Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião
Quase dois anos depois, a opinião pública e a publicada estão de novo tão desinteressadas do assunto como quando o cidadão ucraniano morreu. Cabrita demitiu-se, houve eleições, Ihor já não serve como arma de arremesso - e, se não serve para isso, qual o interesse?
Nunca houve em Portugal um caso de violência policial com as consequências do da morte de Ihor Homeniuk.
Nunca antes tinham sido demitidas chefias, nunca tinha sido proposta a extinção de uma polícia, nunca tinha havido uma indemnização tão elevada, nunca a Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI), a entidade que fiscaliza as polícias, tinha levado a sua investigação até à exposição do encobrimento (e tantos outros casos houve em que se verificou encobrimento) e das falhas e vícios organizacionais ou tinha proposto, como fez relativamente ao responsável hierárquico máximo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no aeroporto de Lisboa, a expulsão da função pública.
E tudo isso aconteceu, reconheça-se, porque ao contrário do que é costume o responsável da tutela assumiu desde cedo - ou, melhor dizendo, desde que o caso foi conhecido publicamente, e muito antes de as opiniões pública e publicada acordarem para ele - a gravidade do ocorrido, ordenando a dita investigação à Inspeção Geral da Administração Interna e indo ao parlamento por duas vezes, em abril e dezembro de 2020, prestar esclarecimentos, declarando: "Determinante é apurar toda a verdade, e extrair as necessárias conclusões."
Devia ser sempre assim, sem dúvida - mas nunca foi. E se Eduardo Cabrita merece críticas por vários aspetos da sua governação, ele e o governo do qual fez parte merecem igualmente reconhecimento por terem feito, face a um caso gravíssimo de violência policial, aquilo que nunca outros fizeram.
Isto dito, ser muito melhor do que de costume não chega. E, ao contrário do que o ex-ministro garantiu, nem se apurou ainda toda a verdade nem, tão-pouco, se extraíram as necessárias conclusões do que foi apurado.
O DN noticiou este fim de semana que resulta dos depoimentos na IGAI da ex-diretora nacional, Cristina Gatões, e do ex-coordenador do departamento de inspeção interna do SEF, João Ataíde, que várias informações dadas por Cabrita ao parlamento a propósito de Ihor, nomeadamente a de que o SEF abriu uma investigação interna logo no dia a seguir à morte, não correspondem à verdade.
Note-se que o DN não acusou o ex-governante de ter mentido; mentir implica saber que se está a dar uma informação errada. O normal seria pois que, confrontado com um desmentido, procurasse esclarecer. Optou por não o fazer.
Claro que, não estando já Eduardo Cabrita no governo e tendo até havido eleições legislativas há uma semana, para a maioria das pessoas este assunto não tem interesse nenhum - na verdade esta morte de um homem sob custódia de uma polícia, em circunstâncias atrozes (lembremos que o deixaram algemado, sozinho, deitado, mais de oito horas) nunca foi, como se sabe, algo que realmente interessasse os portugueses, e até os media em geral, pelo que se houve um breve assomo de indignação oito meses depois do óbito e o julgamento dos três inspetores acusados, em 2021, teve bastante atenção, a respetiva condenação encerrou o assunto para a maioria: muito pouca gente quer saber da tal "toda a verdade", muito menos de "extrair as necessárias conclusões".
E no entanto devia ser isso o mais importante: uma morte com estas características, ocorrida no seio de uma organização policial, não deve ser apenas imputada a quem tenha sido o fautor imediato; nunca poderia ter ocorrido se não existissem as condições para tal em termos de cultura de violência, de desrespeito pela lei e pelos direitos humanos, e de encobrimento, mas também de ausência de sindicância e de mecanismos eficazes de apuramento de responsabilidades.
É certo que o relatório da IGAI, conhecido no final de setembro de 2020, descreve o quadro de incúria, desumanidade e ilegalidade do funcionamento do SEF do aeroporto; mas é preciso perguntar como foi tal possível. E tal foi possível não só porque a cultura organizacional do SEF o permitiu, mas também porque a instância fiscalizadora - a mesmíssima IGAI - não fez o seu trabalho.
Como o DN noticiou, a IGAI, que pode proceder a inspeções sem aviso ao SEF, nunca as fez ao centro de detenção para estrangeiros não admitidos em que Ihor morreu - mesmo se este estava há muito sinalizado pela Provedoria de Justiça e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção de Tortura como um local de risco.
É também evidente - pelo menos para mim - que houve desde o início do caso, e até por parte da IGAI, uma delimitação das responsabilidades: no citado relatório, a direção nacional do SEF não é tida nem achada, nomeadamente quanto a uma questão fundamental - quando e como soube da morte e o que fez a seguir. O DN procurou obter esse esclarecimento desde a primeira hora, mas só nas últimas semanas conseguimos, através do depoimento de Gatões e Ataíde à IGAI, saber qual a narrativa da ex-diretora nacional - descrita na notícia que publicámos este domingo.
Tão espantosa pelo menos como essa narrativa - Gatões continua a dizer que nunca suspeitou de que pudesse ter existido crime, que ninguém lhe disse que a PJ começara a investigar quatro dias depois da morte (a brigada de homicídios esteve no SEF do aeroporto a 16 de março, o que dificilmente não seria comunicado à direção) e chega até ao ponto de afirmar que não viu um mail enviado, a 19 de março, para a PJ com seu conhecimento - é a IGAI não ver motivo para agir disciplinarmente sobre uma responsável policial que não só não lhe comunicou de imediato, como era sua obrigação, a morte (e soube dela pouco depois de ocorrer), como nada fez para perceber o que se tinha passado. E é aqui que ganha relevo a certificação do ministro de que houve uma averiguação interna, averiguação que Eduardo Cabrita até asseverou ser "obrigatória". Tão obrigatória é que nunca existiu - nem da parte do SEF nem, num primeiro momento, da IGAI.
É que nem a própria IGAI abriu, quando finalmente foi informada (primeiro, soubemos agora, por telefonema de Gatões para a inspetora-geral, a juíza desembargadora Anabela Cabral Ferreira, a 16 de março, e depois por carta, a 18), qualquer inquérito à morte, ficando à espera que o SEF lhe desse informação - sendo assim surpreendida pela revelação de que a PJ detivera três inspetores por suspeita de homicídio. Para que serve a obrigatoriedade de comunicação de mortes em custódia à IGAI se esta fica sentada à espera de que as polícias lhe digam se há suspeita de abuso?
A passividade da IGAI neste caso torna-se ainda mais escandalosa quando, além de não ver motivos para agir disciplinarmente sobre a então diretora do SEF, se constata que a dirigente máxima desta inspeção não se eximiu de "ilibar" Gatões quando o inquérito disciplinar em que esta prestou depoimento ainda decorria. A 2 de abril de 2021 - três meses antes de o inquérito ser finalizado com proposta de arquivamento, e a certificação de que não se encontrara matéria disciplinar contra Gatões, e escassas semanas após a ex-diretora do SEF ser ouvida (foi-o a 19 de março) -Anabela Cabral Ferreira deu uma entrevista ao Público dizendo que achava que não havia lugar a responsabilidade disciplinar no caso de Gatões e que acreditava que esta não estava a mentir quando disse que não sabia de nada.
"Sinto-me completamente enganada", cita a IGAI na súmula do depoimento de Gatões. Há muita coisa que ainda não se sabe sobre o caso Ihor, e por este andar talvez muita dela nunca se venha a saber. Mas se a diretora nacional do SEF foi "completamente enganada" foi porque quis - e com ela todos nós.
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