segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Portugal | O MEU ADRIANO MOREIRA

João Moreira | Diário de Notícias | opinião

Sou filho de um homem velho, e esse homem velho chama-se Adriano Moreira. Quando era pequeno - já o meu pai era velho -, o meu pai explicou-me, com a frontalidade trasmontana que lhe era característica, que eu ia deixar de ter pai muito cedo. Cresci marcado por este medo, que condicionou muitas decisões que tomei.

Em 2011, aceitei a inevitabilidade (da falta de controlo sobre o momento) da sua da morte, e decidi ir viver para Moçambique, consciente de que lhe poderia acontecer alguma coisa enquanto lá estivesse, ou de que já pouco o gozaria no meu regresso. Voltei em 2013 e, depois disso, tive ainda mais nove anos de pai. Este homem velho viveu até ser mesmo muito velho.

No dia em que parti para Moçambique, concebi esta carta. Guardei-a na minha memória até este momento em que, de certa forma, a imprimo.

É esmagador ser-se filho da figura pública do Adriano Moreira, por boas razões, mas esta carta é sobre o meu pai, e não sobre o Académico que teve duas passagens pela política.

O casamento dos meus pais é uma das histórias mais bonitas que pode haver sobre compromisso - entre meios sociais, interesses e gerações.

Este compromisso teve dois motores: a inteligência do meu pai (sempre e em tudo na vida, racional e institucionalista) e, antes disso, a pujança emocional e força interior da minha mãe, que se projeta em tudo o que faz.

A minha mãe é apaixonada - literalmente, apaixonada - pelo meu pai desde os tempos da faculdade. E dedicou a vida a este amor, que tem muito pouco paralelo. Foi esta mãe que, sobretudo na minha adolescência, funcionou como a lente que me permitiu ver melhor o pai que tinha. Nesse processo, apercebi-me de que a dimensão pessoal do meu pai era ainda superior à dimensão da figura pública.

Neste momento em que se multiplicarão os escritos e as homenagens à figura pública, sinto necessidade de trazer a público o meu testemunho sobre o meu Pai, o que acaba também por ser a minha forma de homenagem. Faço-o a título pessoal.

O meu Adriano Moreira:

O meu pai nasceu pobre. Era filho de um polícia e de uma costureira e lutou muito para chegar onde chegou. Era, literalmente, um self made man. Esta origem teve consequências e manifestações várias, que são o ponto de partida da minha admiração.

O meu pai encarava com naturalidade o facto de ter nascido pobre. Descrevia as limitações com que vivia e a vida na aldeia, e até as dinâmicas rico-pobre ali vigentes, de forma absolutamente factual/sociológica - sem lamentar a pobreza; sem invejar a riqueza. Mais importante, orgulhava-se da sua origem. Era trasmontano de coração, e sempre lembrou - a nós e ao mundo - de onde vinha.

A relação que o meu pai tinha com a sua origem teve impacto na vida pessoal, mas teve também um impacto decisivo no seu pensamento político, com tradução em ideias muito simples: não é preciso limitar o sucesso de cada um, mas sim compensar as diferenças entre os vários pontos de partida, para que todos tenham oportunidade de sucesso; meritocracia, temperada com humanismo cristão. Lembro-me bem da primeira vez em que o meu pai me falou sobre a diferença entre igualdade à partida e igualdade à chegada...

Não tendo tido sorte no meio social (do ponto de vista do poder de compra, etc.), teve, no entanto, sorte nos pais: os meus avós, apesar do tempo em que viveram e do meio a que pertenciam, incentivaram e suportaram os estudos do meu pai (e da irmã...) até à faculdade. O meu pai não perdia uma oportunidade para lembrar - novamente, o orgulho na sua origem - que devia tudo aos meus avós, sem conseguir perceber, quando olhava para trás, como isso tinha sido possível. Passou os últimos tempos de vida preso a este pensamento e admiração, insistindo connosco para que não nos esquecêssemos que devíamos tudo ao meu avô, "António Moreira, sub-chefe da Esquadra de Campolide".

O meu pai explicava, a propósito da idade com que casou, que(para além de precisar da pessoa certa...) sentia que só poderia casar quando tivesse capacidade para sustentar uma família e os próprios pais. O meu pai era, por tudo isto, um homem profundamente agradecido!

Ao nível pessoal, este homem que nasceu pobre acabou por se casar com uma pessoa de um meio social bastante diferente, convivendo e vendo os seus filhos serem expostos a um ambiente que nada tinha que ver com o seu ponto de partida. E adaptou-se, com naturalidade: deu o que pôde aos filhos; deu o que nunca teve aos filhos - sempre e apenas com a preocupação de que não banalizássemos a nossa sorte à partida (isso sim, incomodava-o bastante).

