segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

O comércio mundial, o avanço tecnológico, o fetiche do capitalismo

# Publicado em português do Brasil

Eduardo Camín* | em Carta Maior

Na era digital, cada vez mais governos têm adotado políticas destinadas a impulsionar o crescimento por meio da inovação e modernização tecnológica, e as repercussões econômicas nacionais associadas à pandemia de covid-19 estão levando os países a fortalecer essas políticas.

A digitalização hoje significa um futuro atraente, e também traz uma esperança. O perigo é que, quando uma palavra se torna o veículo de todas as aspirações sociais, ela inevitavelmente se esvazia em um certo grau de conteúdo. O problema é que a reflexão anterior sobre seu sentido real, material, foi e é tão breve, que poderia torná-la mais um fetiche do capitalismo neoliberal.

Um relatório recente, que examina essas tendências e o papel que o comércio e a OMC (Organização Mundial do Comércio) desempenham nesse contexto, destaca como a mudança para a digitalização e as economias baseadas no conhecimento estão fazendo a diferença, assim como a crescente importância da inovação e da tecnologia para o crescimento econômico.

No âmbito das chamadas “novas políticas industriais”, as políticas governamentais visam deslocar a produção nacional para novas tecnologias digitais instrumentais e, ao mesmo tempo, facilitar a modernização de indústrias maduras.

Histórico de negociações

A Declaração sobre Comércio Eletrônico Global, adotada na 2ª Conferência Ministerial, em maio de 1998, exigia o estabelecimento de um Programa de Trabalho para examinar todas as questões relacionadas ao comércio eletrônico global que afetam o comércio.

Esse mesmo programa foi adotado pelo Conselho Geral em setembro de 1998. Desde então, tem havido discussões regulares sobre comércio eletrônico em vários órgãos da OMC.

Dezenove anos depois, na 11ª Conferência Ministerial, em 2017, vários grupos de membros da OMC com ideias semelhantes fizeram declarações conjuntas, com o objetivo de avançar nas discussões sobre comércio eletrônico, elaborar uma estrutura multilateral para facilitação de investimentos, implementar um grupo de trabalho para microempresas, pequenas e médias empresas(MiPymes) e avançar sobre as regulamentações nacionais na esfera do comércio de serviços.

Em dezembro de 2020, esses membros publicaram um texto que serviria de base para futuras negociações. A iniciativa manteve seu objetivo de alcançar avanços substanciais antes da 12ª Conferência Ministerial da OMC, prevista para o final de 2021, a qual acabou sendo frustrada posteriormente, devido ao aumento de contágios provocada pela nova onda da pandemia.

Iniciativa Conjunta sobre o Comércio Eletrônico

No entanto, desde janeiro de 2021, 86 membros da OMC, que representam 90% do comércio mundial, participaram dessas discussões. A iniciativa foi convocada pelos embaixadores George Mina (Austrália), Yamazaki Kazuyuki (Japão) e Tan Hung Seng (Cingapura).

Por sua vez, um grupo de membros da OMC mantém discussões separadas no âmbito da Iniciativa Conjunta sobre o Comércio Eletrônico. De modo geral, as negociações são baseadas em uma série de propostas de texto dos diferentes participantes, que são distribuídas a todos os membros da OMC. São realizadas em um contexto no qual se combinam sessões plenárias, grupos de reflexão e reuniões de pequenos grupos.

As questões levantadas nas apresentações dos membros são discutidas em seis temas principais: viabilização do comércio eletrônico, abertura e comércio digital, confiança e comércio digital, questões transversais, telecomunicações e acesso a mercados. Os co-organizadores incentivaram os participantes a considerar as oportunidades e desafios enfrentados pelos membros, incluindo países em desenvolvimento e países menos desenvolvidos, assim como as pequenas empresas.

Apesar dos desafios impostos pela pandemia, as negociações continuaram avançando no formato virtual, já que, devido à pandemia decovid-19, a necessidade de desenvolver padrões globais sobre o comércio digital tornou-se ainda mais urgente.

Uma convergência para a inovação e a evolução digital

Em muitos países, as políticas governamentais procuram melhorar o ambiente de negócios ou orientar a estrutura da atividade econômica, para determinados setores, tecnologias ou tarefas onde as perspectivas de crescimento econômico ou bem-estar social serão maiores se essas intervenções forem realizadas.

