terça-feira, 1 de novembro de 2022

A DEMOCRACIAZINHA E A CENSURA NO REINO UNIDO

BASTARDS (estupores)

Anabela Fino* 

A forma como o poder britânico tem tratado o grande cineasta Ken Loach (foto) é um bom indicador do estado a que chegou aquela “modelar democracia”. Como os seus notáveis filmes constituem poderosas denúncias da desigualdade e da pobreza que aí se vive, a sua difusão não só é escassa como, no caso da BBC, são ou foram censurados. Ken Loach, que militava na ala esquerda do “Labour”, demitiu-se perante a viragem à direita que resultou da eleição de Keir Starmer e da perseguição interna que se lhe seguiu. Ali, como nos EUA, os partidos que se alternam no poder não representam qualquer alternativa entre si, outro sinal da robustez daquela “democracia”.

Diz-se da Inglaterra que é a mais antiga democracia parlamentar do mundo. A afirmação tornou-se um lugar comum, um clichê, que de tanto repetida é aceite como se verdade fosse.

A baderna política que se vive em terras de sua majestade – só a mera existência da monarquia é motivo de reflexão – após a demissão forçada de Boris Johnson, a escolha de Liz Truss para chefe do governo e a sua demissão 45 dias depois, não incomoda as cabeças bem pensantes nem as leva a questionar um regime em que o destino da esmagadora maioria da população está à mercê de uma elite que integra o 1% dos mais ricos e que não faz a mais pálida ideia de como (sobre)vivem os seus concidadãos.

O recente massacre mediático a propósito da morte e respectivas exéquias fúnebres de Isabel II, a que não faltou o luto nacional decretado por Marcelo Rebelo de Sousa, é paradigmático da lavagem ao cérebro a que estamos sujeitos através de doses maciças de desinformação.

Desinformação tanto mais grave quanto se sabe que existe, e até está disponível, informação a sério. Exemplo disso foi o documentário «Versus: A Vida e os Filmes de Ken Loach», apresentado na última quinta-feira pela RTP2, ao final da noite, e ainda disponível em RTP Play.

«Quando fazemos filmes sobre a vida das pessoas, a política é essencial», diz-nos Loach, sublinhando que «é essa a essência do drama, do conflito». A história da obra de Loach, «o realizador de esquerda mais subversivo que este país conheceu», como o define um amigo, é a história da Inglaterra escondida pelos media. Filmes com pessoas reais, locais reais, problemas reais, é isso que Loach faz, expondo a face nua e crua da sociedade e dos diversos intervenientes. Oriundo da classe operária, o realizador integra a minoria que teve oportunidade de prosseguir os estudos, consciente da existência de dois mundos onde uns poucos ditam as regras. Em Oxford conhece a elite que irá ser a classe dirigente, percebe que nunca será advogado e envereda pelo cinema. Descobre as duas forças motrizes da sociedade, capitalismo e trabalho, e que são inimigas. Os seus filmes reflectem-no, com as inevitáveis consequências. A democrática, independente e isenta BBC recusa-lhe a apresentação de trabalhos encomendados por «impróprios para emissão», a indústria do cinema idem: a luta de massas, as denúncias das traições políticas e sindicais, a brutalidade policial não têm lugar na «mais antiga democracia do mundo». «Não podemos emitir isso», dizem a Loach. Esteve 12 anos sem filmar por manter a sua integridade. Para ficar bem na fotografia, os que o censuraram mostram hoje a sua obra, como é o caso da BBC. Parafraseando Loach, que aos 78 anos se auto-reformou para voltar dois anos depois devido à vitória dos conservadores, bastards (estupores)!

*Publicado em O Diário.info

Fonte: https://www.avante.pt/pt/2552/opiniao/169351/Bastards.htm?tpl=179

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