segunda-feira, 23 de agosto de 2021

A tomada de Cabul e o clichê da tragédia anunciada - e ignorada

# Publicado em português do Brasil

Maria Manuela de Sá Bittencourt e Vitória Martins* | Carta Maior

No último domingo, 15 de agosto, como epílogo de uma intensa e bem-sucedida ofensiva, os talibãs tomaram Cabul e o palácio presidencial, abandonado pelo presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, que fugiu para o Tadjiquistão. Bastante criticado, Ghani alegou que seu objetivo foi “evitar um banho de sangue afegão”. E, assim, os talibãs voltam ao poder, após quase 20 anos de ocupação do território afegão, por parte dos Estados Unidos, em resposta aos atentados de 11 de setembro em 2001.

A tomada da capital foi o desfecho indesejado de uma semana agitada por esforços diplomáticos dos EUA. Buscou-se reunir o apoio dos países da região para que estes não reconhecessem o governo talibã, caso o comando do país fosse tomado à força e sem uma transição pacífica. No domingo anterior, 8 de agosto, uma semana antes de o grupo fundamentalista se estabelecer no poder, o enviado especial americano para o Afeganistão, embaixador Zalmay Khalilzad, viajou para Doha, no Catar, onde, até então, os talibãs mantinham um escritório político. O intuito era pressionar o grupo a voltar à mesa de negociação em detrimento da ofensiva militar contra o governo Ghani.

Ao longo da semana passada, diferentes autoridades americanas buscaram assumir uma postura coordenada, diante da rápida degradação do status quo no Afeganistão. Em um briefing aos jornalistas na segunda-feira, 9 de agosto, o secretário de Imprensa do Pentágono, John F. Kirby, afirmou que o secretário da Defesa, Lloyd J. Austin III, acreditava, até o momento, que as forças afegãs, ainda sob o comando de Ghani, eram capazes de liderar e controlar a situação no país, combatendo os talibãs. Kirby enfatizou ainda que governo americano auxiliaria o Afeganistão “quando e onde” fosse “viável”, demonstrando uma não responsabilização política e militar dos EUA.

A negação dos EUA até ao último minuto

Em 10 de agosto, o secretário de Imprensa foi incisivo (e evasivo), ao receber muitas perguntas relativas às estratégias militares aplicadas contra o Talibã, afirmando: “Não vou avaliar diariamente o progresso do Afeganistão, cumprindo […] suas responsabilidades de defender seu país e seu povo. Isso é assunto para eles falarem. O que posso dizer é que continuaremos a apoiá-los onde e quando for viável…”. A reação e o tom da porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, não foram muito diferentes.

No dia posterior, 11 de agosto, Psaki também deixou claro que a Guerra no Afeganistão não era mais prioridade para a Política Externa do Governo Biden e que os EUA acompanhariam a situação do mesmo modo que acompanham as questões internas dos demais Estados da comunidade internacional. Neste mesmo dia, ainda fazendo uso de um discurso aparentemente desconectado da situação no terreno, Kirby declarou: “Não acredito que alguém pense que é tarde demais para a paz. Não estaríamos falando sobre um acordo político e sobre a necessidade de um acordo negociado, se acreditássemos que essa paz não era possível”.

Os passos dados pelo governo americano na quinta-feira, 12 de agosto, deram indícios mais diretos sobre a vindoura derrocada de Cabul para mãos talibãs. O porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price, anunciou a redução do número de civis americanos em sua embaixada na capital do Afeganistão. Segundo Price, o secretário de Estado, Antony Blinken, e o secretário Lloyd Austin conversaram com Ghani, nesta manhã, para tentar coordenar uma ação que permitisse o envio temporário de uma equipe adicional, responsável por essa retirada de pessoal, para o aeroporto internacional de Hamid Karzai.

A dois dias da tomada de Cabul e do governo pelos talibãs, os EUA continuavam a fazer negociações diplomáticas com os países da região e a darem demonstrações políticas de apoio ao Afeganistão. Em paralelo a essas tratativas, Washington não apenas manteve como acelerou a retirada de suas tropas. Ratificou ainda, e mais uma vez, sua decisão de não intervir diretamente na situação em curso.

