Instaura-se gradualmente o regime autoritário, de preferência através do abastardamento das instituições democráticas, até que, na prática, se esfumem os restos de democracia.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Que há de comum entre a farsa globalizada das eleições norte-americanas e a banalização da imposição de situações que reduzem a pouco mais que resquícios os direitos cívicos dos cidadãos a pretexto, por exemplo, da saúde pública?
Na verdade, tudo. São manifestações comuns de uma maneira cada vez mais excepcional de olhar a sociedade em todo o mundo gerido pela ortodoxia neoliberal, ditada pela crise em que continua a afundar-se a própria ortodoxia neoliberal.
Com algum pudor, que é importante assinalar, ao mesmo tempo fala-se cada vez menos de democracia. Está implícito que tudo continua a processar-se em nome da democracia, assim prosseguindo a transição para a institucionalização do autoritarismo globalizado, mecanismo político com o qual o neoliberalismo se identifica na perfeição. Ou seja, instaura-se gradualmente o regime autoritário, de preferência através do abastardamento das instituições democráticas, até que, na prática, se esfumem os restos de democracia – entendida como manifestação da vontade popular.
Para isso é preciso ensinar os povos a comportar-se como um imenso rebanho obediente e, como todos sabemos, já estivemos bem mais longe disso.
O «exemplo da América»
A farsa das eleições presidenciais nos Estados Unidos tornou-se uma prática rotineira, mas fulcral neste processo. Trata-se de impôr o tipo de estrutura gestora da sociedade que melhor serve, em determinado momento, os interesses do establishment norte-americano e do chamado «Estado profundo», entidade totalitária e bipartidária que exerce efectivamente o poder enquanto as administrações passam. No fundo, a entidade não institucionalizada que mexe os cordelinhos da globalização neoliberal como estratégia imperial.
Salta à vista que, ao fim destes quatro anos, Donald Trump teria de ser despedido pelo «Estado profundo». Porque tendo cumprido a vertente autoritária com zelo, burilando o ambiente ideológico fascista – bem ao gosto neoliberal –, fracassou estrondosamente na frente da globalização.
Principalmente, deixou a União Europeia e a NATO a queixarem-se de orfandade e nem o gigantesco investimento militar no cerco à Rússia, a diabolização da China, a asfixia do Irão e os golpes na América Latina lhe valeram.
A actuação casuística e a navegação à vista praticadas por Trump, conjugadas com o estilo trauliteiro, nada polido e errante, terão «desprestigiado a América», no parecer de doutos analistas internos e externos – que tanto o admiraram, por exemplo, a propósito do assassínio do general iraniano Qassem Soleimani e das manobras contra a Venezuela.
Joe Biden é de outra estirpe. Emana do aparelho do Partido Democrata, que na fase actual do neoliberalismo parece corresponder aos interesses do «Estado profundo»: assegura também uma ordem autoritária, é o garante do globalismo e da gestão imperial coordenada com os aliados através da NATO e da União Europeia, não hesita em lançar guerras onde for necessário e de promover golpes e revoluções coloridas onde for preciso, mantém a Rússia e a China sob pressão como os inimigos a abater. E fá-lo de uma maneira bem-falante, polida, restaurando «o exemplo da América».
Por isso, os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia e a própria Comissão Europeia foram lépidos a saudar a «eleição» de Biden, mesmo aqueles que nunca negaram um sim a Trump, quando se tratou de hospedar manobras conspirativas e criminosas patrocinadas pelo presidente norte-americano ou de ajudar nos golpes de Juan Guaidó, na redução do povo venezuelano à fome e no roubo de ouro à Venezuela.
Obviamente todos saberão que não é de Biden que se trata, porque não passará de uma figura mais ou menos virtual de uma gestão também autoritária, belicista e trauliteira – mas com chancela «politicamente correcta» – assegurada nos bastidores pelo triunvirato formado por Hillary Clinton, Barack Obama e a vice-presidente eleita Kamala Harris – eventualmente promovida a presidente ainda antes do fim do mandato.
Estão de regresso os autores de obras de grande relevância para o bem da humanidade como as guerras de destruição da Líbia e da Síria, o golpe fascista na Ucrânia e ainda os golpes no Brasil, Paraguai e Honduras. E, com eles, as patranhas ambientais do capitalismo «verde» e outras causas cavalgadas pela corte de magnatas globalistas que apostam preferencialmente no Partido Democrata, como Bill Gates, Elon Musk, Soros e outros nomes igualmente sonantes.
Quando o «Estado profundo» define os gestores de turno «na América», o sistema funciona de modo a minimizar o erro dos eleitores. Daí o caos eleitoral, as mudanças súbitas das tendências de voto em Estados-chave – a fazer lembrar os apagões nas Honduras que permitiram ao candidato «correcto» passar de terceiro para primeiro – as dezenas de milhares de votos postais dados como perdidos, as pen de última hora contendo carradas de votos num só candidato, enfim, coisas que a acontecer na Venezuela ou na Bolívia, por exemplo, mereceriam golpes de Estado e mesmo invasões militares para restaurar «a ordem democrática».
