sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

O PODER DO SILÊNCIO NA LUTA PELA LIBERDADE

Martinho Júnior, Luanda

“CÍRCULO 4F” - EM HONRA DO 4 DE FEVEREIRO DE 1961 EM ANGOLA E DE TODAS AS HEROÍNAS ANÓNIMAS DO POVO ANGOLANO

Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis

Mas a vida
matou em mim essa mística esperança

Eu já não espero
sou aquele por quem se espera

Sou
eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida…

In “Adeus à hora da largada” – https://agostinhoneto.org/poesias/adeus-a-hora-da-largada/https://www.podomatic.com/podcasts/vilamorena/episodes/2007-03-25T18_56_26-07_00.      

01- Por estes dias foram a enterrar duas quase ignotas heroínas angolanas cuja vida, desde sua juventude, estiveram iluminadas pelos primeiros passos de António Agostinho Neto em Luanda, na saga libertária que verticalmente o motivou, colocando-o na direcção da vanguarda do povo angolano que era o MPLA!

Elas foram muito para além da fasquia das mães que ensinavam os filhos a esperar, por uma simples razão: estavam com seus próprios entes queridos muito próximas do líder da vanguarda libertária e implicaram-se com suas famílias na chama da liberdade que iria ser reproduzida nas torrentes da libertação popular de Angola que naté estes dias!... 

 Empenharam-se no intrincado da luta por que a chama de liberdade que rompia em plena clandestinidade, impunha que os primeiros comités se forjassem desde o berço de modestas famílias patrióticas que residiam nos subúrbios ou mesmo nas imediações da capital, que ganhavam legítima consciência de liberdade, de forma substantiva por via da experiência e dos traumas, passo a passo, mergulhando seu empenho desde logo na ruptura contra o colonialismo nos próprios acontecimentos de então e procurando ir mais longe, contra o que era essência das razões causais da forja de tanta opressão!

Com António Agostinho Neto os que lhe eram próximos, além da ruptura contra o colonialismo, não estavam perdidos sem bússula, nem eram mais pasto duma qualquer emanação etno-nacionalista que os prendessem ao chão ou a voos curtos e rasteiros como o voo de pardais e isto por que a luta de libertação sob a liderança de Agostinho Neto foi sempre para alcançar a altura das águias, ganhando os horizontes mais rasgados e aspirando os mais vaporosos ventos do futuro!

Nessa altura, essas águias foram sujeitas pelos répteis de então, à dramática tentativa para parar esses ventos com as mãos e por isso, muitas vezes confinaram, prenderam, torturaram ou, em fase de desespero, tentaram subverter a sua consciência rebelde que desafiava as alturas, procurando moldar aos seus retrógrados interesses e às suas mais mesquinhas conveniências!

Para lá da ruptura contra o colonialismo, nos anos finais da década de 50 e inícios da década de 60 do século passado em Angola, havia que também e desde logo romper com o plasma cinzento do etno-nacionalismo, um plasma tão filtrado pela iniciativa de “africanização da guerra” do colonialismo na sua fase de desespero e do tão contraditoriamente secreto Exercício Alcora! (Alcora é uma sigla que sintetiza “Aliança Contra os Rebeldes Africanos”)

As desgarradas lutas de resistência que procuraram em vão impedir a penetração colonial no território nos séculos anteriores, haviam inexoravelmente ficado para trás e agora era a visão ampla da identidade nacional que com Agostinho Neto se iria paulatinamente assumir, rompendo também com os feudos locais quantas vezes utilizados como armadilhas… ainda que em silêncio houvera que ser!

Essas duas heroínas foram da estirpe dos abnegados rebeldes envoltos nesses silêncios e também por isso não foram apenas mães que esperaram, foram mães que fizeram opção de silêncio sabendo o imenso que estava em jogo e por que fazem parte da vanguarda que além do mais não se deixou enredar pelo plasma étnico dos que voaram como pardais e assim foram toda a vida…

São mães que se aperceberam também e desde logo do plasma cinzento gerado pelo desespero colonial e suas emanações que se foram fazendo sentir onda a onda até nossos dias…

São mães que acabaram por pagar em silêncio um preço elevado, quando irrompeu o fenómeno golpista do 27 de Maio de 1977, um preço elevado pois os seus mais próximos entes queridos não fazem parte de nenhuma lista de mortos, nem de desaparecidos, nem alguma vez reclamados, apesar de terem sido dramaticamente assassinados, por que há uma outra face da tentativa desse golpe que em função do silêncio, urge pouco a pouco haver a coragem para desvendar!...