Mas a generosidade foi, ainda antes disso, dirigida à minha mãe. O meu pai conseguiu sempre manter na esfera da minha mãe tudo o que lhe era querido, e onde não pôde manter, conseguiu parecido - tudo, em nome do respeito pela ligação umbilical da (família da) minha mãe a sítios, a lugares, a memórias; sempre, com máxima hospitalidade para todo o Clã Lima Mayer; em grande medida, com prejuízo para os seus próprios gostos e prioridades. O meu Pai era um homem profundamente generoso!

O meu pai era, também, um homem justo e decente. Ético. Seja na esfera pessoal ou profissional, tenha ou não estado certo se e quando decidiu, guiou sempre os seus processos de decisão por um imperativo de justiça e decência. Agia de acordo com a sua consciência; punha as questões de princípio acima de tudo o resto; fazia o que acreditava ser o mais correto.

Desta característica resultava outra, relacionada: o desprendimento. Com isto refiro a capacidade de aceitar, com dolo necessário ou eventual, as consequências negativas de decisões tomadas em nome dos seus princípios e do seu sentido de justiça. Porque esse é o verdadeiro teste de caráter. Foram-lhe conhecidas muitas decisões de princípio, mas é interessante cruzar cada decisão com o contexto pessoal em que foram tomadas: o processo-crime contra um Ministro da Defesa, logo no início da sua vida profissional - acabou preso, depois de tanto esforço e privação para tirar o curso...; a demissão de Ministro do Ultramar, por não conceder na visão que tinha para a África - com a consequência da perda de estatuto de jovem estrela do regime; a proteção ao irreverente Bispo da Beira, em Moçambique (forte defensor dos direitos dos indígenas e do respeito pela diversidade de culto), pela via da publicação de artigos de opinião no Jornal da Beira - criando à PIDE o constrangimento de censurar um jornal onde escrevia um antigo Ministro, sem poder antecipar as consequências; o confronto com o pequeno Ministro da Educação e a consequente demissão de Reitor, para proteger o ISCSP - voltando oficialmente as costas ao regime no verão em que nascia o seu primeiro filho; e até, numa fase mais recente, a sua demissão de Presidente do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior, por discordar das políticas de educação que estavam a ser adotadas - renunciando a um dos cargos que mais gostou de exercer, com adequação perfeita ao seu perfil e estatuto e que representava, dada a fase de vida em que já se encontrava, uma das últimas oportunidades que tinha para se manter no jogo. A questão de princípio, neste caso, levou-o ao ponto de, já Senador, aceitar participar num programa de televisão a partir da plateia, para ter a oportunidade de expressar publicamente a sua divergência da política seguida pelo então ministro responsável pelo ensino superior (convidado no referido programa), que tinha idade para ser seu filho.

Este episódio pode não ter tido a importância de outros, mas marcou-me porque o vivi em casa, já universitário, e pude testemunhar o seu caráter e personalidade com os meus próprios olhos.
O meu pai era, para terminar, um grande pai de família. Tinha um amor profundo por cada um de nós, e um profundo respeito pela maneira de ser de cada um - de cada traço de personalidade, de cada idiossincrasia.

Sendo um homem que acreditava nas instituições, vivia a sua família de forma profundamente institucional. Preocupava-se com a minha mãe e connosco, antecipava e geria todos os cenários, incluindo o da sua partida.

Quando nasceu a minha primeira filha, disse-me, contrastando com o ambiente de euforia: "parabéns, nasceu-te uma responsabilidade até ao fim da tua vida". Quatro filhos depois, revisito esta conversa com muita regularidade...

Ironicamente, dada a força da sua personalidade e a diferença de idades, o meu pai cedo aceitou que a nossa família tivesse uma organização de base matriarcal, e era o primeiro e maior admirador da minha mãe. Sempre que estávamos sozinhos, gostava de me falar sobre isso, e salientava traços de personalidade da minha mãe e episódios concretos: o perfil de bombeiro da família; o altruísmo e a força interior; a capacidade que tinha de ler o coração de cada um dos filhos; a forma incondicional como arrancou para o Brasil no pós 25 de abril, largando uma família que na realidade é um clã, sem ter qualquer perspetiva de regresso, etc., etc., etc., etc...

O meu pai viveu demais, infelizmente, porque viveu o suficiente para perder um filho, o que foi um golpe fatal: porque, para além da dor da perda, isso aconteceu em contraciclo com o momento que, coletivamente, atravessávamos, e evidenciou que não é possível gerir e antecipar todos os cenários... Foi aqui que o meu pai percebeu que as coisas já não estavam na sua mão, o que acabou por ser fonte de tranquilidade - porque o medo que tinha da morte vinha do sentido de responsabilidade que tinha sobre nós.

Seis meses depois, assumiu a sua última responsabilidade - levar a filha mais nova ao altar -, após o que entrou, finalmente, em Tempo de Vésperas, tendo vivido até ao fim tranquilo, sem medo do que o esperava, a falar-nos dos seus pais e a fazer declarações diárias de amor à minha mãe.

Este, foi o meu Adriano Moreira.

Imagem: João Moreira, filho, em DN

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