Andrei Raevsky [*]
Algo bastante surpreendente acaba de acontecer. Na sequência do ataque terrorista em Ancara que matou 34 pessoas e feriu outras125, as autoridades turcas declararam pela primeira vez que não aceitarão as condolências dos EUA. A seguir os turcos lançaram uma operação militar contra “terroristas curdos no norte da Síria“. A Turquia afirmou então ter neutralizado 184 terroristas.
O que não é mencionado nesses
artigos é que o alvo do ataque turco foi o centro administrado pelos Estados
Unidos para treinamento e educação de militantes do PKK
Será que isso soa familiar?
Se assim o for, é muito semelhante ao que os iranianos fizeram quando atingiram as bases dos EUA no Iraque após o assassinato do general Solemani num ataque de drones dos EUA.
Se o que foi dito acima for verdade, e os rumores são muito “se” e não podem ser considerados como factos comprovados, então isso significa que um estado membro da NATO (Turquia) acabou de atacar uma base dos EUA e, assim como o Irão, escapou impune: “ A Melhor Força de Combate da História do Mundo” acabou de ser golpeada com força e humilhada pela segunda vez e não pôde fazer absolutamente nada para se defender ou mesmo salvar a face.
Quão grande foi a bofetada na cara que tio Shmuel levou desta vez? Segundo o ministro da Defesa turco, Hulusi Akar:
“Abrigos, bunkers, cavernas, túneis e armazéns de terroristas foram destruídos com sucesso”. Akar acrescentou que “a chamada sede da organização terrorista também foi atingida e destruída”. No geral, o Ministério da Defesa afirmou que os ataques atingiram quase 90 alvos, que, segundo ele, estavam ligados ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e às Unidades de Defesa do Povo Curdo (YPG).
Mesmo admitindo algum “exagero patriótico”, é bastante claro que o golpe de vingança de Ergodan foi muito substancial e, aparentemente, bastante eficaz.
Então, o que temos aqui? Um estado membro da NATO quase acusou os EUA de um grande ataque terrorista contra sua capital, e então esse estado membro da NATO atacou abertamente uma instalação administrada pelos EUA (não vamos chamá-la de base, isso seria impreciso).
A afirmação de Erdogan é mesmo crível? Absolutamente! Não apenas os EUA já tentaram derrubar e matar Erdogan, que foi salvo in extremis pelas forças especiais russas (o mesmo com Ianukovich), mas também sabemos que os EUA derrubaram o general de Gaulle em 1968-1969 e que as forças secretas da NATO foram usadas para encenar ataques de bandeira falsa contra aliados da NATO (especialmente a Itália) na chamada operação GLADIO.
A NATO não é uma aliança defensiva – nunca foi – mas sim uma ferramenta da dominação colonial dos EUA.
Isso sempre foi verdade, daí as famosas palavras ditas na agora longinqua década de 1950, quando o primeiro secretário-geral da NATO, o general britânico Hasting Ismay, admitiu sem rodeios que o verdadeiro objetivo da NATO era manter os “russos fora, os americanos dentro e os alemães em baixo”. Vamos examinar esses elementos um por um, a começar pelo último:
- “Manter os alemães em baixo”: aqui a palavra “alemães” é um substituto para todo e qualquer líder ou país europeu que deseje verdadeira soberania e agência. Tradução: escravizar os europeus
- “Manter os americanos dentro”: esmagar qualquer movimento de libertação europeu. Tradução: colocar o domínio dos EUA sobre todas as nações da UE.
- “Manter os russos fora”: garantir que a Rússia não liberte a Europa. Tradução: demonizar a Rússia e fazer de tudo para impedir a paz no continente europeu. Se possível, dividir, subjugar ou destruir a Rússia.
Precisa de prova? Que tal o inegável ato de guerra contra a Alemanha (e, eu diria, toda a UE) quando os anglos explodiram o NS1/NS2? Isso não é prova suficiente?
Nesse contexto, temos que nos perguntar: o que significa ser um estado membro da NATO em 2022?
A verdade é que a NATO foi pura criação da Guerra Fria e que no mundo real de 2022 é um anacronismo total. Ser um estado membro da NATO realmente significa muito pouco. Não apenas alguns são “mais iguais do que outros” na NATO, mas também há estados não pertencentes à NATO que são muito mais “NATOizados” do que os verdadeiros estados membros da NATO (penso em Israel ou, é claro, na Ucrânia ocupada pelos nazis). E ser membro da NATO não o protege de nada, nem de ataques externos e nem de ataques internos.