Geralmente, a motivação dos governos para implementar políticas em nível setorial é impulsionar o crescimento de longo prazo, aumentar a renda e a produtividade e, assim, promover o empreendedorismo, a inovação, a transferência de tecnologia, o treinamento técnico e a concorrência, como políticas concretas para atingir esses objetivos.

Dan Tehan, ministro do Comércio, Turismo e Investimento da Austrália, em conjunto com Gan Kim Yong, ministro de Comércio e Indústria de Cingapura, e com os ministros japoneses Yoshimasa Hayashi (Relações Exteriores) e Jiochi Hagiuda (Economia, Comércio e Indústria), destacou a boa convergência alcançada em oito artigos até agora.

O chanceler japonês observou que “embora a 12ª Conferência Ministerial tenha sido adiada, essa negociação sobre comércio eletrônico continua sendo uma das áreas-chave para a OMC como organização promotora do comércio mundial. É importante continuar dando resultados a essa negociação, com o objetivo de avançar no próximo ano”.

O Japão tem defendido o conceito de “livre fluxo de dados com confiança” (DFFT, por sua sigla em inglês) e vê um valor significativo na realização desse conceito. Enquanto mantém a inclusão dos membros participantes, o Japão, como um dos que convoca essa iniciativa, continuará tentando acelerar a negociação, para alcançar um resultado de alto nível, inclusive sobre as regras de livre fluxo de dados.

Os ministros disseram que os resultados já alcançados em áreas importantes das negociações trarão benefícios importantes, incluindo o aumento da confiança do consumidor e o suporte para negócios online. Defendem organizar o programa de trabalho da iniciativa para garantir a convergência na maioria das questões até o final de 2022.

Por sua vez, a diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, destacou que “o trabalho realizado promete mais estabilidade e previsibilidade para consumidores e empresas, em um setor da economia digital em rápido crescimento. A pandemia destacou a importância do comércio eletrônico como uma ferramenta inclusiva, ajudando as pequenas empresas a ter acesso aos mercados internacionais, especialmente as lideradas por mulheres”, disse.

Em sua declaração, os país que convocaram a iniciativa manifestaram o apoio dos participantes à continuação da moratória multilateral do comércio eletrônico. Disseram considerar crucial que, entre os participantes,se mantivesse a prática de não cobrança de direitos aduaneiros nas transmissões eletrônicas. Também destacaram a importância de apoiar a participação dos membros dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos na iniciativa, incluindo a implementação de compromissos.

Navegamos por um mar de dúvidas; entre a avareza e o poder

A digitalização hoje significa um futuro atraente, e também traz uma esperança.O problema é que a reflexão anterior sobre seu sentido real, material, foi e é tão breve, que poderia torná-la mais um fetiche do capitalismo neoliberal.

O desenvolvimento imparável da tecnologia é inversamente proporcional ao crescimento tanto da perspectiva quanto da consciência do ser humano. Os poderosos, cegos pela ganância e pela ânsia de poder, veem os avanços técnicos como oportunidades de controle para aumentar e perpetuar o domínio do grupo de poder sobre as classes média e trabalhadora.

A concentração de know-how tecnológico nos oligopólios e nas megacorporações provoca um descompasso no equilíbrio de forças entre essas e os Estados-nação –já não tão soberanos –as pequenas e médias empresas, e os cidadãos comuns. Todos esses grupos citados carecem de equipamentos industriais de ponta, maquinárias e algoritmos inteligentes e eficientes, além de uma infraestrutura nova e resistente, razão pela qual acabam se curvando às condições impostas pelas corporações.

O atual avanço tecnológico, cuja curva de crescimento se torna cada vez mais exponencial com o passar do tempo, pode dar origem a dois paradigmas de civilização totalmente opostos. O caminho escolhido dependerá, em grande medida, do poder exercido pela sociedade como um todo – ausente dos debates –, sobre os legisladores das diferentes nações e sobre a constituição do poder econômico. É nossa responsabilidade e de mais ninguém.

Enquanto isso, as videoconferências ainda estão nas mãos de figuras secundárias, com os principais protagonistas alheios ao cinturão prateado que os aprisionou. O objetivo final do avanço tecnológico deve ser o alcance global de sua exploração, não a subjugação derivada dele.

Eduardo Camín* – publicado em Carta Maior

*Eduardo Camín é jornalista uruguaio, credenciado na sede da ONU em Genebra, e analista associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

*Publicado originalmente em rebelion.org | Tradução de Victor Farineli

Sem comentários:

Mais lidas da semana