domingo, 2 de maio de 2021

Portugal | Flores de estufas

Joana Amaral Dias`| Diário de Notícias | opinião

Odemira já estava carcomida pela cupidez. Agora definha pela estupidez humana. Eis um retrato de Portugal.

Comecemos pela ganância. A partir de 2015, o governo de Costa autorizou a construção frenética de estufas, numa extensão de dezenas de quilómetros, sufocando a região em plástico. Umas quantas empresas descobriram nesses territórios desertificados - já previamente abandonados pelo Estado - um eldorado para a horticultura, fruticultura ou floricultura e tudo se encheu de emigrantes, muitos fugitivos e refugiados da miséria, de perseguições, guerras, cataclismos. Em 2019, uma resolução ministerial decretou o enlatar de 16 pessoas por pré-fabricado, no âmbito de um "regime especial e transitório aplicável" de 10 anos.

Ali coabitam agora mais de 20 nacionalidades empilhadas em contentores, em aldeolas de metal. A sua vida é campo/cama, cama/campo, pagam para dormir em beliches, camaratas ou pensões lotadas e recebem três euros à hora para servir de sol a sol, debaixo de quilómetros de plastificados, por vezes a temperaturas altíssimas. É este esclavagismo (mais rentável posto que não obriga patrões a assegurar refeições nem a usar a força) que muitos empresários lamentam que os portugueses rejeitem. Ou seja , exploram-se e sugam-se seres humanos para explorar e sugar a terra. A Barragem de Santa Clara esvaziada e os terrenos agrícolas intensivos de monoculturas a engolir o que resta da biodiversidade do Parque Natural, químicos a entranharem-se na terra. Ao lado, a linha de costa vicentina, onde se estendem das mais belas praias do país. Serão estes dois gomos compatíveis?

Escusado será dizer que, já depois de a população ter duplicado, os serviços públicos nunca foram reforçados e passou a haver tráfico humano. Mas o governo nunca quis saber desta mão-de-obra descartável, dos invisíveis seres das estufas.

Passemos agora à estupidez. Quando não morre ninguém com coronavírus em Odemira há mais de dois meses (apenas dois falecimentos na primeira semana de Fevereiro e não há internados no Hospital de Santiago de Cacém), começou-se a testar em barda pessoas saudáveis, que até à data eram vistas a ir e vir do trabalho sem problema. Ou seja, abriu-se a caça ao positivo. A comunicação social logo ateou o pânico, falando de "vila enterrada", "pesadelo", etc., quando se detectaram 80 casos (muitos falsos positivos) num concelho 17 vezes maior que Lisboa e com menos 23 mil habitantes. Perante isto, a solução do governo foi confinar pessoas saudáveis e alojá-las no maior empreendimento turístico do concelho (que já estava em dificuldades), arruinando-o, destruindo mais emprego e dividindo os "autóctones" entre os racistas e os à rasca, com o comércio vazio e as rendas em risco. Enfim, Costa transformou o paraíso do Suodeste Alentejano num inferno.

Certo é que nem o poder central nem o local proibiram as condições medievais destes trabalhadores. Ninguém assaca responsabilidades às empresas, nem o farão, a "bem" da economia e da competitividade assentes na escravidão. Lembram-se quando o Chega propôs o confinamento dos ciganos portugueses? É triste, mas, afinal, foi mesmo este governo que decretou o encerramento de uma minoria étnica num gueto. Mas deixem lá, rápido se esquece e daqui a umas semanas já está tudo na mesma. Até nos bater à porta.

*Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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