segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

OS FANATISMOS AO SERVIÇO DOS EUA

Thierry Meyssan*

Os Estados Unidos poderão reorganizar todo o Médio-Oriente reconciliando os sunitas e os xiitas, a Arábia Saudita e o Irão. Imporiam então uma clivagem diferente: a favor ou contra o islão político. Essa nova linha de separação iria permitir-lhes relançar o jiadismo de uma maneira muito mais ampla.

Após a chegada ao Poder do Presidente Joe Biden, os Estados Unidos tentaram lançar negociações com o Irão para restabelecer o acordo secreto que tinham assinado na presidência de Barack Obama, à margem das negociações sobre o nuclear iraniano.

Lembremos que as negociações dos 5+1, (os cinco membros do Conselho de Segurança + a Alemanha), com o Irão se iniciaram em 2013, em Viena ; que elas chegaram rapidamente a um acordo de princípio e foram então interrompidas. Os Estados Unidos e o Irão estabeleceram deliberações separadas antes de regressar à mesa de negociações e de assinar o acordo previamente acordado a sete, em Julho de 2015.

No Ocidente, considera-se este acordo como pondo fim às pesquisas nucleares militares iranianas, mas, na realidade, alguns dos signatários nunca acreditaram que a República islâmica do Irão tivesse prosseguido o programa militar da monarquia para além da fátua do Aiatola Khomeiny proibindo esta arma como sendo não-islâmica. Apesar das acusações repetidas de Israel e dos documentos que a Mossad conseguiu roubar em Teerão, nada permite até ao momento contradizer a posição iraniana. No máximo projectou fabricar um gerador de ondas de choque [1]. Teerão desmantelou o seu programa nuclear militar em 1988 e jamais o reiniciou.

Desde já, parece que os dois anos de negociações em Viena não visavam dissipar uma ameaça nuclear inexistente, mas em enquadrar as negociações bilaterais secretas americano-iranianas.

Estas foram dirigidas do lado dos EUA por três negociadores que hoje se tornaram pilares da Administração : William Burns (actual Director da CIA), Wendy Sherman (actual Assistente do Secretário de Estado) e Jake Sullivan (atual Conselheiro de Segurança Nacional) .

Tal como em 2013-15, as negociações visando restaurar o acordo dos 5+1 mascaram outras negociações, desta vez entre a Arábia Saudita e o Irão. Por estes dias, acabam de chegar a um acordo de princípio.

Considera-se erradamente que a oposição entre sunitas e xiitas sempre existiu. Ela tem, com efeito, a sua origem no conflito pela sucessão política de Maomé, o fundador do Islão, que era também o soberano de Meca e de Medina. Mas o actual conflito religioso e político nem sempre existiu.

Na era moderna, as relações entre Riade e Teerão flutuaram. A Arábia Saudita apoiou o Iraque durante a guerra deste contra o Irão (1980-88), mas o Irão e a Arábia Saudita apoiaram juntos o Kuwait contra o Iraque (1990-91). Mais ainda, os dois países enviaram tropas para apoiar a Bósnia-Herzegovina (1992-95) sob as ordens da OTAN contra a Jugoslávia.

Este episódio é muitas vezes ignorado. A República Islâmica enviou Guardas da Revolução para apoiar os muçulmanos bósnios. A Resistência xiita libanesa a Israel acreditava que devia seguir o seu exemplo e o Hezbolla também enviou combatentes para um conflito que não tinha qualquer relação com a sua razão de ser. A Arábia Saudita, que protegia então os Irmãos Muçulmanos, enviara a Legião Árabe de Osama bin Laden para apoiar o Presidente, e antigo nazi, Alija Izetbegović. Bin Laden tornou-se aliás seu conselheiro militar junto ao conselheiro político, o Norte-Americano Richard Perle, e do seu conselheiro mediático, o Francês Bernard-Henri Lévy. Retrospectivamente, esta amálgama parece contra-natura, mas à época, essa aliança não era tão estúpida como parece hoje em dia. Os Estados Unidos haviam reunido todas as forças contra a Jugoslávia do pró-russo Slobodan Milošević.

