terça-feira, 20 de setembro de 2022

Angola | UMA MANCHA NO CENTENÁRIO -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A memória é uma traidora. Quando menos esperamos, lá está ela a trair-nos escandalosamente. Podia e devia começar melhor, porque vou falar do caderno especial do Jornal de Angola dedicado ao centenário do nascimento de Agostinho Neto. Finalmente, um produto à altura do Fundador da Nação. Ficou salva a honra dos Media públicos. Não estou admirado porque sei que na Redacção Central do jornal e nas Redacções Provinciais estão as e os melhores profissionais do Jornalismo Angolano. Cumpriram.

A memória traiu Rui Ramos, que no suplemento especial púbica um texto intitulado “Os Meus Primeiros Tempos com Neto” com incorrecções graves e outras nem tanto. A idade não perdoa. Eu próprio, há dias que olho o espelho e digo: Mas quem é este velho sacana? Depois penso melhor e acabo por reconhecer que o velho sou eu mesmo. O jovem que quero ver já não existe, faz tempo.

Rui Ramos escreve que conheceu Agostinho Neto no dia 4 de Fevereiro de 1975. Foi esperá-lo ao aeroporto com um grupo de vizinhos. Não seria com a malta do Comité Amílcar Cabral, os maoistas de faca na boca? Pensa bem, Rui. isso pouco interessa. Mas é falso quando ele escreve que ao chegar à capital, o líder do MPLA instalou-se “no Futungo, numa residência que lhe foi cedida pelo médico Zeferino Cruz, onde ele governava e onde concedia audiências”.

Não é verdade. Agostinho Neto ficou instalado numa vivenda do Bairro de Saneamento, ao lado da Imprensa Nacional e por trás do Palácio da Cidade Alta. Sei disso porque ia todos os dias levar-lhe os despachos das agências noticiosas estrangeiras, que o Zé Mena Abrantes traduzia na Emissora Oficial de Angola (RNA). Ele fazia a selecção e depois eu escrevia um resumo. Na presença de Neto fazia um relato sobre o que aconteceu no mundo e respondia a dúvidas. Depois vinha uma garrafa de uísque verdadeiro e um copo. Era o sacrifício do dia. Eu bebia, com grande esforço, um copinho. O uísque verdadeiro sabe a medicamento e faz-me azia. Só gosto do falsificado.

Agostinho Nerto foi viver na casa do médico dentista Zeferino Cruz mais tarde. Para mal dos seus pecados. Não gostou nada de ser encafuado no condomínio dos ricaços, construído no tempo do governador Rebocho Vaz. 

Outra falsidade, esta ainda mais grave. Rui Ramos diz que “a ANGOP estava em formação com jovens militantes, na garagem do DIP, lá ao fundo à direita”. Aqui temos um problema muito sério. A ANGOP nasceu como vou contar. 

Um dia Agostinho Neto, no fim da exposição sobre o que se passava no mundo, disse-me que ia a Brazzaville conferenciar com o Presidente Marien Ngouabi por causa da questão de Cabinda. O seu primeiro-ministro, Henri Lopes, estava com a FLEC. No dia seguinte embarcámos naquele avião Dakota do MPLA que era tripulado pelo comandante Pestana. Na comitiva de Agostinho Neto ia também António Jacinto. 

A minha presença tinha um fim. Neto ia propor a Marien Ngouabi que no final do encontro, ambos concedessem uma conferência de imprensa. E eu devia perguntar ao Presidente da República Popular do Congo por que razão estava a apoiar a FLEC. Cumpri a missão. E fui tão insistente nas perguntas que Ngouabi respondeu zangado:

Nós somos os melhores amigos de Angoa e do MPLA. Aqui ninguém apoia a FEC. Eu não consentirei. 

O som passou na Emissora Oficial de Angola, repetidamente.

No regresso de Brazzaville, Agostinho Neto, sentado ao lado de António Jacinto, mandou a nossa camarada Gama (hospedeira de bordo!) chamar-me. Queria saber como podíamos amplificar notícias que interessavam a Angola e à estratégia internacional do MPLA. E eu respondi prontamente: Agência Angola Press! ANGOP. Jacinto aplaudiu e Neto ainda mais. Ficou combinado que noa dia seguinte ia a sua casa tratar do assunto, com Luís de Almeida, o patrão da Informação nessa época.

Para abreviar digo que na reunião com Luís de Almeida me desculpei com muito trabalho paras não participar no projecto e indiquei o nome de Zé Mena Abrantes, o homem que na Rádio lidava com as agências. Conhecia bem essa linguagem e a sua gramática. Escrever para agência é muito diferente do que escrever para jornal, rádio e televisão. Luís de Almeida agradeceu ter indicado Mena Abrantes porque o conhecia bem. Era o homem certo no lugar certo. E assim foi. 