02- Tratam-se de duas irmãs, que por essa razão se tornaram fecundas bibliotecas por perfazerem a reportagem directa duma imensidão de acontecimentos, em muitos dos quais foram com todas as consequências e sacrifícios directas ou indirectas protagonistas, cuja trilha durante toda a vida foi alimentada sempre pelo farol da luta pela liberdade do povo angolano, acompanhando de perto ou de longe os passos do líder decisivo para a história contemporânea de Angola, aceitando sacrifícios sem alguma vez terem sido tentadas a o beliscar: 

Margarida da Paixão e Silva Vieira, popularmente conhecida por “tia Guida”, a mais nova que completou 85 anos, nascida a 18 de Junho de 1937, filha de José da Paixão Júnior e de Rosa Miguel da Silva, natural de Funda e viúva de Pedro Domingos Vieira.

Jacinta da Paixão e Silva, que perfez 91 anos, conhecida por “tia Jacinta” por todos que com ela se relacionaram, nascida a 11 de Agosto de 1932, natural da Funda e também fruto que brotou do mesmo casal.

A “tia Guida” faleceu no final de Dezembro de 2021 e a “tia Jacinta” poucos dias depois, em princípios de Janeiro de 2022, ambas veteranas  da Organização da Mulher Angolana, OMA, que num gesto de profundo respeito fez-lhes uma comovente homenagem póstuma, que foi também uma homenagem à saga de suas famílias!...

Elas, face às adversidades e às dores da família, adoptaram o catolicismo com devoção, a “tia Jacinta” tornou-se até legionária e por isso seus funerais mereceram honras fúnebres religiosas.

Inspiraram-se no passo dado pelo Papa Paulo VI que por via de sua Encíclica “Populorum Progresio” (“Progresso dos Povos”) se havia começado a distanciar da Concordata da Igreja Católica com o colonial-fascismo de Salazar, marcando a iniciativa ao conceder audiência, a 1 de Julho de 1970, aos líderes dos movimentos de libertação que com armas na mão haviam entrado em ruptura com o inconciliável colonialismo português, Amílcar Cabral, Agostinho Netro e Marcelino dos Santos… 

Logo no 1º ponto, era isto que diz a Encíclica: “Desenvolvimento dos povos – 1. O desenvolvimento dos povos, especialmente daqueles que se esforçam por afastar a fome, a miséria, as doenças endêmicas, a ignorância; que procuram uma participação mais ampla nos frutos da civilização, uma valorização mais ativa das suas qualidades humanas; que se orientam com decisão para o seu pleno desenvolvimento, é seguido com atenção pela Igreja. Depois do Concílio Ecumênico Vaticano II, uma renovada conscientização das exigências da mensagem evangélica traz à Igreja a obrigação de se pôr ao serviço dos homens, para os ajudar a aprofundarem todas as dimensões de tão grave problema e para os convencer da urgência de uma ação solidária neste virar decisivo da história da humanidade.”…

Não perdeu validade e na América Latina ganhou as asas da Teologia da Libertação, que inspirou entre outros o Comandante Hugo Chavez!...

Não foi por acaso, por que nada poderia ser por acaso em suas vidas: na religião católica muitos se refugiaram em função das tensões extremas a que foram sujeitos nas situações que tiveram de enfrentar, algo que condiz com a sensibilidade do Cardeal Dom Alexandre do Nascimento, ele próprio, um dia, alvo das hostes de Savimbi…

… “Eu vou morrer em Angola, com armas de guerra na mão”… cantaram assim as honras da OMA e é verdade, as duas detinham com elas o poder do silêncio tornado arma, como um inestimável contributo para a chama ardente da identidade nacional.

Muitos dos que com alguma delas conviveu, admiravam por isso a sua modéstia, a sua humildade, o seu trato misto de carinho e de responsabilidade e a sua figura que se impunha em leveza por si, como se houvesse sempre presente um reduto de memórias onde guardavam suas próprias vidas e dos seus, como se nelas houvesse um inexpugnável santuário!...

Muitos conselhos saíram de seus lábios e de seus pungentes corações de mães!

Elas sabiam como poucos no que haviam de acreditar e no que haviam de cultivar ainda em silêncio para orientar suas próprias vidas e de seus familiares e de todos os que necessitassem dum conselho que emergia da força do silêncio, inventando o poder do silêncio na luta pela liberdade, no cerne e em torno da própria vanguarda do MPLA!

03- Nos dez anos em que fiz parte da direcção executiva da Acção Social Para Apoio e Reinserção, ASPAR, a Associação que tem um papel na busca da dignidade colectiva no seio da Comunidade de Inteligência de Angola, bastas vezes houve a oportunidade de ir evocando e tocando na história, de forma mais dolorosa!

Isso foi sendo feito em condições muito especiais, pois nessa década uma sub-reptícia guerra psicológica fez seu curso, procurando deliberadamente que os homens da cor do silêncio fossem ostracizados, marginalizados e sacrificados, em função dos interesses e conveniências dos que optaram montarem-se a cavalo nos impactos de capitalismo neoliberal no país e formar tão malparadas elites!

