Artur Queiroz*, Luanda
O nome dele é Rayan, meu filho. Todas as crianças do mundo reféns de buracos e fomes são meus filhos. Este estava no fundo da terra, na aldeia de Chefchaouen. Desde que Ana Isabel Paulino foi enterrada viva na toca de um jimbo, perto do Bailundo, jurei a mim próprio que nunca mais ficaria indiferente. Sendo eu repórter, não dei a notícia em primeira mão. Permiti que Jonas Savimbi matasse mais mulheres angolanas das elites femininas da UNITA. Todos nós, repórteres, somos culpados de tanta mortandade. Porque nunca noticiámos os assassinatos do chefe do Galo Negro. Como se as vítimas não fossem angolanas e angolanos. Como se merecessem a morte só porque confiaram no criminoso de guerra.
Quando soube da tragédia de Rayan fui ter com ele ao buraco. Lavei-lhe o sangue seco do rosto com as minhas lágrimas. Pus a cabeça do menino no meu peito e depois contei-lhe esta história:
Mil dias acabam num dia. Nada é eterno e um mundo pode acabar na mão de uma criança. Como dizem os Nlwa, que falam pela voz dos tambores, nkama lumbu, lumbu kimosi kyenlenda.
A liberdade na aldeia do Dambi terminou num dia de Março, quando a chuva arrasava os capinzais e turvava rios e kapopas. A notícia veio de longe, lá das terras do Bembe onde os mestres ferreiros faziam adornos de beleza e armas de bronze.
Como todas as más notícias, chegou tão rápido como a luz do dia: nsangu za mbi nane zimenanga. O rei morreu na sua banza, envenenado por quem comia à sua mesa e dormia sob o seu tecto.
Os tambores anunciavam dias de servidão e medo. Quem matou o rei não tinha coração, ambicionava usurpar o seu lugar para escravizar o povo.
Muitos fugiram da aldeia, para o alto das montanhas, onde vivia a águia e nasciam os rios. O novo rei em breve mostrou a sua ferocidade, tratando o povo com crueldade.
É bem verdade, o povo sem chefe está perdido.
Ndozi levantou-se quando o sol nasceu e acordou a mulher e os filhos. Foram buscar os animais ao curral, fizeram as trouxas e partiram para o cume das verdes colinas do Pingano. À última hora a mulher implorou:
- Vamos ficar, pode ser que o rei fique com melhor coração.
Ndozi respondeu:
- Prefiro a solidão no alto da montanha, longe do rei cruel, do que ficar sem cabeça na minha aldeia.
E todos partiram rumo ao desconhecido.
Os que ficaram no Dambi foram feitos escravos e obrigados a trabalhar nas terras do senhor.
O rei usurpador esqueceu-se que os mortos não podem ver, mas ouvem muito bem. E o soberano que morreu envenenado, começou a ouvir os clamores dos seus súbditos, os seus queixumes, os pedidos de socorro.
Uma sobrinha do rei morto estava grávida e uma noite recebeu a visita do espírito do tio que lhe disse:
- O nosso povo precisa do teu filho para se libertar do tirano que me envenenou e recuperar a liberdade.
- A princesa Lumbembeleka disse ao espírito que chegou das trevas:
- O filho é meu, não vou sacrificá-lo por ninguém.
O espírito do rei deposto pelo usurpador respondeu:
- Quando uma criança está na barriga da mãe, é apenas dos seus pais. Mas quando nasce, deve ser filho de toda a Humanidade. Entrega-o à causa da liberdade do nosso povo!
A noite foi rasgada por um clarão e o espírito desapareceu nas trevas.
No alto da serra do Pingano, Ndozi viu aquele raio intenso de luz e pressentiu que se aproximavam tempos novos na vida dos que na aldeia do Dambi foram reduzidos à condição de escravos.
Ao amanhecer disse à mulher que ia regressar a casa, porque pressentia que o tempo da escravatura estava a chegar ao fim. Mas ela disse-lhe:
- Os que ficaram pertencem ao tirano, estão ao lado dele e nunca te aceitarão.
Ndozi ouviu as palavras da mulher e respondeu:
- Lenda yala mvumbu aku, kansi kulendi yala mundu andi ko.
E partiu ao encontro da liberdade. Porque é verdade: O senhor é dono do seu escravo mas jamais será dono do seu coração.
No dia em que o filho da princesa Lumbembeleka nasceu, o tirano estremeceu. E quando o príncipe cresceu, chamou para as suas hostes todos os escravos que nunca venderam o seu coração e escorraçaram o tirano.
O meu filho Rayan ouviu a história e adormeceu para sempre. Foi a sociedade do espectáculo que o matou, com as suas armas de destruição: Câmaras de televisão, holofotes, traficantes de notícias, abutres sedentos de carne humana, mirones viciados no espreitar nossos jardins secretos. Quando tiraram o meu filho do buraco ouviu tanto barulho, viu tanta luz potente que preferiu regressar às trevas. Eu guardei a alegria. Amanhã pode fazer-me falta. E chorei lendo e relendo este poema de Agostinho Neto, o pai de tantos filhos mortos pela Pátria Angolana:
O oceano separou-me de mim
Enquanto me fui esquecendo nos séculos
E eis-me presente
Reunindo em mim o espaço
Condensando o tempo
Na minha história
Existe o paradoxo do homem disperso
Enquanto o sorriso brilhava
No canto de dor
E as mãos construíam mundos maravilhosos
John Foi linchado
O irmão chicoteado nas costas nuas
A mulher amordaçada
E o filho continuou ignorante
Do drama intenso
Duma vida imensa e útil
Resultou certeza
As minhas mãos colocaram pedras
Nos alicerces do mundo
Mereço o meu pedaço de pão.
*Jornalista
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