– O Reino Unido actuou para a instauração ditadura militar-empresarial que perdurou por 21 anos
John McEvoy [*]
A 31 de Março de 1964, foi lançado o golpe militar contra o Presidente brasileiro João Goulart. A democracia do Brasil já era frágil e Goulart tentava lançar um ambicioso programa de Reforma Agrária ao mesmo tempo que alargava o voto à população analfabeta do Brasil, incendiando a elite política, militar e empresarial do país.
O golpe culminou em 1 de Abril de 1964, e deu início a uma ditadura militar de 21 anos. Durante este período, mais de 400 indivíduos foram mortos pelos militares brasileiros e muitos mais foram "desaparecidos", torturados ou presos.
A mão de Washington no golpe é
bem conhecida. Logo após a posse Goulart na presidência, em
O Information Research Department (IRD), uma unidade do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico que actuou como braço de propaganda secreto durante a Guerra Fria, também esteve activo no Brasil. Embora os EUA tenham desempenhado claramente um papel mais destacado, ficheiros recentemente desclassificados revelam a mão oculta da Grã-Bretanha no golpe através do seu apoio a agitadores chave.
Vasta utilização de material IRD
Em 1962, um engenheiro brasileiro chamado Glycon de Paiva ajudou a fundar o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais ( IPES). Apesar de o IPES se apresentar como um instituto educacional, o seu verdadeiro objectivo era "organizar a oposição a Goulart e manter dossiers sobre qualquer pessoa que Paiva considerasse inimiga".
O IPES estava intimamente ligado à elite militar, política e empresarial do Brasil. Com o general Golbery do Couto e Silva como seu chefe de gabinete, a organização compilou 400 mil dossiers sobre "inimigos" de esquerda do Brasil, cultivou um exército de informadores e propagandeou contra o governo.
Após o golpe, o IPES ascendeu a Serviço Nacional de Informações (SNI) do Brasil, o qual "actuou como espinha dorsal do sistema de controlo e repressão do regime militar".
Ficheiros recentemente desclassificados detalham o apoio britânico ao IPES. Em 6 de Fevereiro de 1962, o oficial de campo da IRD Robert Evans descreveu como "um dos desenvolvimentos mais significativos que afectou as minhas actividades foi a formação do IPES".
Uma semana mais tarde, Geoffrey McWilliam, oficial do IRD, recebeu uma carta acerca de "Organizações Anti-Comunistas de Empresários" no Brasil. O remetente permanece classificado e parece serem os serviços de segurança britânicos.
A carta observava que "uma vez que a principal tarefa do IPES durante os próximos meses será assegurar que o Congresso não caia em mãos comunistas nas eleições de Outubro, presumivelmente terão muita utilização para material IRD".
Foi notado com preocupação, contudo, que o IPES estava a ser demasiado descarado em relação ao apoio estrangeiro. A carta prosseguia dizendo que
"O IPES, no seu desejo de mobilizar empresas estrangeiras, está actualmente a ser bastante arrojado (publica conjuntos do seu manifesto em inglês, com cartões de adesão para assinar na linha pontilhada, etc). Nós (e os americanos) estamos a tentar convencê-los a serem mais discretos a este respeito e a desencorajar as empresas britânicas de tornarem o seu apoio demasiado explícito".
Pouco tempo depois, empresas britânicas no Brasil criaram uma fundação para providenciarem mais discretamente fundos ao IPES – um esquema que teve "a aprovação de departamentos do Embaixador de Sua Majestade e do Foreign Office".
O Ministério dos Negócios Estrangeiros também concordou em prestar assistência directa ao IPES. A funcionária sénior da IRD Rosemary Allott permitiu que o IPES recebesse "o nosso material", mas o financiamento directo das suas operações editoriais não foi aconselhado.
Onze dias antes do golpe, Robert Evans observou: "mantenho um estreito contacto com a filial carioca do IPES sobre as edições em língua portuguesa da literatura do IRD e para obter material para as forças armadas".
Acrescentou que esperava encontrar um general do exército "que parece ter desenvolvido um método singularmente bem sucedido para lidar com reuniões de organizações de frente comunistas".
Após o golpe, a embaixada britânica reviu as operações clandestinas da IRD no Brasil. "Antes da Revolução o nosso principal esforço de IRD não foi feito com o conhecimento e aprovação das autoridades", escreveu o embaixador britânico Leslie Fry.
Numa aparente referência ao IPES, Fry afirmou que "alguns dos contactos do IRD revelaram-se ser os topos de icebergs bastante grandes, com liderança responsável. [...] Uma ou duas personalidades importantes têm andado por aí a falar da sua contribuição [oficial de campo da IRD Evans] para a derrota do comunismo no Brasil. É bem verdade, mas não é a espécie de coisa que queiramos dizer".