De acordo com o coronel (Reformado) MacGregor, a guerra na Ucrânia poderá provocar o colapso da NATO e da UE. Concordo muito com ele. Eu diria que tal colapso não será tanto o resultado de derrotas embaraçosas e sim devido às profundas contradições internas dentro de ambas as organizações.
A propósito, este não é o nosso tópico hoje, mas acho que o CSTO tem muitos dos mesmos problemas e contradições da NATO. Então, o que observamos é um “problema da NATO” ou um problema de alianças artificiais e geralmente obsoletas? Eu defenderia o último.
Mas deixemos a discussão do CSTO para outro dia.
No caso da Turquia, esse problema é agravado por uma total incompatibilidade entre o Islão e a ideologia Woke agora abertamente promovida (e aplicada) pelos EUA e pela NATO.
Depois, há a geografia. A Turquia tem alguns vizinhos regionais bastante poderosos, incluindo não apenas a Grécia ou Israel, mas também Irão, Arábia Saudita, Egito, Azerbaijão, Iraque, Síria e, claro, Rússia. Pode a Turquia contar com qualquer tipo de “proteção” dos EUA/NATO em relação a vizinhos tão poderosos?
Pergunte aos sauditas o quanto os EUA/NATO os ajudaram contra os houthis!
Pergunte aos israelenses quanto os EUA/NATO os ajudaram contra o Hezbollah?
No mínimo, os ataques iranianos às bases do CENTCOM demonstraram que os EUA não têm estômago para enfrentar o Irão. Em nítido contraste, a intervenção russa e iraniana na Síria derrotou os planos dos EUA para um “Novo Médio Oriente” ou, digamos, criou um “novo Médio Oriente”, mas definitivamente não aquele que os neoconservadores americanos estavam à espera!
Acrescente-se a isso uma grande deterioração no relacionamento entre os EUA e a Arábia Saudita de MBS e temos um quadro surpreendente: os EUA e a NATO (que os EUA arrastaram para a região) estão gradualmente a tornar-se irrelevantes no Médio Oriente. Ao invés disso, novos “grandes atores” estão gradualmente a preencher o vazio, incluindo a Rússia e o Irão, os quais agora estão a permitir gradualmente que a Arábia Saudita participe de um diálogo regional muito necessário sobre o futuro da região.
A fraqueza fenomenal dos EUA/NATO/CENTCOM é melhor ilustrada pela reação dos EUA aos ataques turcos: o Tio Shmuel endossou (sem brincadeira!!!) os ataques turcos 🙂
Quão absolutamente patético é isso para um aspirante a superpotência?
Será que esse processo terá impacto na guerra da NATO contra a Rússia?
Bem, vamos imaginar que a Rússia realmente atingisse algum alvo dentro da Polônia (que é o que os ucranianos alegaram, assim como os polacos até o tio Shmuel lhes dizer para esfriarem). O que aconteceria a seguir?
Alguém ainda se lembra do que aconteceu quando Erdogan voou para Mons a fim de implorar a proteção da NATO contra a Rússia (após a derrubada de um Su-24 russo sobre o norte da Síria por uma operação conjunta EUA-Turquia, possivelmente executada sem o conhecimento de Erdogan, pelo menos foi o que ele afirmou). O que é que a NATO prometeu ou deu aos turcos? Absolutamente *nada* (além de “consultas”).
Agora os polacos podem estar suficientemente iludidos para pensarem que um presidente dos EUA pode ordenar um ataque de retaliação à Rússia se a Rússia atacar a Polônia, mas aqueles que conhecem os EUA e suas elites governantes sabem que isso é um absurdo. Por quê? Simplesmente porque um contra-ataque dos EUA/NATO contra as forças russas resultaria em uma resposta russa imediata.
E então?
A verdade é muito drástica na sua simplicidade:
Os EUA/NATO não têm mão-de-obra ou poder de fogo necessários para enfrentar a Rússia numa guerra convencional de armas combinadas.
Qualquer utilização de armas nucleares resultará numa retaliação imediata, resultando provavelmente numa invencível guerra nuclear em grande escala.
Portanto, aqui está o acordo: quer os políticos ocidentais entendam isso ou não, todos os militares profissionais sabem a verdade – a NATO não pode defender NENHUM de seus membros contra um exército verdadeiramente moderno. Por quê?
