Michael Roberts [*]
O fracasso da tentativa dos
proprietários multimilionários dos grandes clubes de formar uma "super
liga" das principais equipas europeias de futebol é apenas um capítulo
ininterrupto na história da mercantilização do desporto em empresas capitalistas
lucrativas, pertencentes e controladas pelo capital. Não é por acaso que a JP
Morgan foi o gestor financeiro do plano da Super Liga – visto
que o banco resume o papel do capital mundial no controlo do desporto moderno.
E não é por acaso que o principal motor para a nova liga tenha sido o
presidente do Real Madrid, um clube de futebol dominado no passado pela
corrupta monarquia espanhola e pelo franquismo, a ala fascista do capital
espanhol. O Real Madrid é um clube controlado pelos sócios, ao contrário da
maioria dos grandes clubes, mas apenas os muito ricos podem ser presidentes e o
clube vive da promoção da marca, como acontece com a maioria dos clubes. E o
Real Madrid tem enormes dívidas.
A Super Liga seria um cartel, destinado a criar um monopólio para os maiores
clubes de futebol na Europa à custa dos clubes mais pequenos e, em última
análise, à custa dos "fãs" ou dos apoiantes desses clubes que em
breve iriam pagar pesadas assinaturas para ver os jogos na TV ou altos preços
para assistir aos jogos nos estádios. Mas tudo isso já estava a acontecer.
O debate sobre este cartel esconde o papel do próprio capitalismo. É a mesma
ideia quando os economistas falam do papel desagradável dos monopólios, como se
o capitalismo competitivo fosse uma coisa boa e justa e bastava que voltássemos
à "livre competição". A realidade é que o futebol já está capitalizado: possuído e
controlado por multimilionários, frequentemente como um seu brinquedo, mas cada
vez mais como um negócio de ganhar dinheiro . Os fãs não têm voto na
matéria; os jogadores e os dirigentes obedecem às ordens. As organizações de
fãs protestam contra a ditadura dos multimilionários, mas não propõem soluções
e limitam-se a dizer "Precisamos de fazer mais do que denunciar a burla deles e
contentarmo-nos com o compromisso de uma Liga dos Campeões alargada. Temos de
rescrever as regras, refazer as instituições e reavaliar o nosso papel enquanto
fãs".
Assim, acabar com este cartel (para já) não altera a realidade da
mercantilização do desporto, ou seja, a substituição do seu inicial "valor
de uso" – as pessoas jogarem e assistirem – pelo valor de troca para lucro.
O desporto tornou-se um negócio logo no início da evolução do capitalismo
industrial em meados do século XIX. Vejamos o futebol. Há cerca de 600
jogadores profissionais na primeira liga em Inglaterra, cerca de 4000
futebolistas profissionais em Inglaterra e cerca de 65 000 jogadores
profissionais no mundo. Claro, da base para o topo, as desigualdades de
receitas ou salários para os futebolistas são gigantescas: de um jogador que
ganha um milhão e meio de dólares por semana a um que não consegue viver do
salário de futebol e precisa de um segundo emprego (claro que estes últimos são
a esmagadora maioria). E ainda há as pessoas que só jogam por prazer, serão cerca
de 250 milhões de jogadores de futebol em todo o mundo.
As desigualdades salariais são as
mesmas noutros desportos importantes a nível mundial: basebol e futebol
americano, críquete e ténis. Mas o que se passa no futebol europeu e no basebol
americano é que, supostamente, deviam ser desportos de massas. Mas a níveis
importantes, nunca foram "desportos de massas". No primeiro, as
mulheres foram excluídas deste jogo, até há pouco tempo. O futebol não era um
desporto de massas, mas um jogo de homens, jogado por homens e a que assistiam
praticamente só homens. As mulheres não "faziam desporto" e muito
menos futebol. O futebol feminino só entrou no mundo mas últimas décadas e
continua pouco apoiado pelo capital e por fãs. Supostamente, as mulheres deviam
ficar em casa a preparar as refeições para quando os homens voltassem de jogar
ou de assistir aos jogos. No caso do críquete, as mulheres deviam fazer o chá e
preparar as sanduíches enquanto os homens estavam a jogar no terreno.
O racismo também foi uma força poderosa no desporto moderno. Quem era negro ou
asiático, estava excluído do desporto profissional. Por exemplo, só em 1947 é
que as equipas profissionais americanas de basebol incluíram um jogador negro.
Até aí, o basebol não era apenas um desporto masculino, era um desporto de
homens brancos, especialmente quando havia dinheiro envolvido.
O críquete teve origem nas aldeias medievais de Inglaterra e de França e era
jogado sobretudo pelos trabalhadores rurais. Mas depressa se tornou num
"desporto aristocrático". A um nível organizado, acabou por ser
dominado pela classe alta e pelos aristocratas (ainda em Inglaterra). Em
Inglaterra, o jogo profissional estava dividido entre os que eram
"jogadores" e eram pagos para jogar e os que eram
"gentlemen", que eram tão ricos que não precisavam de ser pagos. Com
efeito, em Lords, a capital do críquete em Inglaterra, havia entradas separadas
para cavalheiros e para jogadores e todos os anos cada grupo jogava um com o
outro, preservando a tradição da separação.
