quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Portugal | O ALMIRANTE E O DEVIR POLÍTICO

Jorge Costa Oliveira* | diário de Notícias | opinião

Não obstante o oligopólio político partidário, nos últimos anos o palco político em Portugal é dominado por dois personagens - um que exerce o cargo de primeiro-ministro e outro que é Presidente da República, conforme decorre das respetivas taxas de aprovação popular; até final de 2020 António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa tinham taxas aprovação - 45% e 75% - muito superiores a qualquer outro político.

Até que o almirante Gouveia e Melo mostrou que era possível coordenar um processo de vacinação de forma organizada e eficiente, com liderança e boa comunicação.

Com isto granjeou uma extraordinária popularidade. Que não temos hipótese de quantificar porque, curiosamente, essa popularidade nunca foi mensurada em qualquer sondagem. Nem mesmo quando o almirante alterou a sua postura de não disponibilidade para cargos políticos e declarou não fechar portas a nada e assumiu ser uma pessoa ambiciosa, nem mesmo então apareceu uma sondagem a quantificar essa extraordinária popularidade.

O que apareceu rapidamente, até demasiado rapidamente, foi o convite para Chefe de Estado Maior da Armada. Cargo que o devolve à condição militar tout court, com todas as limitações inerentes. Quase se diria que os principais atores do palco político português quiseram retirar de cena um personagem novo, atípico, que pensa pela sua cabeça e tem forte pendor executivo.

E pode ser que o almirante Gouveia e Melo viva bem com isso. Mas o que o mundo da política ensina é que, quando um novo protagonista emerge e tem potencial para desequilibrar o palco político e os atores políticos estabelecidos, estes reagem e só param depois de eliminar o novo fator de perigosidade... Isto foi já claro nas trapalhadas do seu processo de nomeação e na catalização das clivagens entre os seus camaradas de armas (que só o enobrecem - desconfiemos de quem não tem inimigos...).

E só ainda não assistimos ao espetáculo de vários analistas institucionais virem dizer, com voz grave, que o almirante deve deixar de falar de política porque a mudança de postura dele nessa matéria foi pouco feliz.

Gouveia e Melo tornou-se num dos símbolos do desejo de renovação da gestão da coisa pública em Portugal. Para o bem ou para o mal, simboliza hoje isso. O almirante mostrou que é possível gerir de forma competente e eficaz, com liderança e boa capacidade de comunicação. Uma vez mais, em vez de extrair conclusões pela positiva - procurar mais pessoas com essas capacidades e atraí-las para a gestão da coisa pública - os guardiões do sistema estão preocupados em eliminar outsiders que baralham estratégias e podem pôr em causa o oligopólio do poder político.

Mas não é preciso ser sebastianista nem suspirar pelo retorno de militares ao poder para perceber que Gouveia e Melo é alguém que pode desempenhar um importante papel no regime político português. Basta-lhe diminuir a exposição mediática, não falar demais e continuar a mostrar que nas matérias de que se ocupa "entrega a carta a Garcia"... Mas não vai ser fácil: por muito que os principais políticos lhe dêem palmadinhas nas costas, enquanto a sua extraordinária popularidade estiver latente, será sempre visto como um potencial rival, se não inimigo.

*Consultor financeiro e business developer

1 comentário:

António Ladrilhador disse...

Além do mais, fica aquele 'pequeno' problema da palavra dada em público, não é verdade? O da porta fechada que estava apenas encostada, afinal.
Caso lhe interesse, sugiro a leitura de https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2022/01/promoveram-o-major-alvega.html.

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