sábado, 15 de maio de 2021

Ideologia de gênero: assim surgiu o espantalho

#Publicado em português do Brasil

Cunhado por cristãos neoconservadores, foi introduzido na política em 2013. Sua evocação, que mobiliza o senso comum pelo pânico moral, serve àqueles que desejam pavimentar caminho autoritário — eliminando quaisquer dissidências

Sônia Corrêa, na Revista Cult | em Outras Palavras

Na vertigem eleitoral de 2018, a fantasmagoria da “ideologia de gênero” desaguou no caudal central da política brasileira. Em janeiro de 2019, o “combate à ideologia de gênero” foi citado como prioridade no discurso presidencial de posse. Desde então, tem sido reiterado, ad nauseam, em falas das autoridades e traduzido em diretrizes, mais ou menos explícitas, de políticas públicas. Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucionais leis estaduais e municipais, aprovadas desde 2014, que proíbem gênero na educação, mas isso não deteve a proliferação de projetos de leis antigênero, seja no campo educacional, seja em outros domínios, como o reconhecimento da identidade de gênero na infância, a participação de atletas trans em competições esportivas e o uso da linguagem neutra de gênero. Desde o ano passado, as forças engajadas nessas cruzadas negaram a gravidade da Covid-19, recusaram medidas de isolamento e prevenção e atacaram as vacinas, contribuindo, portanto, para o fracasso da resposta à pandemia, do qual decorre a hecatombe em que o país está mergulhado no começo de 2021.

Essas ofensivas não começaram em 2018, nem são exclusivamente brasileiras. Para dimensioná-las ou interpretá-las corretamente – tratar de sua invenção, maturação e propagação, das forças nelas envolvidas, de seu caráter transnacional e de seus múltiplos efeitos –, precisamos examinar de perto. Não é possível fazer isso em poucas páginas. Neste breve texto, o que ofereço são notas mínimas sobre os ciclones que têm reconfigurado o campo de disputas muito mais antigas em torno de gênero e sexualidade no mundo e no Brasil.

Antes de 2018 

A erupção de uma clara ofensiva antigênero, no Brasil, se deu por volta de 2013, quando forças católicas e evangélicas, associadas ao movimento Escola sem Partido, deflagraram um ataque feroz contra gênero, sexualidade e raça nos debates do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024). Esses embates foram precedidos, em 2011, pela ácida controvérsia sobre o chamado “kit gay” e coincidiram com o repúdio à lei do matrimônio igualitário na França, uma campanha de mesmo teor na Croácia, uma forte diatribe contra “ideologia de gênero” proferida pelo ex-presidente Rafael Correa no Equador e o ataque a uma resolução sobre orientação sexual e identidade na Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA).  

Mas antes disso já circulava no país o espantalho da “ideologia de gênero”, como definido pela antropóloga Letícia Cesarino. Em 2003, a expressão foi usada por um deputado do Prona em discurso na Câmara Federal e, em 2007, o documento final da reunião do Conselho Episcopal Latino-americano (Celam), realizada em Aparecida, recomendou o firme combate à “ideologia de gênero”, deflagrando uma propagação mais ampla dessa categoria acusatória no país. Estudo de Carla Castro Gomes – Propagação de discursos sobre “ideologia de gênero” no Brasil, publicado em 2020 e disponível no site do Sexuality Policy Watch – informa que, até 2013, essa difusão se deu, exclusivamente, via canais ultracatólicos. A partir de então, ganhou escala ao ser veiculada pela mídia digital evangélica e replicada por pastores, influencers e figuras políticas.

A invenção da “ideologia de gênero”

O “problema de gênero do Vaticano”, que está na origem dessas mobilizações, eclodiu no estágio final de preparação para a IV Conferência Mundial das Mulheres (Beijing), em março de 1995. Esse episódio e seus desdobramentos foram analisados, em detalhe, em artigos recentes, como “A ‘política do gênero’: um comentário genealógico”, de minha autoria (Cadernos Pagu, n. 53, 2018), “‘Ideologia de gênero’ em movimento”, de David Paternotte e Roman Kuhar, e “A invenção da ‘ideologia de gênero’: a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero”, de Rogério Diniz Junqueira (ambos publicados na Revista de psicologia política, vol. 18, n. 43, 2018). 

