José Soeiro | Expresso | opinião
A lei que o Parlamento aprovou foi boicotada de dois modos. O primeiro foram as exigências burocráticas, critérios de acesso e condições de recurso tão apertadas que excluem a maioria dos cuidadores e cuidadoras. A segunda forma de boicote foi a não aplicação do que foi legislado pela Assembleia
Foi finalmente divulgado o relatório final da Comissão que ficou responsável pelo acompanhamento da concretização do Estatuto do Cuidador Informal. Vale muito a pena ler o documento, porque dá um retrato dos problemas que temos pela frente e apresenta muitas sugestões relevantes, em direções nem sempre coincidentes, o que resulta da opção, acertada num documento deste tipo, de incluir todas as propostas das várias organizações com perspetivas diferentes sobre o tema.
O diagnóstico apresentado confirma o que se vinha tornando notório nos últimos meses: ao transpor a lei para a prática, o Governo limitou de tal forma o seu alcance que o balanço é absolutamente decepcionante. O dinheiro orçamentado para o estatuto não chegou aos cuidadores: 92% da verba aprovada pelo Parlamento não foi sequer gasta. Dos mais de 800 mil cuidadores estimados a nível nacional, apenas 977 viram o Estatuto reconhecido. Em todo o país, só 352 pessoas recebiam, a 31 de maio de 2021, o subsídio de apoio ao cuidador. Várias das dimensões previstas na lei - como o acesso em condições especiais à Rede Nacional de Cuidados Continuados, o reforço do apoio domiciliário para descanso ao cuidador, as licenças na lei laboral - nem sequer foram iniciadas. Passado mais de um ano de projetos-piloto, permanecem pura e simplesmente por concretizar.
A lei que o Parlamento aprovou foi boicotada de dois modos. O primeiro foi uma catadupa de decretos e portarias que a regulamentaram com tais exigências burocráticas, com critérios de acesso e com condições de recurso tão apertadas que excluem a maioria dos cuidadores e cuidadoras. Um exemplo é a obrigação dos cuidadores terem a mesma morada fiscal que a pessoa cuidada, sem considerar que é frequente quem cuida manter a sua morada, mesmo que esteja temporariamente em casa dos pais para dar apoio, por exemplo. Outro é a condição de recursos injusta e desadequada que o Governo definiu quando regulamentou o subsídio. Outro ainda é o facto de ter sido decidido que os e as pensionistas eram automaticamente excluídas, o que não resulta de forma alguma da lei, mas sim de um diploma posterior da autoria do Governo. Tal como não resulta da lei que quem não tenha já um complemento por dependência não possa ser incluído pelo Estatuto.
Uma segunda forma de boicote foi a não aplicação do que foi legislado pela Assembleia. As medidas laborais são um exemplo gritante, porquanto a lei estabeleceu que tinham de ser apresentadas passados 120 dias da aprovação do estatuto, ou seja, em janeiro de 2020! PS e PSD, é facto, votaram contra as propostas para inscrever as alterações à lei laboral diretamente no Estatuto, remetendo para aquela fórmula que deixou a tarefa nas mãos do Executivo, sempre em nome da “concertação social”. O efeito foi que, até hoje, não aconteceu nada. Também não avançou - nem sequer em modo experimental - o alargamento do “descanso do cuidador”, que a lei previu em várias fórmulas, por exemplo através de vagas em lares para estadias temporárias das pessoas cuidadas ou do reforço dos cuidados domiciliários a tempo inteiro durante alguns dias por ano para descanso de cuidadores e cuidadoras. O acesso facilitado (em termos de pagamento) à Rede Nacional de Cuidados Continuados não deu tampouco o primeiro passo, nem nos projetos-piloto, o que é incompreensível. O registo por equivalência à entrada de contribuições (para proteger a carreira contributiva) também não foi feito. Do pagamento do Seguro Social Voluntário através de uma majoração do subsídio ao cuidador também não há notícia.
É certo que a lei existente resultou de um compromisso difícil, que suscitou os votos a favor de todos os partidos na fase final, mas com algumas matérias essenciais chumbadas pelo caminho. O Estatuto poderia e deveria, já em 2019, ter afastado a concepção familialista que não permite reconhecer cuidadores-vizinhos, deveria ter incluído alterações ao Código do Trabalho em vez de uma declaração de intenções que fica à mercê do veto dos patrões, deveria ter previsto a gratuitidade do acesso à Rede de Cuidados Continuados pelo menos 22 dias por ano para férias e descanso dos cuidadores, deveria ter estabelecido o correspondente período gratuito em apoio domiciliário a tempo inteiro, deveria ter garantido o reconhecimento das carreiras contributivas. Mas mesmo aquilo que se conseguiu colocar na lei, e não era de todo irrelevante, o Governo, em grande medida, não concretizou.
Assim, vamos estar a lutar ao mesmo tempo pelo cumprimento da lei e pela sua alteração, agora que o Estatuto se irá generalizar ao país. Não faltam sugestões de aspetos a melhorar, que constam do Relatório acabado de divulgar: relativos à lei laboral, claro, mas também à diversificação de respostas, aos produtos de apoio, ao recenseamento de cuidadores e cuidadoras, à certificação de competências, à redefinição do conceito e da prova de “dependência”, à definição de um valor fixo do subsídio de apoio e à eliminação da atual condição de recursos, ao envolvimento das autarquias, ao modo de aferição do consentimento da pessoa cuidada, ao apoio à requalificação das habitações ou à ampliação multidisciplinar do apoio domiciliário. Por outro lado, já é tempo de avançar com uma rede pública de respostas de cuidados formais, que não fique dependente das pressões do setor social privado ou do setor lucrativo, nem limitada ao modelo da institucionalização
Portugal é um dos países com maior volume de cuidados informais e com menor investimento em cuidados continuados formais (apenas 0,4% do PIB, o que compara com uma média europeia de 1,7%, ou com valores de 4% em países como a Holanda). Não criámos ainda uma resposta democrática para o envelhecimento e para o aumento da dependência. Continuamos a imputar às famílias – e, dentro destas, às mulheres - quase todas as responsabilidades pelo cuidado, sem sequer as compensarmos com transferências sociais dignas. Não definimos ainda o cuidado como um direito nem como uma responsabilidade coletiva, permanecendo aprisionados a um modelo de externalização para as famílias e para instituições do setor social, sem que o Estado assuma o seu papel na provisão de cuidados. Mantemos uma colossal desigualdade de género neste campo e um mercado que tem nos cuidados clandestinos uma das suas mais inquietantes expressões.
Estas questões não serão enfrentadas com anúncios sem concretização prática ou com remendos dentro deste paradigma. Precisamos de pensar numa grande transformação do nosso regime de cuidados. Em torno dele joga-se profundamente o tipo de sociedade que queremos ser.
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