terça-feira, 21 de junho de 2022

Angola | IGUALDADE MORTA E ENTERRADA – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Os cemitérios em Angola eram espaços para brancos, mestiços e negros assimilados (nem todos…) a maioria negra era enterrada fora dos “campos santos”. Os sobas da minha região tinham direito a monumentos tumulares muito elaborados e os corpos eram quase sempre enterrados na margem dos caminhos em locais muito belos, frescos, arborizados, com passarinhos por todo o lado. No Cacimbo, os túmulos eram envoltos em nuvens de poeira quando as carrinhas passavam nas picadas, carregadas de mabuba. 

No Negage, o cemitério oficial ficava no alto de uma colina, estrada para Camabatela, perto da missão dos padres capuchinhos. É justo dizer que os franciscanos faziam questão de enterrar lá quem era baptizado, fosse qual fosse o tom da pele. Uma revolução num tempo em que os negros só tinham o direito de ser escravizados nas tongas de café e nas granjas do chefe de posto. Era assim há 70 anos, não há séculos. 

O grande cemitério de Luanda ficava entre as traseiras da igreja do Carmo e o largo da Mutamba. Quando esgotou o espaço, o Senado da Câmara decidiu fazer um novo no Alto das Cruzes, nessa época bem fora do casco urbano. Entre o último quartel do Século XIX e 1961, também este cemitério ficou esgotado. A Câmara Municipal de Luanda abriu então o Cemitério de Sant’Ana, mais conhecido por Cemitério Novo.

No Alto das Cruzes ficou o túmulo dos jornalistas Pedro da Paixão Franco, José de Fontes Pereira ou Alfredo Troni. Desde a abertura do Cemitério Novo, no velho só era sepultado quem tinha dinheiro. Depois da Independência Nacional eram lá sepultados os dirigentes. Foi assim em 1977. Os comandantes e altos servidores do Estado assassinados durante o golpe de estado militar, foram sepultados num talhão próprio, ainda que em campa rasa. O regime revolucionário não admitia ostentações nem tiques de novos-ricos.

Um dia recebi em minha casa o sobrinho do comandante Eurico, um dos assassinados a mando, segundo Nito Alves, de José Van-Dúnem e Sita Vales. Veio passar uns dias a Luanda, a cidade onde nasceu ele, seu pai (o meu amigo Komba) e a mãe (minha amiga Teresa Batalha). Ele pediu que o levasse ao Cemitério do Alto das Cruzes para se recolher ante o túmulo do tio. Tivemos um tremendo choque. O talhão das vítimas dos golpistas de 1977 estava desmazelado, descuidado, praticamente abandonado. O lixo cobria as placas dos nomes.

Quando acabámos a visita contactei o meu amigo e camarada António José Maria (General Zé Maria) e ele também ficou chocado. Mas tomou logo medidas. Falou com o General Kopelipa e logo ficou decidido que uma equipa da Casa Militar do Presidente da República, José Eduardo dos Santos, passava a cuidar dos túmulos dos Heróis assassinados pelos golpistas. 

Alguns anos depois, voltei ao Cemitério do Alto das Cruzes, com o inigualável repórter Pereira Dinis, para procurarmos o túmulo do comandante Arguelles. Ninguém sabia que íamos lá, mas estava florido, limpo, impecável. Os túmulos dos nossos heróis, igualmente. Impecáveis. 

O General Zé Maria ia, sempre que podia, ia ao Alto das Cruzes ver se os túmulos da nossa gente, onde se incluíam os de sua Mãe e irmão, estavam cuidados e limpos, com flores frescas. Angola deve muito a este Herói Nacional. Na primeira fase da Grande Batalha de Luanda foi ele que no Largo do Cazenga, acabou com a resistência das tropas zairenses e da FNLA instaladas na fábrica de borracha. No meio de um tiroteio infernal, quando as coisas estavam difíceis, Zé Maria e outro combatente montaram um morteiro no meio da praça, expostos ao fogo inimigo e depois de três morteiradas, tudo acabou. Estava lá Avelino Soares, mais tarde chefe do estado-maior da Marinha de Guerra. Jornalistas estava um italiano do jornal L’UNITÀ, fundado por António Gramsci, e eu. Devemos a vida ao General Zé Maria.

Mais tarde encontrei-o a comandar as FAPLA na Quibala, pronto a enfrentar o avanço dos invasores sul-africanos. No golpe de estado militar de 27 de Maio de 1977, Onambwe, Kianda, Zé Maria, Higino Carneiro e outros Generais da Liberdade derrotaram os golpistas. Quando a UNITA regressou à guerra, depois do anúncio dos resultados eleitorais, o General Zé Maria teve um papel fundamental na derrota dos novos golpistas que queriam matar a democracia no ovo. Não conseguiram mas mataram centenas de Luandenses.  

No dia seguinte ao funeral, com honras militares, dos assassinos do golpe militar do 27 de Maio, o General Zé Maria foi ao Cemitério do Alto das Cruzes. E constactou que o Governo Provincial de Luanda mandou pintar os lancis dos passeios, os troncos das árvores, limparam bem as veredas e as campas vizinhas ao local onde foram sepultados. Os assassinos tiveram direito a toneladas de flores. No talhão daqueles que eles mandaram matar, tudo sujo, nada de pinturas, nada de limpezas. 

O General Zé Maria chama a Francisco Queiroz o ministro da Injustiça e dos Atentados aos Direitos Humanos. Eu não faria melhor. E diz que a sua comissão perdeu uma oportunidade de ouro, para provar que quer mesmo o perdão e a reconciliação. Os ministros das duas confissões religiosas que participaram nas cerimónias fúnebres, os familiares dos enterrados, o ministro, os generais e demais figuras públicas, depois da cerimónia iam às campas rasas dos comandantes e altos servidores do Estado assassinados, depositavam lá coroas de flores, rezavam, pediam desculpa e perdão. O Governo Provincial antes desta parte, tinha mandado pintar tudo, limpar tudo, embelezar tudo. Nada

Para o ministro da Injustiça e dos Atentados aos Direitos Humanos, heróis são os assassinos. Pedido de desculpas por terem sido derrotados, é só para eles. Pedidos de perdão, só eles têm direito. Os comandantes assassinados estavam do lado dos maus. O ministro das Finanças do Governo da República Popular de Angola estava do lado dos maus. O diplomata Garcia Neto estava do lado dos maus. Hélder Neto, um nacionalista da primeira hora, que respondeu no Processo dos 50, estava do lado dos maus. Todas e todos os que foram assassinados pelos golpistas estavam do lado dos maus. E os seus túmulos estão de novo desprezados e abandonados. 

O ministro da Injustiça e dos Atentados aos Direitos Humanos está-se nas tintas para o perdão e a reconciliação. Para os abraços fraternos. O negócio dele é ossadas e funerais. Espero que estas aventuras não tenham resultados nefastos. Dizem-me que Francisco Queiroz faz o que lhe mandam fazer. Se é verdade, a coisa fica ainda mais feia. Não passa pela cabeça de ninguém entregar uma pasta ministerial a um kaxiko desmiolado.

*Jornalista

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