Sintetizando essas análises, o episódio foi uma reação tardia à adoção do conceito de gênero pelo documento final da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento do Cairo, que acontecera seis meses antes. Na conferência de Beijing, o uso do termo não causou maior controvérsia, embora tenha sido objeto de reservas por parte do Vaticano e do Paraguai. Mas, sem dúvida, inaugurou o que pode ser nomeado como “era da ideologia antigênero”. Iniciou-se a produção de uma vasta literatura de repúdio ao gênero, assinada por autoras e autores não clericais. Ela antecipou a crítica teológica do Vaticano, elaborada nos anos 2000, da qual resultaria, por sua vez, um acervo amplo de documentos vinculando os efeitos nefastos do gênero a múltiplas esferas da vida individual, social e política. 

Considerando a primeira dessas duas ondas, no Brasil, a editora Canção Nova publicou em 2008 uma versão reduzida de um livro icônico: Agenda de gênero: redefinindo a igualdade, da jornalista estadunidense Dale O’Leary, que não usou o termo “ideologia de gênero”, mas “feminismo do gênero”. Já no que diz respeito ao acervo teológico, o Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas foi traduzido pelos frades salesianos no mesmo ano de sua publicação (2003) e, uma vez mais, pela CNBB, em 2007. A “Carta aos bispos da Igreja católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo”, de 2004, também teve ampla circulação. As elaborações coetâneas ou subsequentes sobre o “problema do gênero” basicamente repetem e, em alguns poucos casos, alargam os conteúdos e argumentos desses primeiros textos. 

A tese central dessa literatura é que a teoria feminista do gênero é um engodo porque anuncia a igualdade entre homens e mulheres para destruir a diferença sexual “natural”. O texto da “Carta aos bispos” adiciona novos elementos a essa acusação, associando gênero à “polimorfia sexual”. Eric Fassin, em “Gender and the Democratic Problem of Universals: Catholic Mobilizations and Sexual Democracy in France”, artigo publicado na revista Religion & Gender (vol. 6, n. 2, 2016), observa que esse discurso se sustenta na primazia da ordem natural, evocada em termos dogmáticos e quase darwinianos para obstaculizar transformações em curso nas democracias sexuais contemporâneas. Esse apelo à ordem natural foi levado ao extremo, em 2009, quando Bento VVI equiparou a “ideologia de gênero” com a destruição das florestas, em discurso na Assembleia Geral da ONU. Desde 2013, Francisco, que tem na defesa ambiental uma de suas prioridades, afirmou, em algumas ocasiões, que “gênero é diabólico”.

A hidra de muitas cabeças 

Embora gestadas em berço católico, as formações que impulsionam as cruzadas antigênero são como hidras de muitas cabeças, e essa multiplicidade nos confunde. Na América Latina, estão assentadas sobre redes mais antigas de oposição ao direito ao aborto, orbitando em torno de um núcleo central que é tanto católico, em geral integrista, como evangélico fundamentalista. Envolvem uma gama muito heterogênea de atores seculares (ou aparentemente seculares): políticos de carreira, membros de corporações profissionais (sobretudo nas áreas de saúde e direito), empresários, institutos e ativistas neoliberais e grupos libertários de direita, mas também grupamentos abertamente nazistas e fascistas. Na Europa, e também na América Latina, mais recentemente, correntes feministas que se opõem à identidade de gênero têm se tornado visíveis nessa mesma e heterodoxa ecologia. 

Como semântica política, a “ideologia de gênero” evoca e mobiliza o senso comum. A fórmula é como uma cesta da qual, segundo contextos e circunstâncias, objetos são extraídos para serem alvejados. Aqui o casamento igualitário será atacado, ali serão as leis de violência de gênero, acolá os direitos das pessoas trans. Gênero e sexualidade na educação estão na mira em toda parte e, por vezes, da cesta também sai o direito ao aborto. Com grande expertise comunicacional, as hidras antigênero navegam em condições políticas singulares, como eleições, colando emoções e significantes flutuantes, incitando pânicos morais, agregando públicos. Reativam o conservadorismo inercial das sociedades, produzindo “tempestades perfeitas” que levam a restaurações autoritárias ou à desdemocratização, sendo o Brasil um exemplo evidente. 

As políticas antigênero miram, portanto, várias coisas ao mesmo tempo: as feministas que arquitetaram o conceito de gênero, as pessoas trans e queers que contestam com seus corpos a ordem dita natural e muitos outros alvos situados na esfera biopolítica de gênero, sexualidade, reprodução e parentesco. Mas também, e talvez principalmente, visam à ordem política como tal.