Além da pressa em retirar militares e demais funcionários americanos, a sequência de declarações de membros do alto escalão do governo americano é outro indicativo que deixa estreita margem de dúvida sobre o que se sabia que viria a acontecer, sendo apenas uma questão de tempo – a derrubada de Cabul pelos talibãs –, especialmente com os EUA se ausentando do conflito.

Nesse momento, o governo Ghani já havia perdido o controle da capital da província de Uruzgan, Tarin Kowt e, segundo um jornalista local, o gabinete do governador, a sede da polícia e a prisão central estavam agora sob domínio talibã.

Pouco antes de Ghani renunciar ao governo e sair do país, Blinken conversou com o presidente do Afeganistão sobre a urgência da situação. Segundo Price, os EUA reafirmaram seu compromisso em manter uma relação diplomática e de segurança forte com o governo afegão, além de oferecer suporte ao povo deste país. Um governo que chegaria ao fim em algumas horas apenas.

‘Objetivos foram concluídos’, diz Biden sobre Afeganistão

Em discurso na Casa Branca, no dia 16, Biden comentou a rapidez com que Cabul foi tomada e insistiu em que os interesses americanos não consistem em manter as tropas no país do Oriente Médio. Ao se referir à invasão, deflagrada pelos EUA após o 11 de Setembro, o democrata disse que os dois principais objetivos – pegar quem os atacou e se certificar de que a Al-Qaeda não usaria mais o Afeganistão como base para atacar – foram concluídos e que nunca se teve a intenção de “construir uma nação”, nem de “centralizar a democracia” no país. Frágil, esta declaração de Biden não resiste a uma rápida verificação em discursos do então presidente George W. Bush e de outras importantes figuras de seu gabinete feitos na esteira dos atentados e no âmbito da Guerra Global ao Terror.

No mesmo pronunciamento, Biden destaca ainda as políticas efetivas das missões americanas de contraterrorismo em diversos países e regiões, como Somália, Península Arábica e Síria, onde os EUA não contam com presença militar permanente. Sob esse argumento, o presidente americano diz que, se preciso for, aplicará tais medidas no Afeganistão. Assim, alega, será possível monitorar qualquer ameaça direta a Washington e mobilizar uma resposta rápida e decisiva, em caso de necessidade.

Além de reafirmar o que os Estados Unidos fizeram pelos afegãos, China e Rússia também foram citadas como nações que “gostariam de ver os americanos gastarem bilhões de dólares em recursos e atenção para tentar estabilizar o Afeganistão”.

Na “Operação Aliados Refugiados”, anunciada em julho por Biden, foram retirados pelo menos 2.000 afegãos elegíveis para vistos especiais de imigração, com suas famílias, para os Estados Unidos. Também houve a expansão para aqueles que foram funcionários de embaixadas, ou agências, ligados aos EUA. Ao ser questionado sobre a demora nesse processo de retirada, o democrata respondeu que parte dos cidadãos ainda estava esperançosa de que “tudo ficaria bem”, além de o próprio governo afegão e seus aliados desestimularem a organização de um “êxodo em massa”.

Com o cenário atual, a missão em Cabul conta com 6.000 soldados americanos, que vão ajudar na retirada de funcionários civis americanos e de aliados do país. A embaixada foi fechada, e diplomatas, transferidos, o que significa que a presença diplomática dos EUA ficará consolidada no aeroporto internacional até segunda ordem.

Por fim, Biden pede em seu pronunciamento que os talibãs não atrapalhem a retirada das tropas do Afeganistão, com a finalidade de atender ao prazo de 31 de agosto.

* Maria Manuela de Sá Bittencourt é pesquisadora júnior do OPEU, bolsista de Iniciação Científica do INCT-INEU/PIBIC-CNPq e graduanda em Defesa e Gestão Estratégica Internacional do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: Linkedin.

* Vitória Martins é pesquisadora voluntária do OPEU, pesquisadora do LEMADRIN – Laboratório de Estudos de Meio Ambiente, Desenvolvimento e Relações Internacionais (UFRJ) e graduanda em Relações Internacionais do IRID/UFRJ. Contato: vitoriamartins488@gmail.com.

*Publicado originalmente em 'OPEU'

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