Algum tempo depois fui ter com Mena Abrantes às catacumbas do Palácio da Cidade Alta, onde ele trabalhava no projecto da agência noticiosa. Na altura estava a ser ajudado pela Augusta Conchiglia. Disse-me que precisava de aprofundar os seus conhecimentos e tinha organizado um périplo por vários países onde ia ver como se organizava a produção de uma agência noticiosa. Era preciso dar o salto. Zé Mena Abrantes gosta de fazer tudo como deve ser. Não anda de punho no ar aos gritos, não dá nas vistas é eficiente e muito competente em tudo o que se mete. Conseguiu montar a ANGOP.

Rui Ramos chuta com o fundador da ANGOP para canto e diz que nasceu tudo numa garagem do DIP. Tens alguma coisa conta Mena Abrantes, Rui? Não sejas assim.

Mais grave ainda vem a seguir. Diz Rui Ramos que foi indigitado “para fazer o jornal ‘Vitória Certa’, juntamente com o António Cardoso e o Raimundo Sottomayor. Todas as semanas, rigorosamente, o jornal saía e tinha grande procura. Era dactilografado, depois teclado nas máquinas de chumbo e paginado à mão. Usavam-se fotogravuras e zincogravuras”. 

Há dias assim. Rui, não acertaste! Não sei porquê, afastaste do projecto o Bobella Mota, único jornalista do grupo que sabia e muito de jornais. Era ele que semanalmente organizava a informação e desenhava as maquetes de cada página. O Rui de Carvalho só sabia de Rádio. O comandante Dilolwa só sabia de luta amada e economia. O António Cardoso era poeta e também nada sabia de jornais. O Luís Filipe Colaço também fazia parte da equipa. Era matemático. E tu nada de nada. Só maoismo. Viva o Poder Popular. 

Andaste a estudar Direito, prenderam-te no processo de Joaquim Pinto de Andrade e quando regressaste escrevias textos de inspiração maoista no jornal da Liga Africana. Mas não eras jornalista nem o responsável. Quem estava à frente do jornal doutrinário era Mário Alcântara Monteiro que sabia de jornais apesar de ser um técnico superior da Alfândega. Foi chefe de Redacção da revista Mensagem. Do grupo que fazia o boletim constava Roberto de Almeida, Foi na condição de colaborador do “Angola” que ele foi cobrir a assinatura do cessar-fogo entre o MPLA e o Governo Português. 

O jornal Vitória Certa era paginado e impresso nas oficinas do Diário de Luanda. Toda a equipa redactorial colaborava no órgão oficial do MPLA. Nessa altura o António Cardoso trabalhava no ABC, então semanário e uma publicação da Gráfica Portugal, como o Diário de Luanda. Depois faltou mão-de-obra e fechou. Não sei se António Cardoso ajudava o Bobella Mota a fazer o jornal. Sei que Raimundo Souto Maior, Luciano Rocha, João Serra e eu fazíamos o jornal na oficina e na Redacção. Tenho uma má notícia para ti. De todos, aquele que dava mais horas (do seu descanso…) ao Vitória Certa era o Luciano Rocha que está sentado ao teu  lado no copy-desk do Jornal de Angola. 

Rui Ramos, antes de ir estudar para Portugal, nunca trabalhou no Jornalismo. Quando regressou, também não. Foi de novo para Portugal e o grupo maoista que na altura dominava o semanário “Expresso” arranjou-lhe trabalho como revisor. Fez isso até se reformar e voltar, reformado, de novo para Angola. Foi então que iniciou a sua carreira de jornalista, no Jornal de Angola. Nunca é tarde para aprendermos! 

No seu texto, Rui Ramos diz que “fui membro do Governo de Transição, nomeado pelo ministro da Informação, Manuel Rui Monteiro”. Rui, deita fora a garrafa., Não bebas mais. O Manuel Rui é que fazia nomeações para o Governo de Transição? Estás muito enganado. Os três movimentos de libertação indicavam os seus governantes. E a nomeação era do presidente do Colégio Presidencial, também alto-comissário. Tu nunca foste membro Governo de Transição. E nessa altura não existia nada parecido com a ERCA. Já sei! Estás a fazer-te a um lugar na ERCA! Ou então queres sacar o lugar ao director do Jornal de Angola! 

Mais grave, gravíssimo. Escreve Rui Ramos que “Agostinho Neto recebia-me regularmente numa sala da sua nova residência e comigo falava e discutia questões ligadas à Informação”. Como podia o líder do MPLA discutir questões ligadas à informação com quem nada sabia nem sabe de informação? Agostinho Neto vivia numa moradia no Bairro de Saneamento. Portanto, Rui Tramos reunia-se com ele mas em sonho. 

