Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião
O som do medo no choro de uma criança ucraniana, ao assistir à queda de um míssil bem próximo da sua casa, coloca-nos no nosso ponto de rebuçado-zen para a análise do conflito russo-ucraniano: estamos à distância, na comodidade do sofá, a bater no teclado ou a debitar no ecrã, onde todos somos geoestrategas políticos natos, produtores exímios de comentários tendencialmente racionais, bem munidos da mais completa informação histórico-militar. Quase parece ciência.
Este é o fim do pós-guerra e o mais pesado início para a reconfiguração da nova ordem mundial que já se vislumbra, mas que ainda não tem vigência. A multipolaridade é um facto e uma nova bipolaridade entre blocos pode ser o reacender dos piores fantasmas. Imaginar um bloco ocidental (constituído pelos EUA/EU) e um bloco China/Rússia (com o "wild card" da Coreia do Norte em suspensão equívoca) convoca os piores receios. Estejamos preparados para as lições que os próximos tempos nos darão sobre como toda a comunidade internacional, sem excepção, tem tratado a soberania de alguns países e as legítimas aspirações à autodeterminação, à independência ou à autonomia dos povos. Não há heróis nem impolutos. Os que se indignam (e bem) com o ataque russo não queimaram pestanas pelo reiterado incumprimento do Tratado de Minsk. Ignoraram todos os sinais e atropelos de ambas as partes. Desprezaram a História e a personalidade de um déspota e a irrelevância de um fantoche. Agora somos (quase) todos ucranianos e anti-imperialistas, imersos em soluções que não resistem à memória da invasão do Iraque, da anexação da Crimeia. E sabemos que, chegados aqui, a única via é dar algo para receber.
A importância de atacar a
oligarquia russa no sistema financeiro é crucial. Em Portugal, façamos a nossa
parte. Congelamento dos seus interesses e activos financeiros, interdição dos
vistos gold para cidadãos russos e uma investigação séria aos que já foram
atribuídos para que se saiba se foram atribuídos a cidadãos internacionalmente
sancionados. Receber refugiados e acompanhar as famílias de ucranianos e
luso-ucranianos que se encontram
Os planos de guerra são traçados com meses largos de estratégia e de preparação, o que não impediu Putin de atacar a Ucrânia em plena reunião do Conselho de Segurança da ONU, enquanto António Guterres lhe dirigia palavras emocionais para que desse "uma hipótese à paz". Durante as últimas semanas, só Biden nos disse - com clareza e todas as letras - o que iria mesmo suceder e o que estava iminente. A Alemanha recuou na abordagem ao Nord Stream2 e a União Europeia comportou-se com a força que não tem, acordando (pelo menos) para a prontidão de um pacote de sanções sério e que promete fazer mossa na oligarquia russa. Agora, somos todos espectadores racionais com análises, justificações e estudos detalhados sobre a realidade, mas que não resistem um segundo ao choro de uma criança ucraniana. Mais uma vez, os humanistas não acreditaram no que os homens são mesmo capazes de fazer.
O autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico e jurista
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