quarta-feira, 1 de setembro de 2021

A 'trend'* dos refugiados afegãos

Benedita Menezes Queiroz* | opinião

No mês passado, a Convenção de Genebra de 1951 sobre o estatuto dos refugiados fez 70 anos. Movidos pelo imediatismo que nos é tão familiar, e do qual também sou vítima, festejámos a efeméride com tweets bonitos sobre a incontornável importância deste texto para proteção internacional dos refugiados. Menos de um mês depois, é com choque que somos confrontados com o horror da realidade afegã e, mais uma vez, é com o mesmo imediatismo que reagimos, por exemplo, à fotografia do bebé resgatado por um soldado americano para receber tratamento médico no aeroporto de Kabul. Esta imagem será, provavelmente, transformada em cartoon dentro de poucos dias (tal e qual o que aconteceu à imagem do menino sírio, Aylan Kurdi, que morreu afogado no mar Egeu em 2015 – ainda se lembram dele?). E, seguindo o percurso habitual, desta imagem, como de tantas outras, acabará por cair no nosso esquecimento até que a próxima tragédia humana desencadeie mais uma enxurrada de reações digitais ativistas.

A proteção dos mais vulneráveis, sobretudo aquela que resulta dos direitos humanos, evoluiu na sequência das Guerras Mundiais e de graves crises humanitárias – a Convenção de Genebra de 1951 (apesar de não ser um clássico tratado de direitos humanos) é exemplo disso mesmo, assim como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos de 1953. A verdade é só uma: com as fragilidades inerentes a um regime que não tem por objetivo proteger todos os que precisam de auxílio, estes textos, adotados em meados do século anterior, são ainda hoje aquilo que servirá de base à proteção dos milhares de refugiados afegãos que fogem da perseguição, desde o início da retirada norte-americana do território do Afeganistão.

O leitor mais atento perguntará se, desde a Segunda Guerra Mundial até aos dias de hoje, nenhuma outra crise humanitária foi suficientemente grave para servir de mote à atualização do trabalho dos plenipotenciários da Convenção de Genebra de 1951. A resposta é: sim e não. Sim, porque na última década não faltaram crises de todo o tipo (incluindo do tipo migratório) para justificar o fortalecimento da proteção internacional dos refugiados. E não, porque faltou vontade política aos Estados para agir de forma efetiva quanto às consequências dessas crises.

O debilitado (e desacreditado) Sistema Europeu Comum de Asilo é a maior prova disso. Talvez nunca tenhamos tido acesso a tanta informação sobre o que não funciona num regime de proteção internacional como temos em relação a este. Sem grande dificuldade, compreendemos que muito do que falha se deve, de uma forma geral, à falta de solidariedade sistémica dos Estados Membros nestas matérias. Fenómeno que se revelou, clara e manifestamente, na resposta descomprometida dos Estados, e duvidosa da União Europeia, à crise migratória de 2014-2018.

Em concreto, é no desequilíbrio que resulta da aplicação do Regulamento de Dublin, em termos de partilha de responsabilidades de quem acolhe estas pessoas, que reside o maior vício deste sistema. Apesar de todos estes dados relevantes para a reforma do Sistema Europeu Comum de Asilo, o Novo Pacto para as Migrações, apresentado há um ano pela União Europeia, propôs alterações cirúrgicas e formais que alteravam o título do desditoso Regulamento de Dublin, a quem todos apontam o dedo, mas que manteve, essencialmente, o status quo de um regime de proteção falhado, deixando intocada a regra do país de primeira entrada como responsável pelo processamento do pedido de asilo. A recente resposta da Grécia à ameaça do aumento de requerentes de asilo vindos do Afeganistão reflete as consequências da preservação dessa regra. Estenderam-se habilmente os muros vigiados da fronteira com a Turquia, arriscando sem pejo o respeito pelos direitos humanos, nomeadamente o princípio do non-refoulment, com o intuito único de evitar o cenário dantesco que se viveu nas fronteiras gregas em 2015.

*Publicado em Sapo 24.pt

*"Trend" - significado em inglês: Tendência, dinâmica, evolução trajectória…

Nota PG: Atualmente a comunicação social e outras ilhargas similares tendem a veicular expressões em inglês de forma gratuita e absolutamente injustificado. Talvez só porque sim, porque é chique, porque advém de autores assimilados que se estão borrifando para a defesa da bonita língua portuguesa, porque querem mostrar que sabem inglês, por mania, por ‘cagança’ (expresso em português corrente não chique). Enfim, gente que, diz-se, que sabe muito, são 'dotores'… Sabem tanto que são assimilados anglófonos que estão a contribuir estupidamente para “matar” a língua portuguesa. Lamentável, mas é o que mais vimos em jornais, revistas, e noutra comunicação social, em rádio e televisão. Enfim… Claro que são livres de assim procederem. Pois. Gente colonizada... por opção. Acrescente-se que, neste texto, especificamente, cabe elogia-lo pela qualidade. objetividade e pertinência. Fiquemos gratos, por isso.

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