Produção de de documentos forjados
No início dos anos 60, Evans também concordou em tomar "medidas limitadas como e quando a oportunidade se apresentar" para combater a actividade de esquerda no campo estudantil do Brasil.
Uma dessas acções envolveu o acesso a "pontos estratégicos onde os estudantes se reúnem" durante a noite e a afixação de propaganda anti-comunista "em salas de conferência, salas de aula, lavabos, cantinas, etc". Era uma operação que "podia, naturalmente, ser aplicada igualmente bem por todo o continente".
De acordo com documentos obtidos ao abrigo da Lei da Liberdade de Informação (Freedom of Information Act), o IRD também colaborou com os EUA produzindo documentos falsificados.
Em 12 de Março de 1964, o secretário de Estado norte-americano Dean Rusk queixou-se a funcionários brasileiros sobre um Congresso de Solidariedade com Cuba "a realizar no Rio com participantes de todo o mundo".
Três dias depois, o oficial do IRD J.L. Welser escreveu à embaixada dos EUA em Londres sobre a produção de "algum tipo de folheto negro" para perturbar o evento. A propaganda "negra" significava falsificação de documentos – uma operação arriscada em que os planeadores da IRD raramente se envolveram.
"Tentámos fazer isto e não achámos muito fácil", escreveu Welser ao seu contacto nos EUA.
"Entretanto, fizemos um folheto que anexei a esta carta e que poderá ter interesse em ver". [...] Lamento ter sido tão lento acerca disto, mas não é fácil escrever uma coisa desta espécie".
Pouco tempo depois, Welser foi felicitado "por um excelente trabalho".
O IRD também ajudou a União Cívica Feminina (UCF), um movimento de mulheres católicas que mobilizou manifestações de rua anti-governamentais em massa nas semanas que antecederam o golpe.
Em Junho de 1964, Evans gabou-se de que a UCF havia sido "alimentada com uma dieta constante de material da IRD durante mais de um ano" e "desempenhou um papel de liderança em eventos recentes". J. MacKinnon, funcionário da embaixada britânica, concordou, observando como "as mulheres desempenharam um papel vital na revolução de 1 de Abril".
Após o golpe
O golpe foi saudado pelos planeadores britânicos. Em Julho de 1964, Fry observou que "o objectivo imediato do IRD está alcançado".
No ano seguinte, funcionários britânicos discutiram as cerimónias de boas-vindas ao general Costa e Silva, instigador do golpe de estado, na visita à Grã-Bretanha. "As honras que mostrarmos ao general", escreveu Fry em Dezembro de 1965, "podem muito bem revelar-se uma contribuição tão importante para a venda de equipamento britânico ao Brasil quanto os méritos do próprio equipamento", referindo-se à venda de armas.
Depois de se ter tornado presidente do Brasil, em 1967, Costa e Silva assinou o Acto Institucional nº 5, que permitiu o encerramento do Congresso, removeu o habeas corpus, proibiu reuniões políticas e providenciou uma carta branca para a tortura. Estas medidas foram recebidas "com satisfação por aqueles preocupados com a indústria e o comércio", observou o oficial de campo da IRD R. A. Wellington.
Apesar das violações maciças dos direitos humanos, a IRD continuou "a ajudar o Brasil discretamente no domínio da contra-subversão" durante a década de 1970. O seu material cobria "temas anti-comunistas [...], Black Power, a situação estudantil e a posição da Grã-Bretanha a respeito de Gibraltar".
Por esta altura, Evans estava a produzir literatura que minimizava o impacto da intervenção estrangeira no golpe de 1964.O jornalista brasileiro Geraldo Cantarino, que em 2011 publicou um livro pormenorizado sobre as operações do IRD no Brasil, comentou as mais recentes revelações:
"Este trabalho confirma que o IRD esteve secretamente activo no Brasil durante muitos anos, unindo forças com a cruzada anti-comunista dos EUA e com a propaganda anti-comunista engendrada por instituições brasileiras".
Ele acrescentou: "É agora possível reafirmar que este esforço combinado contribuiu para a desestabilização do governo do Presidente Goulart, abrindo caminho para um regime militar que mudou o curso da história recente do Brasil".
12/Novembro/2021
[*] Jornalista independente. Escreve para a International History Review, The Canary, Tribune Magazine, Jacobin e Brasil Wire.
O original encontra-se em Declassified UK e consortiumnews.com/2021/11/12/britains-hidden-hand-in-brazils-1964-coup/
Este artigo encontra-se em resistir.info
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