Gênero e marxismo 

Desde sempre, a fórmula “ideologia de gênero” esteve associada ao marxismo. Essa vinculação, que já estava presente no livro de O’Leary e no primeiro documento latino-americano de repúdio à “ideologia de gênero”, publicado por bispos peruanos em 1998, tem sua expressão mais evidente no O livro negro da nova esquerda, de Agustin Laje e Nicolás Marquez (2016), amplamente lido no Brasil. O argumento central desses escritos é que gênero é uma versão mascarada de marxismo. Contudo, o significado e os efeitos dessa associação não têm sido objeto de maior atenção. 

A origem de tal vinculação deve, sem dúvida, ser buscada na larga tradição antimarxista religiosa, seja católico-integrista, evangélico-fundamentalista ou simplesmente vaticana. Esse repúdio que remonta ao século 19 foi reativado, nos anos 1930, no registro dos chamados fascismos clericais, e uma vez mais durante a Guerra Fria, deixando rastros profundos em muitos contextos nacionais, inclusive no Brasil. Nesse exame genealógico, cabe também contabilizar o perenialismo, ou tradicionalismo, objeto do recém-traduzido livro de Benjamim Teitelbaum, Guerra pela eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista (Unicamp, 2020) – obra especialmente relevante no Brasil pois, como se sabe, o tradicionalismo é a fonte de inspiração de Olavo de Carvalho. Essas vertentes religiosas ou transcendentais repudiam o marxismo como pensamento materialista e igualitário, mas também como sintoma das “máculas da modernidade”. São discursos que, com frequência, vilipendiam, num só fôlego, as revoluções francesa, mexicana e russa e as rebeliões dos anos 1960. 

Mas são também incontáveis, e muito antigas, as fontes seculares de repulsa combinada ao marxismo e ao feminismo. Entre elas estão os discursos nazifascistas dos anos 1930, que associam o “judeu-marxismo” com a democracia sexual, assim como posições neoliberais seminais, como a expressa por Ludwig von Mises em Socialismo, análise econômica e sociológica, de que o feminismo que busca remover os “limites naturais” impostos ao destino humano é “um filho espiritual do socialismo”.  E, no final do século 20, o marxismo foi objeto de novas leituras críticas que arrastaram mais água para o mesmo moinho. 

Muitas delas foram elaboradas por autores do campo de estudos estratégicos nos Estados Unidos – como Pat Buchanan, Samuel Francis, Paul Gottfried, Gerald Atkinson, William Lind e Paul Weyrich –, que desde os anos 1980 e com mais intensidade depois da queda dos muros, estigmatizaram Antonio Gramsci e a Escola de Frankfurt como graves ameaças ao capitalismo e ao Ocidente. No que diz respeito a rebatimentos dessas teses no contexto brasileiro, Eduardo Costa Pinto e João César Rocha têm rastreado sua influência sobre militares bolsonaristas, e nos Estados Unidos o historiador Benjamin Cowan vem mapeando conexões muito anteriores entre Paul Weyrich e a direita religiosa, em particular a organização Tradição, Família e Propriedade (TFP). Mas há também vertentes europeias de direita a considerar, como o grupo de pesquisa coordenado por Alain de Benoist, que, tendo 1968 como ponto de partida, desenvolveu críticas ácidas à esquerda cultural ou neomarxista. E também há autores italianos que conformam o chamado “gramscianismo de direita”, além de vozes espanholas, ambas correntes menos conhecidas no Brasil.  

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Ainda que suas lentes de leitura não sejam as mesmas, essas várias vertentes avaliam que, apesar da ruína do socialismo real, a denominada “revolução gramsciana” foi muito bem-sucedida, pois alterou a arquitetura normativa das democracias liberais e penetrou na própria lógica do capitalismo. A “ideologia de gênero”, inventada pelo catolicismo neoconservador nos 1990-2000, não só faz eco a discursos dos anos 1920-1930 na Europa, como, sobretudo, foi habilmente enxertada sobre os extratos recentes de repúdio ao chamado marxismo cultural. Dessa hibridização resultou um recurso muito eficaz para nutrir as lutas – discursivas, imagéticas, digitais e das ruas – por hegemonia política, lutas em que as novas direitas estão hoje plenamente envolvidas. A ideologia e as cruzadas antigênero – grafadas como repulsa concomitante ao materialismo e igualitarismo da modernidade – incitam, a um só tempo, pânicos morais e pânicos políticos. É preciso haver, portanto, análise, crítica e resistência nessas duas claves.

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*Sonia Corrêa é pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e cocoordenadora do Observatório de Sexualidade e Política.

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