A rivalidade entre a Arábia Saudita sunita e o Irão xiita desenvolveu-se rapidamente no início dos anos 2000 à volta do conflito iemenita, com o Irão apoiando os Zaidistas. agrupados no seio do partido Huthi. Os Zaidistas são xiitas, mas de uma forma muito particular, muito marcada pela cultura indiana.

Durante muitos anos, os Sauditas administraram o Iémene (do Norte e do Sul) em função das filiações tribais. Enquanto os Estados Unidos negociavam o acordo nuclear e o seu Protocolo secreto com o Irão, durante os anos 2013-15, Israel negociava também secretamente com a Arábia Saudita. Os dois países chegaram a acordo para explorar em conjunto o petróleo do Iémene (Iêmen-br) e do Ogaden (Corno de África) [2]. Foi para honrar esse acordo que a Arábia Saudita entrou em guerra no Iémene, apoiada oficialmente pelos Emirados Árabes Unidos e oficiosamente por Israel, que aí fez uso de bombas nucleares táticas.

Actualmente (2021-22) os Estados Unidos e o Irão negoceiam um novo acordo dos 5+1, enquanto Israel e Arábia Saudita se dirigem para uma oficialização das suas relações diplomáticas. Simultaneamente, o Irão e a Arábia Saudita discutem ao nível dos chefes de seus Serviços Secretos e dos seus diplomatas. Trata-se, para eles, de restabelecer a sua aliança do início dos anos 90 na Bósnia e Herzegovina. Eles estão a ponto de aí chegar, o que desbloqueará as duas outras negociações.

Desde já, o Irão anunciou que reabria o seu gabinete junto da Organização de Cooperação Islâmica (OCI) em Jeddah. Os dois países poderão selar a sua aliança em torno do islão político. Tanto mais porque a OCI é a única organização religiosa intergovernamental. Sublinhamos este ponto : nenhuma outra religião suscitou uma organização intergovernamental. É uma especificidade do Islão cujo fundador, Maomé, era, ao mesmo tempo, um líder espiritual e um chefe político e militar.

Se esta aliança se concretizar, ela entrará em conflito não com os laicos em geral, mas com os laicos muçulmanos que distinguem a religião muçulmana da política. Em primeiro lugar com os Emirados Árabes Unidos, a Síria e o Egipto. Simultaneamente, esta aliança aproximar-se-á de outros partidários do Islão político, que são o Catar e a Turquia. Será uma reviravolta completa do xadrez médio-oriental.

Desde logo, pode observar-se a inquietação de certos actores. Assim sayyed Hassan Nasrallah, o Secretário-Geral do Hezbolla libanês, multiplica os ataques verbais contra os crimes sauditas no Iémene, mas não contra o seu aliado emiradense. Ora, Nasrallah defende uma visão laica do Islão como fonte de seu compromisso. Ele tem incluso em sua rede de resistência combatentes de outras religiões, o que seria impossível se defendesse o islão político.

Ou ainda, os Huthis iemenitas bombardearam os Emirados Árabes Unidos utilizando drones. Estes percorreram 1. 200 quilómetros, em mais de 4 horas, sob o olhar atento de radares e satélites norte-americanos e franceses. Os Emirados foram atingidos.

Washington e Paris condenaram o ataque, mas nada fizeram para avisar os Emirados quando podiam. Claramente, o silêncio dos Ocidentais foi uma advertência ao Abu Dhabi, um incitamento para abandonar a sua política de tolerância religiosa e se ligar ao islão político. Os Emiradenses não têm ilusões sobre seus aliados anglo-saxónicos que jamais pararam de manobrar nas disputas religiosas para estender o seu domínio, mas ficaram estupefactos ao ver os Franceses seguir-lhes o passo. Em 1995, os Emiradenses haviam apelado ao Presidente Jacques Chirac porque contavam com uma potência laica para garantir a sua segurança.

