segunda-feira, 12 de julho de 2021

As Cacimbas da Môngua e o Berço de Terra

Artur Queiroz*, Luanda 

Minha mãe trauteava uma velha canção enquanto limpava o chão, cozinhava, lavava a roupa na selha que era um barril de vinho do Puto cortado ao meio, ou íamos à capopa buscar água. E quando se calava, eu pedia-lhe mais e mais. Ela, pacientemente, repetia aqueles versos que me encantavam. É assim: “No teu bercinho de terra/ um sino te vai embalar/enquanto de manhãzinha/a chuva te limpa a carinha”. Mamã, por que o menino tem um bercinho de terra? Porque quando morremos a terra nossa mãe passa a ser nosso berço. Mamã, por que a chuva limpa a carinha do menino? Porque a criança ainda não foi enterrada, está estendida à chuva. De todas as coisas tristes, a mais triste é esta: Ninguém enterrar um morto.

Um dia fui ao Cunene em serviço de reportagem. A seca começava nas ruas do Lubango e acabava em Namacunde. Os pastores corriam o nundo à procura de água e pastos. Nem uma coisa nem outra encontravam nos caminhos armadilhados de espinheiras. As mulolas à beira da estrada estavam ressequidas. O capim sequioso. As mulheres punham os olhos chorosos no horizonte e nada acontecia. O tempo decorria lentamente, como quem quer recusar a última hora, a última notícia, o último suspiro. Naquele ano até a fazenda “Gata e Borges” estava seca e o gado definhava à fome e à sede.

O grande rio corria abundantemente. Lembrei-me do coronel Artur de Paiva, que um dia escreveu uma monografia na qual defendia que era um crime deixar a água do rio Cunene correr para o mar, deixando nas suas costas a seca, a fome, a miséria, o desespero.

Mais tarde caiu-me nas mãos um livro técnico intitulado “Carta de Aptidão para Regadio da Zona de Capelongo - Alto Cunene”. Comecei logo a imaginar açudes, desvios do caudal do rio para as planícies infinitas entre a Cahama e Xangongo. Os pastores felizes, as mulheres embalando as crianças nos acampamentos precários de quem tem alma nómada.

Lá em baixo esperava-me um dos choques mais brutais da minha vida. Em todas as aldeias existiam seres humanos esqueléticos, olhos encovados, cabelos hirsutos. Era o retrato da fome na sua versão mais trágica. O que escrever? Nenhum censor deixaria publicar uma só fotografia daqueles seres humanos. Nem um parágrafo do texto ficaria intacto. Estávamos ali para vermos como a fome faz de nós seres tão irrelevantes que só as moscas nos dão importância, poisando em nós. O pior estava para chegar.

Na Môngua resolvi ir à aldeia Oshana Sha Ukwangula visitar as cacimbas eternas, onde a água brota límpida como as lágrimas de mães dolorosas. Pelo caminho encontrei um pai aflito, com um menino ao colo, inerte. Parámos e o homem pediu boleia até às cacimbas, porque a criança estava a morrer com sede. O homem acomodou-se no banco de trás e eu olhei para a criança. O rosto era de fome. Os lábios gretados, muito fechados, como querendo agarrar toda a comida do mundo. Toda a água das cacimbas.

Chegámos às cacimbas e também ali a água escasseava. Conseguimos encher uma lata daquelas do óleo Mobil. O pai foi vertendo água nos lábios da criança. Nenhuma reacção. O homem começou a soluçar, enquanto espargia água sobre o rosto e os cabelos do menino. A quietude da morte tem sempre os mesmos sinais. Dei por mim trauteando a velha canção da minha mãe: “No teu bercinho de terra/ um sino te vai embalar/enquanto de manhãzinha/a chuva te limpa a carinha”.

Na época escrevi a crónica de uma reportagem falhada, mas foi para o lixo. Mesmo que fosse publicada, tinha o mesmo destino. Os jornais diários, no dia seguinte, só servem para as zungueiras embrulharem as suas mercadorias a retalho.

Muito mais tarde voltei ao Cunene. Inundações! A água espraiava-se a perder de vista. Jovens mães, com os filhos às costas, lançavam às lagoas formadas pelos aguaceiros tropicais, mosquiteiros impregnados de insecticida a fazerem de redes de pesca. Em cada lance, vinha peixinho miúdo que depois de seco, garantia pitéu para a família. Grande alarido, gargalhadas, alegria. A quem nada tem é proibido não amar migalhas. Aqueles peixes fizeram a fortuna de muitas mães.

O Presidente João Lourenço mudou a Presidência da República para a província do Cunene, onde vai trabalhar, alguns dias, na qualidade de titular do Poder Executivo. Mui grato ficaria a sua excelência se na agenda de trabalhos incluísse a aprovação de um projecto que, de uma vez por todas, permita o aproveitamento integral da água do Baixo Cunene como já se faz em alguns pontos no curso do rio mais próximo da mãe dos rios Cunene e Cuanza, que nascem a poucos metros de distância um do outro, lá na Babaera. Se é possível regadio no Alto Cunene, também deve ser em todo o seu curso até à foz.

Que nunca mais uma criança do Cunene morra à sede, sem chuva nem água de cacimba que, de manhãzinha, lhe lave a carinha. Peço deferimento, respeitosamente.

* Jornalista 

Imagem do Jornal de Angola – 9 de Julho de 2021.

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