Vejamos que capacidades os EUA/NATO realmente têm:
A USN tem uma excelente força submarina (SSNs e SSBNs) capaz de disparar um grande número de mísseis de cruzeiro relativamente obsoletos (e muitos SLBMs)
Uma tríade nuclear ainda muito capaz, embora bastante antiga
Uma vantagem convencional quantitativa (apenas!) sobre a Rússia
Excelentes (mas muito vulneráveis!) capacidades C4ISR
Uma impressora que permite a impressão quase infinita de dólares
Uma elite compradora governando todos os países da NATO/UE
A máquina de propaganda mais formidável da história
Então, o que falta à NATO para ser uma força militar credível?
Obviamente, “botas no chão”. E não me refiro a algumas subunidades do 101º ou 82AB ou forças especiais dos EUA ou mesmo uma chamada “brigada blindada” que, na realidade, carece de TO&E adequados para se qualificar como tal. Estou falando de uma força de “guerra terrestre” capaz de combater um inimigo moderno e extremamente determinado.
[Em paralelo: se este for um tópico de seu interesse, posso recomendar meu artigo “Debunking popular clichés about modern warfare” (Expurgando clichés populares acerca da guerra moderna) escrito em 2016, mas que ainda é relevante]
Os EUA, Israel e a Arábia Saudita caíram na mesma armadilha: a ilusão de que gastar milhares de milhões de dólares em equipamentos militares extremamente caros e com baixo desempenho permitirão derrotar um inimigo considerado “menos sofisticado” . Daí a necessidade de usar:
Forças proxy
PMCs
PSYOPS
Corrupção
Todos os itens acima são uma parte normal de qualquer guerra moderna, mas no caso dos EUA/NATO eles não são apenas parte de um plano maior, eles são centrais para qualquer operação dos EUA/NATO, diminuindo drasticamente as verdadeiras capacidades do EUA/NATO. Em nítido contraste, países como a Rússia ou o Irão podem usar “botas no chão”, e muito capazes (lembre-se que os iranianos são aqueles que treinaram o Hezbollah!).
O que tudo isso significa na prática?
Isso significa que, mesmo que os russos decidissem atacar um país da NATO, as tensões aumentariam, mas é altamente improvável que qualquer presidente dos EUA permita qualquer ação que possa resultar em uma guerra nuclear em grande escala! Lembre-se, para a Rússia, esta é uma guerra existencial, não menos que a Segunda Guerra Mundial, enquanto nenhum líder anglo jamais ousaria lançar um ataque suicida contra as forças russas que provavelmente resultaria na destruição total dos EUA/Reino Unido e de qualquer outro país participante ( por exemplo, hospedando armas de impasse posicionadas para a frente) em tal ataque.
Isso significa que temos de prever um ataque russo à Polônia, Romênia ou Reino Unido?
Não, de modo algum. Na verdade, seria muito perigoso para os russos deixar apenas uma escolha drástica para o hegemon: admitir a derrota ou cometer suicídio. E como os russos têm domínio da escalação (isto é, eles têm capacidades equilibradas desde o nível de fogo de armas pequenas até uma guerra nuclear intercontinental completa, e com todos os estágios entre esses dois extremos), eles, ao contrário dos EUA/NATO, não estão presos entre a escolha da rendição ou do suicídio.
Dito isto, também seria equivocado supor que a Rússia “nunca ousaria atacar um estado membro da NATO”. Os polacos podem estar dispostos a apostar seu futuro e até mesmo sua existência em tal inferência inválida, mas não o pessoal do Pentágono ou de qualquer outro lugar nos centros de decisão da Hegemonia.
Conclusão:
Douglas MacGregor está certo, a guerra da NATO contra a Rússia pode muito bem resultar no colapso da NATO e da UE o que, por sua vez, colocará um “último prego” oficial no caixão de uma hegemonia já morta há muito tempo e que atualmente ainda existe apenas por causa do seu ímpeto e da sua máquina de propaganda.
Eu diria que a NATO já está a desmoronar diante de nossos olhos, um processo que as crises econômicas, sociais, políticas, económicas e espirituais que assolam toda a UE só irão acelerar. E, claro, o mais surpreendente nisso tudo é que tal colapso não é o resultado de algum plano maquiavélico arquitetado por russos, chineses ou iranianos, mas sim uma consequência direta de décadas de políticas verdadeiramente suicidas: eles fizeram isso a si próprios!
Agora, os russos, os chineses e os iranianos estão à espera, a observar (provavelmente a sorrir) e planeando o mundo multipolar livre de hegemonia que desejam criar, com ou sem a participação dos EUA e da Europa.
22/Novembro/2022
[*] Analista militar.
O original encontra-se em thesaker.is/is-nato-falling-apart/ .
Este artigo encontra-se em resistir.info
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