Com o neoliberalismo capitalista a servir doses rituais de violência, a verdadeira catástrofe é o imobilismo: impõe-se a obrigação militante de combater as turbulências das falácias que o sistema moribundo manipula sem parar
Manuel Augusto Araújo | AbrilAbril | opinião
Ursula von Leyen foi perorar ao Parlamento ucraniano expurgado de todos os partidos de oposição ao nazi-fascistas no poder, o que para ela e por extensão a Comissão Europeia a que preside deve ser um exemplo de democracia, para lembrar que é necessário que a Ucrânia acelere os procedimentos contra corrupção. Uma grossa piada, um grotesco número de rasca comédia não só pela composição dos parlamentares, mas por se conhecerem as íntimas relações da máfia dos oligarcas ucranianos com o poder, a começar pelo seu presidente, o pinóquio Zelensky. Ainda que hoje, até nos anos mais próximos por um calculismo sem um pingo de ética, se desconheçam o estado das contas nos paraísos fiscais de toda essa gentalha, pode-se presumir que, com esta guerra e a cornucópia de maravedis todos os dias despejada à ordem de Kiev, devem estar a aceleradamente engordar, a que não deve ser alheio, entre outras fontes de rapinagem, o denunciado contrabando de armas, noticiado por jornais completamente alinhados com a narrativa ocidental, que alguns dizem afectar um terço das enviadas. A senhora Ursula von Leyen afivela a máscara de um inexpugnável ar sério para dar estes conselhos numa charla a um parlamento que só representa a clique mais radical que assaltou o poder na Ucrânia e que, ao sabor das conveniências, ela deve considerar representativo e democrático.
Fê-lo com o mesmo ar conspícuo, até contra a opinião expressa de alguns dos seus vice-presidentes, com que anunciou libertar para a Polónia 36 mil milhões de euros do programa de combate aos efeitos da pandemia sem que esse país tenha dado um único passo para que o poder judicial deixe de estar subordinado ao poder político, o que era e é apontado como uma gravíssima violação do Estado de direito, isto mesmo quando se sabe, até bem demais, que o direito, mesmo no mais democrático dos países, é um valor variável e é sempre o direito do mais forte à liberdade. A presidente da Comissão Europeia, esse órgão de autocratas da UE que nem sequer se maquilha com batons eleitorais, remete, com o maior cinismo, a defesa do Estado de direito democrático para o caixote de lixo, subvertendo os residuais princípios democráticos que a UE tanto aclama, colocando-os na prateleira dos bens que se negoceiam ao sabor das conveniências. Ursula von Leyen não é uma ocidental voz solitária, está bem acompanhada pelos seus pares que, em manada nos mais diversos fóruns ou nos encontros de geometrias variáveis em que se têm desdobrado para espelhar uma unidade sempre à beira de fissurar, têm revelado o pior do relativismo em política.
Tudo isto acontece enquanto a Europa vai sucumbindo económica, militar e politicamente, ficando cada vez mais dependente dos EUA, que vão adiando a sua decadência principalmente com os compromissos que a UE assume, fazendo exercícios de respiração assistida a um dólar cada vez mais frágil, contribuindo para os crescentes lucros do complexo industrial-militar-económico e financeiro do império, salvando da falência a indústria do fracking, o processo mais poluente de extracção de gás e petróleo, que vai vender à Europa a preços quatro ou cinco vezes superiores aos actuais, o que compromete quaisquer hipóteses de crescimento económico e atira para as calendas a tão acarinhada descarbonização com a prevista reactivação de centrais eléctricas a carvão e outros itens que estão a estilhaçar a fé na economia verde e na luta contra as alterações climáticas. Estes são entre outros os sinais que se acumulam no incerto horizonte da Europa.
Uma Europa, unida como nunca na defesa dos valores atlanticamente partilhados, que é a mesma que alinha na imposição de sanções urbi et orbi decididas pelos EUA para sustentar as normas do excepcionalismo ocidental que, variando e adequando-se aos ventos da história, tem de forma brutal explorado colonialmente o resto do mundo desde o séc. XVI e que, num arremedo desse seu brutal passado, quer continuar a subverter o direito internacional e o conceito básico e elementar de igualdade entre países e povos. Europa de facto mais submissa e subordinada aos interesses imperialistas dos EUA e do seu braço armado, a NATO. NATO a que presumivelmente se vai agregar a Suécia e a Finlândia, que, para a integrarem, abandonam o seu estatuto de refúgio para perseguidos políticos de outros países ditatoriais ou de democracias iliberais, provando que Georges Orwell tinha toda a razão quando escreveu que «ninguém precisa viver num país totalitário para ser corrompido pelo totalitarismo».