Claro que o capitalismo moderno pôs tudo isso de parte, quando o dinheiro falou
mais alto. Agora, o críquete tornou-se numa empresa capitalista mundial,
dirigido por multimilionários indianos que utilizam mercenários do críquete de
todo o mundo nas suas competições lucrativas. O críquete tornou-se no desporto
popular no sul da Ásia (um produto do domínio colonialista), mas está
totalmente mercantilizado no topo. Claro, o cartel de futebol da Super Liga já
funciona no críquete na Índia, enquanto as antigas ligas amadoras desaparecem
perante o capital multimilionário. Hoje o críquete é pouco jogado nas escolas
públicas inglesas e os jogadores profissionais são quase todos recrutados em
escolas privadas ou nas "famílias" do críquete. Os jogadores da
classe operária das áreas industriais de Yorkshire e de Lancashire quase desapareceram.
O ténis nunca foi um desporto de massas. Foi inventado por aristocratas
medievais e era jogado nos palácios dos reis e dos nobres como um passatempo. O
ténis manteve o seu estatuto de amador até ao fim do século XX porque era uma
atividade da classe alta. O herói do ténis inglês da classe operária, Fred
Perry, filho de um fiandeiro de algodão de Lancashire, que foi três vezes
campeão em Wimbledon, e vencedor de oito "Grand Slams", nunca foi
reconhecido pelas autoridades porque passou a profissional para ganhar a vida.
O profissionalismo no ténis acabou por triunfar quando o capitalismo viu os
lucros que podiam ser ganhos com o desporto. Hoje o ténis é mais uma operação
globalizada dirigida por patrocinadores multimilionários com base numa intensa
corrida mundial para os jogadores obterem as suas classificações e ganhos.
O ciclismo podia ser considerado um desporto de massas visto que há muitos
milhões de pessoas a andar de bicicleta todos os dias. Mas enquanto há milhões
a pedalar todos os fins de semana por prazer, o desporto profissional tornou-se
mais outro produto comercial controlado por patrocinadores multimilionários e
repleto de consumo de drogas, de corrupção e de corridas combinadas.
O râguebi era um desporto da burguesia, genericamente, embora nos vales
mineiros de Gales tenha ganho adeptos das comunidades locais enquanto desporto
popular (só masculino). Fora disso, era o principal desporto de lavradores nas
áreas mais ricas de Inglaterra, da França e das suas colónias: a Austrália, a Nova
Zelândia e a África do Sul – e nas escolas privadas das classes mais altas. A
Liga de Râguebi foi uma evolução nas áreas da classe operária no norte de
Inglaterra e foi formada profissionalmente, para se poder pagar aos jogadores
da classe operária – uma coisa com que as autoridades da União do Râguebi não
concordaram. A ironia é que o capital acabou por profissionalizar a União do
Râguebi que é onde se encontra hoje o dinheiro, e a liga do râguebi é a parente
pobre.
O jogo de massas do basebol na América foi levado para o novo continente por
imigrantes que jogavam jogos antigos de taco e bola
O futebol era um verdadeiro desporto da classe operária na Europa. Era jogado
inicialmente por trabalhadores rurais em aldeias e depois por operários nas
cidades industriais. Era jogado quase sempre em troca de pouco dinheiro ou
mesmo nenhum. Era seguido por homens da classe operária (e por algumas
mulheres). Para muita gente da classe operária com talento era uma forma de
saírem da pobreza, tal como tinha acontecido com o boxe. Mas o capital assumiu
o controlo nos últimos 150 anos ou mais. O futebol é hoje um negócio dirigido
por multimilionários para sua diversão e financiado cada vez mais pelo capital
global. Os clubes de futebol têm acionistas e estão cotados na bolsa de
valores. A saga da Super Liga é apenas o último capítulo na mercantilização do
desporto pelo capitalismo.
O desporto é hoje manobrado no topo pelo capital para o capital e os melhores
jogadores são como os gladiadores na antiga Roma, muito bem pagos (no topo) e
adorados por milhões, mas trocados rapidamente pelo grupo seguinte, enquanto o
desporto com fins lucrativos continua. Centenas de milhões assistem a esses
gladiadores por diversão, mas poucos praticam esse desporto.
O que a história do futebol e de outros desportos nos conta é que o futebol não
pode voltar a ser um desporto de massas sob o capitalismo. Para lá chegar será
necessário que os estádios e os clubes passem a ser propriedade pública e que
os clubes tenham membros na base de um voto por pessoa, para decidirem as
atividades dos clubes. O desporto deve ser financiado apenas pelo estado, e não
pelo capital. Os jogadores devem ganhar salários razoáveis, tal como qualquer
outra profissão. O capital privado e o desporto com fins lucrativos têm de ser
substituídos por um verdadeiro desporto de pessoas, dirigido pelo povo e para o
povo. A implementação desta abordagem só será possível se fizer parte dum
programa mais amplo de propriedade pública e de controlo democrático na
sociedade em geral.
22/Abril/2021
[*] Economista.
Autor de Marx 200 – a review of Marx's economics 200 years after his
birth , The Great Recession , The Long Depression .
O original encontra-se em thenextrecession.wordpress.com/2021/04/22/football-a-peoples-sport/
Tradução de Margarida Ferreira
Este artigo encontra-se em https://resistir.info/
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