A chegada de João Lourenço ao poder permitiu, com a sua sensibilidade histórica posta à prova, que essa Comunidade de Inteligência fosse reconhecida num outro grau de responsabilidade e se começasse a tratar noutros moldes sua pista de reinserção social, suas preocupações e seus traumas, por fim a sua própria identidade e dignidade..

Por isso foi desencadeado um esforço de recuperação da memória histórica, que teve até ao momento seu ponto mais alto na Iª Conferência sobre História dos organismos de Inteligência e Segurança de Angola, que ocorreu na cidade do Lobito, em Fevereiro de 2020, um esforço que está em marcha e tem tido persistente continuidade.

A experiência num contexto como esse leva-nos a encarar o poder do silêncio com outros olhos e com outras acrescidas advertências que nos conduzem, para além das preocupações técnicas em busca de fiabilidade, veracidade e objectividade, até por que muitos que ainda estão vivos, são pistas humanas dentro de distintas correntes de pensamento e acção que integraram o MPLA, para além do carácter da evolução do estado angolano que de 1985 a 2017 enveredou por um cada vez mais sintomático exercício pragmático-neoliberal, distanciando-se do projecto socialista viável com a República Popular de Angola, o Partido do Trabalho e as FAPLA, um dos fundamentos da aliança ética-cívico-militar de então!

O carácter da esteira pragmático-liberal é por si um empecilho que não se pode deixar de considerar para quem ainda tão a quente mergulha na pesquisa histórica e só a vontade típica dos homens de vanguarda pode mesmo superar, por que a prova já leva mais de 30 anos!

É um esforço que a Comunidade de Inteligência não está só, por que a aliança ética-cívico-militar que suportava a aliança operário-camponesa do Partido do Trabalho, tem que ver com o poder do silêncio só capaz de ser rompido quando pensamento e acção são expostos, mas também comparados, ou mesmo confrontados, por que não, num salutar espaço duma autêntica batalha de ideias!...

04- No âmbito da abrangência do “Círculo 4F”, marcado pelos dois 4 de Fevereiro, o de 1961 nos alvores de Angola e o de 1992 nos alvores da Venezuela Bolivariana, cabe também aqui neste esforço em exercício de memória que se impõe ao voo das águias, balancear os horizontes que transcendem espaço e tempo na imensidão transatlântica do Sul Global!

“Por ora”, esses 4 de Fevereiro transatlânticos não saíram vitoriosos, todavia suas sementes e o que eles inspiraram, é uma chama ardente bem presente nos nossos próprios dias!...

Muito recentemente, em Catete, no Acto levado a cabo no âmbito do FESTINETO 2021 integrando as comemorações do 99º Aniversário de Agostinho Neto, Pai da Nação Angolana e no auditório do Centro Cultural Dr. António Agostinho Neto em Icolo e Bengo, Sua Excelência o Embaixador da República Bolivariana da Venezuela, Marlon José Peña Labrador teve a sensibilidade histórica de considerar o papel de António Agostinho Neto ao nível do papel de Simon Bolivar!

“Bolivar, na América do Sul e Neto, na África, sabiam que o fim da escravidão não só ajudaria na expulsão dos impérios que nos colonizaram, mas também criaria as bases para a igualdade de nossos cidadãos nas repúblicas que estavam a nascer”!

Toda essa geração que em Angola marcou os passos que impunham a cadência da vanguarda sob a direcção de Agostinho Neto, ainda que sujeita a até hoje pouco conhecidas dores de tantos que se remeteram ao silêncio, deve ter um dedicado espaço na memória individual e colectiva, respeitando não só os alvores da nacionalidade, da nossa independência, soberania e da nossa identidade nacional, como também a lógica com sentido de vida que alimentou as mais legítimas aspirações de liberdade nas duas margens do Atlântico e em benefício de toda a humanidade!

As duas irmãs combatentes que ora desapareceram fisicamente, alimentaram suas espectativas e esperanças nessa trilha, superando suas ignotas dores, dores que tiveram de suportar assumindo o resguardo de suas próprias famílias e conferindo um lugar muito especial a toda ela!

Ao longo de grande parte de suas vidas elas assim assumiram a evolução do carácter dos comités clandestinos daqueles anos idos que levaram ao 4 de fevereiro de 1961, em que tiveram digno protagonismo, integrando depois e de diverso modo as fileiras do MPLA, da OMA e da Organização de Defesa Popular, ODP, particularmente nos momentos em que necessário foi tomar as mais decisivas opções, conforme à vanguarda do MPLA!

O MPLA reconheceu-as um dia com uma das suas medalhas que registam o mérito militante: a dos 50 ANOS DO MPLA e por isso resgatar a memória de sua trajectória e de suas dores, é a forma mais fiável de honrar o passado e a nossa história!

Martinho Júnior, 27 de Janeiro de 2022

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