Um futuro senão de nuvens negras de cinzento muito escuro que sobrevoam os países da União Europeia que cederam a sua soberania social, económica, militar e política a um grupo de medíocres e não eleitos autocratas que pontapeiam os valores democráticos que tanto proclamam para inglês ver, já sem se preocuparem com as aparências das públicas virtudes vícios privados. Georges Orwell escreveu: «vivemos numa das piores ditaduras impostas ao homem, todavia esta se dissimula utilizando o pseudónimo "Democracia"», num tempo em que a corrupção das liberdades e da democracia eram enunciadas e as dissidências, sátiras, investigações jornalísticas sérias ainda eram permitidas pelos poderes dominantes.
Desconhecia a impetuosa concentração dos meios de comunicação social e a escravidão digital de hoje. Desconhecia o actual jornalismo, mero rufar dos tambores do proselitismo do pensamento dominante, e o jornalismo de investigação, ser residual, só muito raramente não serve os desígnios de quem está de facto nos comandos da sociedade neoliberal puxando os cordéis às suas marionetas a partir de Davos, Bilderberg e outros fóruns onde se estabelecem as fronteiras do mainstream, para que todas as falsificações sejam aceitáveis, vertidas em moldes de controle social que se quer voluntário, viciante, envolto em ilusões de liberdade pessoal, para que a vigente exploração neoliberal com contornos neo-feudais continue o seu percurso triunfante num mundo cada vez mais desigual, em que 1% dos mais ricos tem uma riqueza igual a 70% do resto da população e continuam acumular riqueza a velocidades cada vez mais aceleradas. Nada é mais desigual que a igualdade entre desiguais a quem, nas mais liberais sociedades, é oferecida a possibilidade de votar regularmente em quem os vai explorar durante um período em que se remetem ao vazio submisso dos que se deixam enrolar pelos malabarismos da propaganda, que é sempre o que vence se isso for permitido. Um sofisticado processo em que se descartam os impulsos autoritárias das antigas ditaduras substituídos por um fluxo constante de informação que gera uma aparência de liberdade cada vez mais controlada pelos algoritmos do universo digital, das redes sociais, das cada vez mais presentes ferramentas informáticas, em que se vai sabendo o que sucede, depois de muito filtrado e manipulado para que se corra atrás da informação sem alcançar saber nem obter conhecimento. O alvo é degradar a autonomia do ser humano para destruir o sujeito crítico e torná-lo num indivíduo autista, consumidor e indiferente à dimensão política da existência. A vida social é esvaziada, o que reprime a variedade humana, para que se torne mais pobre, menos pensante, mais previsível.
No campo político faz-se a apologia de uma democracia que se confunde com os partidos quanto menos a realidade partidária corresponde ao ideal democrático, por uma crescente indiferenciação ideológica e programática em que a representatividade se mede pelos resultados da competição eleitoral, em que as convicções, os ideais, as ideias se reduzem à conquista de votos a qualquer preço. Em que os partidos deixaram de ser instrumentos ao serviço dos interesses dos eleitores, são uma finalidade em si-próprios, prolongamentos do aparelho de Estado, representando os interesses económicos instalados que lhes dão apoio variável1. Assente nesses pilares, o neoliberalismo capitalista tecno-feudal impõe um estado de sítio de violência ritual, política e ideológica que intenta desenraizar qualquer humanismo, exilar os humanos de si-próprios.
Estes cenários são escuros e catastróficos? São, claro que são, mas a verdadeira catástrofe é o imobilismo. É não perceber que o conceito de progresso assenta na ideia de catástrofe. É deixar as coisas como estão 2. Olhe-se para o Angelus Novus de Paul Klee 3, descrito por Walter Benjamin, em que o Anjo empurrado pelos ventos da história deixa atrás de si os escombros do mundo em que vive e é empurrado pelo vendaval do progresso que o arrasta para o futuro. É esse o nosso mundo, em que temos que ser firmemente dialécticos para aproveitar nas velas os ventos da história, em que as velas são os conceitos mas em que não basta saber içá-las. Tem é que saber como as içar para viajar num mar povoado de escolhos sem ter nenhuma certeza mas também sem nunca perder o Norte 4.
