Daniel Oliveira* | TSF | opinião
Para acelerar a produção de vacinas, os Estados Unidos da América, o Reino Unido e a União Europeia "garantiram tudo às farmacêuticas", começa por dizer Daniel Oliveira. No seu espaço habitual de Opinião, na TSF, o jornalista considera que estes três blocos de influência mundial "deixaram" que as farmacêuticas determinassem a oferta, "apesar do financiamento público que receberam".
No entanto, frisa Daniel Oliveira, "o poder de meia dúzia de empresas não se pode sobrepor a milhões de vidas e à reabertura da economia global".
"Há laboratórios que não estão a produzir uma única vacina, numa assombrosa exibição de desperdício de recursos." O cronista esclarece que o que está em causa não é nem "nacionalizar" nem "expropriar", mas, sim, "libertar as patentes, para garantir a produção em massa para todo o mundo".
Daniel Oliveira defende, por isso, "o direito de os governos tomarem as medidas necessárias para suspender as patentes, de forma a dar prioridade à saúde pública", direito esse que é reconhecido pela OMS. "É ao abrigo de uma exceção prevista no direito internacional que governos e instituições o têm exigido", explica.
Para o jornalista, o pedido de levantamento das patentes "nada tem de radical". Os Estados Unidos já quebraram a questão das patentes, por motivos de saúde pública, "quatro vezes durante este século", uma das quais em relação ao Tamiflu, aquando do aparecimento da gripe das aves. Daniel Oliveira considera que o mesmo deveria ser feito agora: "Isso não impede que as farmacêuticas tenham lucro, impede que o seu lucro custe vidas."
"Sempre que o defendi, ouvi umas piadolas dos liberais da moda, que apresentam sempre as suas convicções ideológicas como evidências técnicas", comenta o jornalista. "Quem as conteste só pode ser um radical."
O primeiro-ministro teve "a mesmíssima postura, quando, há umas semanas, lhe perguntaram sobre essa possibilidade", lembra Daniel Oliveira. "Com ar professoral, repetiu a lição que aprendera na véspera e explicou que libertar patentes não serve para nada." O cronista ironiza: "Seguramente desconhecedores destas certezas, governos de 80 países, entre os quais a Índia, que é um dos maiores produtores de vacinas do mundo, pediram este levantamento."
Também a Organização Mundial de Saúde, a Organização das Nações Unidas, os Médicos Sem Fronteiras e muitos prémios Nobel acompanharam a exigência, reforça. "Não saberão do que estão a falar? Serão todos uns radicais em luta contra o mercado livre?", questiona Daniel Oliveira.
Mas quando Joe Biden, Presidente do país "farol da liberdade", decidiu apoiar a quebra das patentes, as certezas de muitos "foram abaladas". O jornalista sustenta que, um dia depois, Ursula von der Leyen ainda "demonstrou disponibilidade para discutir essa hipótese". Não foi preciso passarem muitas horas "para que o peso dos lóbis que transformam Bruxelas na Meca da ortodoxia liberal fizesse sentir a sua força".
Charles Michel, "que depois do episódio da Turquia continua no lugar"- reaviva Daniel Oliveira -, rejeitou que no levantamento das patentes estivesse "a solução milagrosa, como se houvesse alguma solução que o seja". Também a Pfizer e a alemã BioNTech "tornaram pública a sua oposição", sendo imediatamente acompanhadas pelo Governo alemão, que, segundo Daniel Oliveira, "tem liderado a campanha contra a AstraZeneca".
"Desde o início deste processo estamos entregues aos interesses empresariais que os governos com mais poder na União Europeia representam", salienta o cronista. "Como, ao contrário de Washington, Bruxelas não depende do voto, por cá não haverá novidade."
Daniel Oliveira vai mais longe, reconhecendo que, "de facto, não chegaria levantar as patentes", já que "seria preciso produzir de forma descentralizada". Mas não haverá um aumento da capacidade de produção se as patentes não forem levantadas, sublinha.
De acordo com o jornalista, "seria necessário dar credibilidade às vacinas, depois do processo de sabotagem reputacional liderado por governos que se envolvem em guerras entre corporações". O "absurdo" chega ao ponto de a República Democrática do Congo e a Costa do Marfim, "onde se morre cedo e por tudo e mais alguma coisa", manterem armazenadas doses de vacinas da AstraZeneca, "por causa de um risco inferior ao da pílula", evidencia Daniel Oliveira.
"A partir da Europa, a desinformação tomou conta das redes sociais", o que teve um impacto na comunicação dos países mais pobres. O jornalista alerta para a necessidade de que, quando as vacinas chegarem aos países mais pobres, seja reconquistada a confiança entre as populações. "Depois de fabricadas e distribuídas, é preciso que as vacinas cheguem aos mais pobres desses países, ou acontecerá com elas o que está a acontecer com o oxigénio na Índia: os mais ricos, seguindo a máxima de que o mercado salva a vida de alguns, açambarcam-nas para si."
Daniel Oliveira avisa então: "De nada serve estarmos vacinados se a parte mais pobre do mundo continuar a viver em pandemia." Há países que não receberam uma única vacina. Do Brasil, da África do Sul, da Índia ou de qualquer outro canto do mundo virão novas variantes, contra as quais "não conseguiremos lutar".
"Não é só o mercado que não funciona para vencer uma pandemia. O egoísmo nacional também não. Infelizmente a União Europeia só conhece as duas coisas: o mercado e o egoísmo europeu que está ao seu serviço."
* Texto redigido por Catarina Maldonado Vasconcelos
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