Esta guerra anunciada na Ucrânia só tem por objetivo impedir a exportação de gás russo para a Alemanha e, assim, reconfigurar o mapa europeu ao sabor do ditado de Washington. Antes mesmo da “guerra da quarta-feira” começar, se é que começa, o resultado fica sabido: o NordStream2 morreu
Francisco Louçã | Expresso | opinião
Um comentador com acesso aos palácios revelou que, durante a campanha eleitoral, Costa teria sigilosamente acordado com Rio o envio de tropas portuguesas para a Roménia, no contexto da escalada russo-ucraniana e seguindo o princípio de ter tropas próximo dos aliados para que sejam vistas, mas não demasiado próximas. Não passa despercebido que a exuberância desta comunicação, que o Governo assim anuncia por interposta pessoa, contrasta com a contenção pública de quem a teria que promover o envio dos soldados, o Presidente, que se limitou a repetir o apelo a soluções diplomáticas e mesmo a lembrar que a aprovação ainda não ocorreu. Qualquer que seja o significado destes percursos florentinos, em que até pode acontecer que nada seja o que parece, o Estado fala para já a duas (ou a três) vozes: o governo faz constar mas não diz, confirmando a fidelidade Nato a um pedido militar de que, aliás, o país não tem conhecimento, enquanto o Presidente, sem o qual a operação não é legal, sugere reservas em relação à corrida para a guerra.
Este jogo de sombras tem justificações e cálculos, diferentes para uns e para o outro. O Governo não quer enfrentar a desconfiança popular em relação a estas guerras por interposta pessoa, já tivemos a nossa dose neste século, mas não deixará de se mostrar fiel a Washington quando chegar o momento. Por isso, quer mandar tropa, mas pouca, para que os entusiastas da guerra não se sintam fora do mapa, mas esperando também que os opositores não se indignem demasiado, não chega a ser um regimento mas não é só uma patrulha. E nada diz sobre o assunto, até chegar o dia de repetir as suas juras à aliança militar, o que fará sem rebuço – mas o mais tarde possível. Entretanto, o Presidente, que pode estar a ver um pouco mais longe, talvez se interrogue sobre o futuro da Europa no novo tempo das botas cardadas.
A Europa está dividida entre o partido da guerra e o partido da economia. O partido da guerra é esta ponte entre Washington e Kiev, em que perpassa um perfume a pólvora que entusiasma algumas chancelarias, em particular os governantes que, como o da Ucrânia, buscam na estratégia de tensão criar um sentimento de unidade nacional que lhes resolva a fragilidade da liderança, obter os fundos suficientes para simular um governo e garantir a proteção militar que permita ameaçar os vizinhos. Esse partido marca a data da guerra, incentiva Moscovo a avançar, mantém a imprensa ocupada com “sinais”, retira embaixadores em tropel, faz fugir os deputados mais impressionáveis e pinta a tragédia, mesmo que a população ucraniana pareça desconfiada e dê aos enviados das televisões imagens de menos pânico do que o adequado para compor tanto apocalipse.
Só falta agora um incidente da Baía de Tonquim ou um incêndio do Reichstag, para tanto bastam uns paisanos fardados de soldados ucranianos ou de soldados russos e uns tiros, para que a previsão se possa concretizar, dado que, se a Casa Branca marca a guerra para quarta-feira e não acontecer nada, a operação transformar-se-ia na anedota do Solnado e isso não pode ser.
Putin é um bom ajudante deste partido da guerra, mesmo que tenha a sua própria agenda. Procurou impedir a Ucrânia de aderir à Nato, qualquer outro no seu lugar faria o mesmo, seja em nome de garantias anteriormente seladas, seja por um conceito elementar de segurança nacional. Mas, na falta de uma estratégia socialmente mobilizadora e perante contradições que só se podem agravar, convém-lhe o tambor da guerra como ordem hegemónica.
Para os que, à esquerda, entendem que está aqui uma apresentável mistura entre Pedro, o Grande, e Lenine, convém que tenham em atenção que se trata de um autoritário ultraconservador, que restabeleceu a tutela da Igreja Ortodoxa, anulou a legislação contra a violência de género, reforçou uma oligarquia milionária e desprezou os direitos sociais, não deixando de se aliar a Orban ou de promover o financiamento da extrema-direita europeia. Não é um aliado da paz, é um títere que, se esperava que Washington negociasse e cedesse alguma concessão, fez um cálculo errado. Assim, Putin persiste numa forma de confronto que o confirma como instrumento da estratégia norte-americana, cujo alvo é a Alemanha.
Face ao partido da guerra, dirigido por Biden, o partido da economia está aflito. Scholz e Macron sabem bem do que se trata e por isso multiplicam iniciativas de última hora, que aliás sabem destinadas ao fracasso. Eles pouco querem, mas em todo o caso não podem. Biden, para que não tivessem dúvidas, tornou transparente que o seu objetivo é o NordStream2, o gasoduto que está pronto para entrar em funcionamento depois de mais de uma década de construção e compromissos (a empresa russa é presidida por Schroeder, o ex-chanceler alemão, e fica tudo dito).
Era agora ou nunca que os EUA impediam a Alemanha de reforçar esta relação económica com a Rússia (a Alemanha fecha este ano as suas últimas centrais nucleares e depende em quase 60% do gás russo), o que comprometeria os dois países a uma estratégia comum de estabilização europeia. Lamento desiludir quem sonhava com uma saga heroica, feita de gestos generosos e de estandartes da liberdade, mas esta guerra anunciada só tem por objetivo impedir a exportação de gás russo para a Alemanha e, assim, reconfigurar o mapa europeu ao sabor do ditado de Washington. Antes mesmo da “guerra da quarta-feira” começar, se é que começa, o resultado fica sabido: o NordStream2 morreu.
Havia de vir o dia em que, no final do jogo, perde sempre a Alemanha.
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