A comunicação social corporativa não valoriza nada disto, faz até de conta que não existe e, na realidade, esses fenómenos nada têm de novo. Assim foram eleitos George W. Bush e o próprio Donald Trump – que provou agora da receita venenosa que o levou ao trono.
Assim é no país que tem a patente da democracia.
A banalização da excepção
Um dia, se restarem condições de liberdade que o permitam, será feito o balanço da maneira como o neoliberalismo tirou proveito da Covid-19 para acelerar o processo da transição política e social para o autoritarismo, designadamente através da banalização de casos extremos de cerceamento dos direitos cívicos.
A começar por uma investigação séria da origem do próprio vírus SARS-CoV-2, com a qual ninguém pretende realmente preocupar-se, uma vez postulado que surgiu num mercado de peixe em Wuhan, China – embora abundem provas de que já circulava muito antes, por exemplo na Europa e na América.
O espectáculo deplorável a que se assiste, país atrás de país, excepto no caso pontual da Suécia – que ainda resiste a violentas pressões internacionais para mudar de estratégia – é o da proliferação de medidas de excepção, acompanhadas pelo culto do pânico social, alegadamente para combater a proliferação do vírus.
Deixemos de lado as legítimas discussões sobre a real taxa de mortalidade do vírus, sobre a suposta necessidade de impôr estratégias autoritárias com base em dados estatísticos proporcionados por testes sem o adequado enquadramento clínico.
As opiniões sobre essas matérias que contrariam a doutrina imposta foram encafuadas na caixa censória das teorias da conspiração e de lá não podem sair sem riscos para os próprios defensores. Em matéria de liberdade de expressão, o autoritarismo viral precede em muito o dos estados de excepção.
Desde a imposição do uso de máscaras – arrasando quaisquer opiniões que a contestem fundamentadamente – à dança das horas do recolher obrigatório, aos estados de emergência hard ou soft, à arbitrariedade dos limites de ajuntamentos, que tanto podem ser de cinco aqui, de seis além, ou mesmo de oito, se isto ou aquilo, às medidas que pretensamente evitam o descalabro da economia, mas penalizam sobretudo os trabalhadores e os pequenos e médios empresários, à institucionalização abusiva do teletrabalho, o desfile da insanidade é interminável.
Numerosos governos parecem ter perdido de vez a noção do que é o interesse dos cidadãos, sacrificados a sucessivas medidas restritivas supostamente para os proteger do vírus. Não hesitando até, como acontece em Portugal mas está longe de ser caso único, em disseminar a sensação perversa de que o recurso a uma aplicação electrónica invasiva da privacidade pode pôr as pessoas a salvo de contaminação, o que é uma manobra profundamente falsa e traiçoeira, uma exploração inconcebível da boa-fé e da vulnerabilidade dos cidadãos.
Através da União Europeia abundam as medidas restritivas, avulsas ou coordenadas, acompanhadas por chicanas verbalistas em que tenta demonstrar-se que as eliminações das liberdades se fazem para o bem dos cidadãos, aterrados e ameaçados. Trata-se, no mínimo, de um processo cruel, desumano, desenvolvido enquanto se proíbem, na prática, as acções susceptíveis de pôr transparência e alguma serenidade no tratamento de um assunto abordado com opacidade desde o início.
No final do próximo mês de Janeiro, o Fórum Económico Mundial, essa essência do neoliberalismo agora exultante com a «eleição» do mais globalista dos candidatos presidenciais norte-americanos, irá lançar em Davos o «Great Reset», o grande reinício ou grande restauração, tendo como pano de fundo a situação gerada pela pandemia, parecendo até que esta não poderia ter sido mais oportuna.
Num vídeo posto em circulação a propósito dessa iniciativa promove-se o mote «Seja dono de nada e seja feliz». Trata-se da nova ideia de organização da sociedade global num futuro já próximo: automatizada, robotizada, gerida pela inteligência artificial de maneira autoritária e sem qualquer privacidade da pessoa humana.
O mundo em que os «donos de nada» serão quase todos os habitantes do planeta, formando um rebanho «feliz», enquanto a ínfima migalha da elite será dona de tudo.
Significa esta antevisão que, em cima do vírus, há quem faça ambiciosos planos – e quem os faz são os expoentes do neoliberalismo. Isto diz muito sobre a fase que estamos a viver, uma fase seguramente de transição e de experiências.
Uma fase de onde foi arredado o respeito pela democracia.
*José Goulão, exclusivo O Lado Oculto / AbrilAbril
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