diário de Notícias: A miserável acusação do homicídio de Ihor Homeniuk

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