Como alguém já referiu, vive-se o momento Moby Dick do neoliberalismo capitalista tecno-feudal, em que se revisitam quase diariamente versões actualizadas da Lição de Anatomia de Rembrant, dissecando o cadáver das crises, qualquer que seja o formato em que se apresentem, possam ou não eclodir em guerras, que a comunicação estipendiada nos vende em folhetins nas suas variantes pós-moderna e performativa. Um oceano de turbulentas vagas informativas que procuram condicionar a opinião pública registando as acções do capitão Ahab dos EUA/NATO e seus subservientes sequazes. Temos que avançar contra as alterosas vagas por onde estamos a ser arrastados pela baleia branca arpoada e sem hipóteses de sobrevivência que vai continuando a vitimar Ahab e os tripulantes do Pequod, enquanto nós, sem sabermos quando esta jornada termina temos que ser como Ismael, o sobrevivente da Moby Dick de Melville, com a obrigação militante de combater, sem ter tempo nem espaço para descanso, as turbulências das falácias, das ficções, das fraudes, das farsas que o sistema moribundo manipula sem parar.
Uma luta multifacetada de avanços e recuos, luta que se trava todos os dias, hora a hora, palmo a palmo, com uma duração incerta mas que nos lembra e demonstra que a luta de classes continua a movimentar a vida e a preparar o salto de tigre no céu livre da história 5, com a certeza de que a utopia não é o desejo do impossível mas daquilo que ainda não foi possível realizar.
Notas:
1. Excelente e recente exemplo é o 40.º Congresso do PSD/PPD, que entronizou como seu chefe Luís Montenegro, com discursos de um vazio ideológico total embrulhado em frases-chavão, em que o único objectivo perceptível é a conquista de votos a qualquer preço para regressar ao poder ao serviço dos interesses económicos instalados. Congresso em linha com os anteriores a esse e de outros partidos, em que a contabilidade dos votos é o doping de banais semânticas. A comunicação social dominante, jornalistas, directores de informação, editores e comentadores políticos espremem esse vazio para encontrar novidades nas coisas velhas e relhas, atinarem diferenças que, no essencial, em nada diferenciam entre si esses partidos. É a mediocridade instalada, vendida em folhetins diários numa sucessão de lugares-comuns.
2. «o conceito de "progresso" tem de assentar na ideia da catástrofe. Que as coisas continuem como estão é isso a catástrofe. Ela não é aquilo que a cada momento temos à frente, mas aquilo que já foi. Assim em Strinberg (A Estrada de Damasco?): o inferno não é nada que tenhamos à frente – é esta vida aqui em baixo» (Walter Benjamin, Questões Epistemológicas, Teoria do Progresso, in As Passagens de Paris, Obras Escolhidas de Walter Benjamin, edição e tradução de João Barrento, Assírio & Alvim, 2019, p. 603).
3. «Há um quadro de Paul Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter este aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de factos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas e que é tão forte que o anjo já não as consegue fechar. Este vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos progresso é este vendaval. (Walter Benjamin, Sobre o Conceito da História, Tese IX, in O Anjo da História, Obras Escolhidas de Walter Benjamin, edição e tradução de João Barrento, Assírio & Alvim, 2010, p. 13, 14).
4. «ser dialéctico é ter nas velas o vento da história. As velas são os conceitos. Mas não basta dispor das velas. Decisiva é a arte de as saber içar». (Walter Benjamin, Questões Epistemológicas, Teoria do Progresso, ed. cit., p. 603.)
5. A história é objecto de uma construção cujo lugar é constituído não por um tempo vazio e homogéneo, mas um tempo preenchido pelo Agora (Jetztzeit). Assim, para Robespierre a Roma antiga era um passado carregado de Agora, que ele arrancou ao contínuo da história. E a Revolução Francesa foi entendida como uma Roma que regressa. Ele citava a velha Roma tal como a moda cita um traje antigo. A moda fareja o actual onde quer que se mova a selva do outrora. Ela é o salto de tigre para o passado. Acontece que ele se dá numa arena onde quem comanda é a classe dominante. O mesmo salto, mas sob o céu livre da história, é o salto dialéctico com que Marx definiu a revolução. (Walter Benjamin, Sobre o Conceito da História, Tese XIV, in O Anjo da História, ed. cit., p. 17, 18).
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