Os Emiradenses realizaram um ataque de represálias ao Iémene, mas os Huthis ameaçam agora atacar a Torre Bourj Khalifa (um edifício com mais de 800 metros de altura) no Dubai e os interesses económicos em Abu Dhabi.

Os Estados Unidos vão mudar de posição no Iémene. De momento, defendem uma solução política do conflito. No início do mandato Biden, retiraram os Huthis da sua lista de terroristas argumentando que isso ajudaria as ONGs a distribuir ajuda humanitária. Simplesmente não interferiram no bombardeio Huthi dos Emirados. Amanhã vão dividir o Iémene entre Wahabitas (Arábia Saudita) e Zaidistas (Huthis).

Esta reorganização ocidental do Médio-Oriente contradiz directamente a visão tradicional russa, baseada na identidade cultural dos Estados e não apenas na sua religião. Moscovo tem uma atitude ambígua face ao Irão. Por um lado, integra-o no seu sistema de Defesa, por outro, deixa-o sozinho enfrentar Israel. Assim, o Presidente Ebrahim Raïssi acaba de ser recebido pelo Presidente Vladimir Putin e pela Duma, em 19 de Janeiro. Antecipando-se ao levantamento do embargo dos EUA, conseguiu assinar importantes acordos de assistência técnica para a exploração de seus hidrocarbonetos. Ele celebrou a vitória conjunta na Síria e o seu Exército participa em manobras navais russo-chinesas no Oceano Índico (« Cintura de Segurança Marítimo 2022». Mas ao mesmo tempo as Forças Russas deixam que os Israelitas ataquem como lhes apetece as bases iranianas na Síria. Na realidade, o Irão poderá tirar as castanhas do lume em caso de um confronto EUA-Rússia ligando-se ao eixo russo-chinês. Ele poderá tornar-se o elo que falta nas Rotas da Seda entre a Índia e a Rússia. Seria integrado no seu sistema bancário (o SPFS e já não o SWIFT) e poderá voltar a ser uma potência comercial. Na expectativa, Teerão joga nos dois tabuleiros.

Os Estados Unidos e a Rússia entenderam-se, já há vários meses, sobre o que o Médio-Oriente se deverá tornar. Tratava-se talvez mais de definir zonas de influência. Assim, acabamos de saber que o gás egípcio que deverá ser proximamente fornecido ao Líbano será , na realidade, de origem israelita. Ora, esta informação fora mascarada por todos os actores implicados porque actualmente Israel ainda está em guerra com o Líbano e a Síria. Além disso, o gasoduto árabe passa pela Jordânia e pela Síria. Não somente a Rússia, mas também os Estados Unidos encorajaram esse acordo. No entanto, a lei dos EUA proíbe qualquer comércio com a Síria sob pena de fogos do inferno.

A aliança Arábia Saudita-Irão permitirá aos EUA e ao Reino Unido estender o sistema jiadista  [3] , de momento exclusivamente sunita. Veremos então os fanáticos de todas as latitudes se unirem contra os laicos ; uma divisão que os Britânicos controlaram durante o seu período imperial e que havia mostrado os seus resultados.

Thierry Meyssan* | Voltairenet.org | Tradução Alva

*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II.
Manipulación y desinformación en los medios de comunicación
 (Monte Ávila Editores, 2008).

Notas:

[1] "Shock Wave Generator for Iran’sNuclear Weapons Program:More than a Feasibility Study" By David Albright and Olli Heinonen, Fondation for the Defense of Democracies, May 7, 2019.

[2] “Exclusivo : Os projectos secretos de Israel e da Arábia Saudita”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 22 de Junho de 2015.

[3] Veja a História mundial da Irmandade Muçulmana em seis partes, Thierry Meyssan, Rede Voltaire.

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