segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Bolsonaro oferece circo porque não pode assegurar o pão

# Publicado em português do Brasil

Thiago Sá* | Carta Maior

Apenas lideranças militares, liberais e evangélicas podem esperar algo dele. Para você, que não lidera nenhum destes grupos, Bolsonaro reserva aprovação de centenas de agrotóxicos, devastação ambiental, precarização dos serviços públicos e indexação dos preços dos combustíveis ao mercado internacional

Prestemos atenção: o presidente sempre faz questão de demonstrar sua indiferença e seu desprezo pelos seus governados. “Não sou coveiro”, “todo mundo vai morrer, mesmo”. Não são apenas bravatas para afastar jornalistas e agradar a claque do cercadinho. A negligência no enfrentamento da pandemia confirma: ele não está nem aí para você, nem para mim ou para qualquer um de nós.

Apenas lideranças militares, liberais e evangélicas podem esperar algo dele. Os primeiros ele brinda com isenção da reforma previdenciária, cargos, pensões, mordomias e outros privilégios estamentais; os segundos, com austeridade fiscal, retirada de direitos, Estado mínimo, privatizações e desregulamentação do trabalho; os terceiros, com dinheiro, visibilidade e apoio para seu projeto de poder.

Para você, que não lidera nenhum destes grupos, Bolsonaro reserva aprovação de centenas de agrotóxicos, devastação ambiental, precarização dos serviços públicos e indexação dos preços dos combustíveis ao mercado internacional. Gasolina rumo a sete reais o litro. Ao invés de fazer o gesto da arminha com a mão, talvez conviesse fazer o da bombinha de gasolina, semelhante e mais urgente. Para gente como você, Bolsonaro guardou sucessivas reformas trabalhistas que praticamente extinguiram a formalidade e as proteções trabalhistas mínimas. Uma reforma previdenciária que acabou com as chances de aposentadoria digna. E, quando veio a pandemia, ele cruzou os braços; em seguida, empenhou-se em viabilizar a transmissão do vírus, recusando qualquer coordenação de seu enfrentamento e sabotando as iniciativas de outros entes da federação.

Bolsonaro instituiu o abandono como política de governo. A desresponsabilização do Estado em relação aos cidadãos. Cada indivíduo que cuide de si próprio e se entenda com os demais. A pessoas como você e eu, ele diria “danem-se”, “se virem (sic)”. “E daí?”, disse ele sobre os mortos por sua negligência genocida.

Este é o projeto bolsonarista: o indivíduo com liberdades irrestritas e isento de responsabilidades em relação a seus concidadãos, sem nada a esperar do Estado. Abandonado à própria sorte, sem horizontes e com ódio. E armado, sobretudo, porque um projeto como este tem destino certo. Por isso, tanta ênfase à livre iniciativa e à ausência do Estado; à família e aos valores familiares: para que ninguém espere nada além de si mesmo. E tenham munição.

Por isso a morte lhe é banal. Por isso fala tanto em tortura, ditadura, golpe, matar, arma, tanque, Ustra. As estatísticas de Covid-19 são, sem dúvida, seu legado, coerentes com seu discurso. Bolsonaro se apressa para armar a população, mas se atrasa para vaciná-la. Realmente, nossas vidas parecem não lhe interessar. Os brasileiros não são assunto dele.

E assim ele vai se isentando do que lhe compete. Por isso, Bolsonaro e suas redes de desinformação se empenham tanto em emplacar o desprezo pelos direitos trabalhistas e sociais e pelas políticas públicas. Por isso se esforçam tanto em convencer-nos de que políticas de redistribuição de renda para situações de pobreza extrema incentivam preguiçosos (é plausível que alguém prefira R$70 para não fazer nada a um salário-mínimo de R$1.100 trabalhando?) e que direitos e empregabilidade são mutuamente excludentes. Aliás, esta é uma chantagem frequente no discurso liberal. Precarização dos direitos dos trabalhadores não gera emprego; o que os gera é mercado aquecido por políticas desenvolvimentistas e anticíclicas. Querem nos fazer crer que políticas de ação afirmativa deterioram a meritocracia, como se ela existisse. Propagandeiam homeschooling como direito da família e não como dever do Estado. Até da educação das crianças ele quer se eximir. Quer legitimar a própria omissão.

Enquanto isso, militares monopolizam cargos, comem picanha e leite condensado superfaturados e conduzem negociações obscuras e trambiqueiras com intermediários de vacinas. Questionado sobre políticas para emprego, o presidente disse que lamenta, mas, que, com o avanço da tecnologia, muita gente vai ficar sem emprego, mesmo. Como se não fosse com ele. Desmatamento exponencial? Ele pune os agentes do Ibama e desacredita o Inpe pelas fotos da tragédia ambiental. Mais de 14% de desemprego? Ele culpa o IBGE. Culpa o termômetro pela febre.

Em compensação, o que Bolsonaro pode oferecer a você, que lê este artigo? Desfiles de carcaças de aparatos militares, cruzadas morais, motociadas de machões ressentidos, ameaças de insurreição contra os poderes, lives lunáticas, baixo calão, promessas retóricas de restauração de valores conservadores e de restabelecimento de hierarquias sociais. O que Bolsonaro tem a entregar? Embate contra fatos científicos e negacionismo.

Ele conclama pessoas como nós à insurreição contra inimigos imaginários porque não pode, não quer e não sabe como derrotar os inimigos reais: miséria, fome, desemprego, falta de vacinas, fechamento de empresas, inflação e pandemia fora de controle. Justamente quando se foram, pelas mãos dele, as mínimas garantias trabalhistas e previdenciárias. Porta-se como animador de auditório, não como chefe de Estado.

Ele só lhe oferece circo porque não pode lhe assegurar pão. Mas lhe promete armas, para quando a disputa pelo pão se acirrar. Bolsonaro não está nem aí para você.

*Thiago Antônio de Oliveira Sá é sociólogo, professor e doutor em Sociologia

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