domingo, 11 de abril de 2021

O camelo e o ministro

Joana Amaral Dias* | Diário de Notícias | opinião

Quando os ultra-ricos suplicam por pagar mais impostos, alguma coisa está errada. Quando esses ultra-ricos rogam para que os taxem e, ainda por cima, ninguém lhes liga nenhuma, alguma coisa está mesmo muito errada.

Globalmente, com o coronavírus, os trabalhadores perderam cerca de 4 biliões de euros. Os milionários ganharam quase 4 biliões. Trata-se da maior transferência de riqueza num tão curto espaço de tempo na história da humanidade, e o nosso país não é excepção. Esta semana, a Forbes apresentou o seu ranking anual desta fauna e confirmou níveis de enriquecimento sem precedentes. Em 2020, a coisa inchou de 660 para 2755 mega-afortunados, sendo que 493 são estreias, com uma percentagem considerável a lucrar à tripa-forra durante este negro período.

No meio desta pornográfica abundância para um punhado de gente, há ultra-ricos que gritam na praça pública "venham tributar-nos". O ano passado, um grupo de 83 indivíduos desta especial espécie, provenientes de mais de meia dúzia de países, propôs que os decisores públicos lhes aumentassem os impostos. Até escreveram uma carta: "Os problemas causados e revelados pelo covid-19 não podem ser resolvidos com caridade. Os líderes dos governos têm de assumir a responsabilidade de captar os fundos necessários e gastá-los de uma forma justa - em saúde, educação e segurança. Pedimos que aumentem os impostos cobrados a pessoas como nós. Imediatamente", apelaram. Já os Patriotic Millionaires são um grupo que pretende que estes neófitos sultões e xás também dêem maiores contribuições. Aliás, até mesmo o FMI, pela voz de Vítor Gaspar, sugeriu agora taxar os indivíduos e empresas mais ricas, lembrando que há multinacionais que prosperaram nos mercados de capitais no meio desta hetacombe. O ex-ministro chegou a dizer que é preciso "um esforço mundial para combater a evasão fiscal e assegurar que as grandes empresas pagam a sua justa parte". Também tu, FMI?! Aquele que tem sido responsável (inclusive em Portugal) pela implementação de programas de austeridade que desprotegem trabalhadores, esbulham recursos e degradam a vida das populações? A sério?

Quando os ultra-ricos suplicam para pagar mais impostos, alguma coisa está errada, não é? Será consciência pesada? Culpa? Nada disso. Considerando que qualquer uma dessas grandes fortunas pode colocar o seu dinheiro em refúgios fiscais, é evidente que se trata de pensamento estratégico, noção de que não há capitalismo sem Estado e de que o boom no topo, apesar do brutal declínio da actividade económica, representa o crescimento da concentração de poder político e económico nas mãos de muito poucos. Ou seja, estamos já numa vereda muito arriscada, cheia de alçapões e armadilhas a que os governos deveriam atender. Ironicamente, são alguns dos "donos disto tudo" que mostram realismo, enquanto muitos decisores públicos por esse mundo fora não passam de chusmas de cobardes, receosos de enfrentar poderes fácticos (nomeadamente a questão dos offshores), incapazes de cumprir os mínimos: defender os interesses das populações, que entretanto dormitam, exauridas, atordoadas com a miséria e paralisadas pelo instigado medo. É mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha do que um rico entrar no reino de Deus? Pois. Mas os últimos na fila para entrar nos céus são mesmo os governantes. Embora nem sempre respeitem a ordem.

*Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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