Mais uma imprecisão indesculpável. Rui Ramos escreve que quando regressou da cimeira de Nakuru “a situação era mesmo muito tensa e Luanda estava em permanente guerra entre os filhos de Angola”. Sim, Rui, alguns seriam filhos de Angola. Mas o grosso da manada eram filhos do Zaire. Tropas zairenses. Aos milhares. Matando e torturando filhos de Angola sob a capa da FNLA e seu braço armado, o ELNA. Não é preciso mentir, Rui. 

No seu escrito também diz que “o responsável pelas Relações Exteriores do MPLA era Afonso Van-Dúnem Mbinda”. Falso. Mbinda era o braço direito de Agostinho Neto, para as relações exteriores. Sempre ao lado do líder. Sempre, até ele morrer. Grande Mbinda! Não tenho a certeza mas nessa altura, o responsável do Bureau Político do MPLA para as Relações Exteriores era José Eduardo dos Santos. E o seu braço direito, Paulo Jorge, que nesse tempo não era do Bureau Político. 

Uma falsificação gravíssima: “Regressámos a Luanda via Lusaka para encontrarmos uma Luanda devastada pela guerra, muito rapidamente a FNLA e a UNITA iam ser expulsas de Luanda e desfazia-se o Governo de Transição, o MPLA dava os primeiros passos para o regime de partido único”. Rui, a FNLA e a UNITA não foram expulsas de Luandas. As tropas zairenses é que foram. Falsificas a História para quê? Indesculpável. 

E quando dizes, mansamente, que “o MPLA dava os primeiros passos para o regime de partido único” estás a ser um brincalhão. Tu apostavas tudo no partido único. Querias os maoistas no poder. O MPLA teve que te prender e deportar para Cabinda porque estavas a causar grandes danos à nossa luta.

Nesse tempo eu convivia todos os dias o comandante Dilolwa, o teu chefe, em casa do comandante Ndozi, no Bairro de Saneamento. Também apareciam os comandantes Kianda e Rui de Matos. Mais o meu inesquecível amigo Armando Guinapo. Pedi-lhe encarecidamente que te tirasse de Cabinda. E ele só me dizia que o MPLA não podia perder tempo com militantes que não percebiam o sentido da nossa luta. 

Rui Ramos, tu fundaste a Organização Comunista de Angola (OCA), maoista de faca na boca. E agora vens insinuar que o MPLA expulsou a UNITA e a FNLA de Luanda para fundar um regime de partido único. Tanta mentira, tanta falsidade, tanto oportunismo. Para quê? Os anos de revisor no “Expresso”, mal acompanhado, deram-te volta ao miolo. Ou então as visitas à Jamba. Tu lá sabes o que foste fazer ao acampamento militar do Savimbi. Cura-te que ainda vais a tempo.

A Luísa Rogério deu-te uma carteira profissional de jornalista quando tu foste apenas revisor. Depois de viveres um ano à grande e à francesa no Hotel Tivoli, à custa do MPLA, consegui convencer o Zé Ribeiro a admitir-te na Empresa Edições Novembro. Dizias que tinhas todo o tempo do mundo para nós. No dia seguinte à admissão disseste que tinhas que andar pelo país a distribuir uns monos que te mandavam de Portugal e chamavas a esses subprodutos “bibliotecas”. Deram-te uma carrinha, motorista, casa, um montão de dinheiro e estatuto de jornalista, que nunca foste nem serás. Depois vens mentir, falsificar, deturpar. Foi isso que aprendeste na Jamba quando foste ao beija-mão do Savimbi como maoista arrependido? Rui não faças isso. 

Envelhece sem atropelares ninguém. Muito menos quem te dá de comer muito mais do que mereces. Queres ir para a ERCA? Aauilo acaba logo no primeiro mês. Queres ir para director do Jornal de Angola? Tu serás a sua certidão de óbito.! Ouvi dizer que o Chico Viana está a precisar de um assessor. Esse lugar assenta-te bem! Maoista com maoista dá beijo na boca.

Hélder Neto Esquecido

O texto acima fala da equipa que fez o jornal Vitória Certa, órgão oficial do MPLA em 1975. Peço desculpa mas tive um lapso de memória imperdoável. Não falei do mais importante de todos os membros da equipa, Hélder Neto. Foi ele que criou o logotipo do jornal e elaborou o edifício gráfico.  

Hélder Neto era um artista. E sabia muito de artes gráficas. Foi ele que enfrentou os maoistas que tomaram de assalto o DIP do MPLA, entre eles, Rui Ramos.

Hélder Neto foi assassinado pelos nitistas na madrugada  de 27 de Maio de 1977.

*Jornalista

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