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O novo velho continente e suas contradições: A ressaca do Brexit
Na origem de tudo está a descrença dos próprios ingleses na vitória do Brexit. Os defensores da saída da União Europeia não confiavam na própria campanha e David Cameron, primeiro ministro na época e que convocou o plebiscito sobre a retirada, não preparou o país para essa possibilidade
Celso Japiassu | Carta Maior
A falta de comida nos
supermercados de prateleiras vazias, restaurantes fechando as portas e as
fábricas interrompendo a produção fazem os mais velhos se recordarem dos anos
da Segunda Guerra, quando os aviões alemães faziam blitzes aéreas e
bombardeavam as cidades inglesas. Só faltam as sirenes de alarme para a
montagem de um cenário mais realista areproduzir os dias de 1940 quando foi
travada no céu de Londres a Batalha da Inglaterra.
São os efeitos do Brexit, ou a ressaca do dia seguinte calando tardiamente as
passeatas que comemoraram a saída do Reino Unido da União Europeia, depois de
uma avassaladora campanha de opinião pública promovida pela direita política.
Os problemas na cadeia de abastecimento depois do fechamento das fronteiras já
fizeram os empresários pedirem uma ação urgente do governo. A deliciosa
"smoothie", uma bebida feita com morangos e banana está em falta no
McDonald's, bem como todas as bebidas engarrafadas nas 1.250 lojas da cadeia no
Reino Unido. A rede Nando's fechou 50 dos seus restaurantes por falta de frango
e os restaurantes de luxo Novikov avisou que está ficando sem carne.
A associação empresarial CBI-Confederation of British
Industrycomunicou que os estoques no varejo estão no menor nível dos
últimos 40 anos. E advertiu que os problemas serão agravados a partir de
outubro, quando serão adotados novos controles sobre produtos de origem animal
importados da União Europeia. A falta de suprimentos para o consumo da época de
Natal é outra preocupação. Os comerciantes temem um segundo Natal de poucas
vendas.
Estas são apenas algumas das atribulações depois da bem sucedida campanha da
direita pelo Brexit.Sem contar os conflitos de interesse com a Irlanda e a
Escócia, que junto com a Inglaterra formam o Reino Unido. São problemas que
ameaçam afetar negativamente a recuperação da economia quando passar a pandemia
da Covid-19.
Os trabalhadores estrangeiros, agora com dificuldades para obterem visto de
entrada, são a principal força de trabalho da organização logística do paíspois
os britânicos recusam os trabalhos de longa jornada e baixos salários. A falta
dessa mão de obra retida nas fronteiras provoca grande desorganização em toda a
cadeia de abastecimento.
Os ingleses também perceberam e reclamam que ficaram mais caras as compras
feitas pela internet em países da União Europeia.
E também os empresários protestam contra o aumento da burocracia e da papelada
que agora é exigida para os negócios com a Europa, além da queda de 41 por
cento nas vendas de exportação.
Trapalhadas
Na origem de tudo está a descrença dos próprios ingleses na vitória do Brexit.
Os defensores da saída da União Europeia não confiavam na própria campanha e
David Cameron, primeiro ministro na época e que convocou o plebiscito sobre a
retirada, não preparou o país para esta possibilidade.
Os ingleses sempre se sentiram superiores. Não se consideravam parte da
Europa,que eles chamam até hoje, com uma certa displicência, de "o
continente". Há uma anedota que ilustra esse sentimento. Num dia de pesado
nevoeiro que cobria o Canal da Mancha, os jornais ingleses deram manchete em
grande tipologia: Nevoeiro no Canal: o continente isolado.
Ancorada numa poderosa Marinha, a Inglaterra construiu um império que já no
Século 18 lhe dava grande prestígio e força internacionais, mesmo depois de ter
perdido sua rica colônia americana. Era tão vasto o seu império que nele o sol
nunca se punha, dizia-se. Sua estratégia geopolítica teve sempre como objetivo
evitar que no continente europeu surgisse uma potência rival. A Inglaterra foi
palco da revolução industrial que ampliou o seu poder e só com a chegada do
século XX a Alemanha e os Estados Unidos vieram a fazer sombra ao seu poder. O
esforço que lhe custou sair como uma das nações vencedoras da Segunda Guerra
Mundial afetou a sua força eos movimentos de independência na Índia e na África
enfraqueceram a espinha dorsal do grande e poderoso império.
Na década dos anos 1950 os países da Europa ganharam a consciência de que a
união entre eles poderia gerar uma escala capaz de competir com as duas
superpotências que disputavam então a hegemonia mundial, os Estados Unidos e a
União Soviética. A ideia não sensibilizou os ingleses e Churchill resumiu sua
posição: "nós britânicos temos a nossa própria comunidade de nações",
disse referindo-se à Commonwealth.
O caso escocês
Os escoceses não ficaram satisfeitos com a saída da União Europeia. Sentiram-se
forçados a algo que não era do seu interesse, pois o plebiscito que resolveu o
Brexit não foi majoritário em seu território. A primeira-ministra Nicola
Sturgeon declarou que a Escócia vai procurar a independência e depois vai
aderir à UE. O referendo sobre a independência tem de ser convocado pelo
primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que se recusa a fazê-lo.
Nas eleições de maio passado para o parlamento escocês o Partido Nacional
Escocês-SNP conquistou 64 cadeiras e os verdes, 8. Ambos defendem a
independência enquanto os conservadores de Boris Johnson ficaram em segundo
lugar com 31 parlamentares. E começou a queda de braço pela realização do
referendo da independência.
"Simplesmente não há justificativa democrática para Boris Johnson, ou quem
quer que seja, tentar bloquear o direito do povo escocês de escolher seu
próprio futuro", afirmou a primeira-ministra em um discurso.
Imagens: 1 - Manifestantes protestam contra o resultado da votação do Brexit, em julho de 2016 (Getty Images); 2 - Reprodução/bit.ly/3tiOaEs; 3 - A primeira-ministra da Escócia declarou que o país buscará sua independência para depois aderir à União Europeia (Getty Images)
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