segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Angola | MEMÓRIAS E ACTUALIDADES – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Primeiro a memória. Em 1977 o Presidente Agostinho Neto disse-me com ar grave e pesaroso: “Não podemos ter crianças sem escolas nem escolas sem professores. Acabar com esta tragédia é uma emergência”. E deu as suas instruções para resolvermos tão grave problema. Em Lisboa lançámos uma operação para recrutamento de professores, desde o ensino básico ao superior. Para isso tivemos o apoio do Sindicato dos Professores e da União da Esquerda Democrática e Socialista (UEDS) liderada pelo engenheiro Lopes Cardoso, que tinha acabado de romper com a liderança de Mário Soares, no Partido Socialista.

O recrutamento e selecção foram feitos em ritmo de mata cavalos mas ao fim de um mês tínhamos milhares de professores prontos a embarcar para Angola. Grande trabalho do Dr. Arménio Ferreira mas também de Leiria Pinto, Jofre Justino e Adriano Correia de Oliveira, o Trovador de Abril. Enviámos o primeiro grupo para Luanda e logo a seguir veio uma ordem: Não vem mais ninguém até novas ordens! Não existiam instalações para alojar mais professores. E mesmo os que chegaram a Angola ficaram alojados em más condições, na capital e em Benguela.

Antes da primeira Guerra do Golfo eu estava em Bagdade. No dia 22 de Dezembro fui à Palestina (Cisjordânia), cidade de Belém, para fazer uma reportagem de Natal. Passei também pelos campos de refugiados de Aida e Azza. Em Jerusalém comecei a sentir-me mal, a coisa piorou três dias depois e quando estava em Aida a febre subiu muito. Fui a um hospital de campanha, instalado numa tenda e aí recebi tratamento. Algumas horas depois tive alta e quis pagar o serviço. Uma médica disse-me que ali só entravam pessoas com necessidades de cuidados médicos: “Quando entrar aqui dinheiro nós vamos embora!”

Estas memórias fazem falta para falar agora da actualidade. Primeiro vamos às escolas e aos professores. 

Após a Independência Nacional, o Ministério da Educação, liderado por Ambrósio Lukoki e Artur Pestana (Pepetela), lançou a campanha nacional de alfabetização. O analfabetismo em Portugal era uma política de Estado, não apenas um castigo aos povos das colónias. Salazar dizia que aos portugueses bastava aprender a ler, escrever e contar. Assim fez um país de analfabetos totais e funcionais. Esses iam para as colónias espalhar o analfabetismo, a boçalidade, o espírito do ocupante acéfalo. Alguns angolanos e portugueses que ficaram, eram alfabetizados e aderiram à campanha. Eu comecei pela minha empregada doméstica. E ela encarregou-se de me arranjar mais seis clientes.

Só quem já alfabetizou alguém compreende a emoção do alfabetizador quando vê os primeiros resultados. Esse meu trabalho está entre as coisas mais importantes que fiz na vida. Quando penso nesses dias, fico comovido. Obrigado ao Presidente Neto. Obrigado ao camarada Lukoki. Obrigado ao camarada Pepetela. Obrigado aos meus alfabetizados. Obrigado ao MPLA.

Hoje temos uma boa parte da juventude sem trabalho. Tal como existem cuidadores informais, também podem existir professores informais. Jovens que dão explicações, dão aulas, ensinam a quem não tem escola nem professores. O Ministério da Educação pode dar-lhes uma formação básica, fornece-lhes os livros e os programas. No fim, os alunos são submetidos a uma prova nacional e se aprovarem, o formador recebe um prémio pecuniário. Esse dinheiro é mais bem gasto do que na construção de uma escola que depois não abre porque não tem professores disponíveis. Não é fácil encontrar jovens interessados em dar aulas nos municípios do interior onde não existe nada, a não ser desertificação humana.

Por falar nisso, quero aplaudir o anúncio de quase três mil projectos para Luanda, feito pelo governador provincial. Mas também fico preocupado. Porque isso quer dizer que retirar da capital pelo menos metade da população, não é prioridade. Nem está nos programas anunciados. Por muitas voltas que deem, os problemas da capital só se resolvem quando a cidade for dimensionada à escala humana. Luanda tem dez milhões de habitantes. Só podem viver mal porque só cabem lá metade.

As pessoas que habitam em Luanda não podem continuar a morar em habitações precárias, em bairros infectos, sem água nem luz, sem recolha de lixo, sem limpeza urbana. Mas para retirar milhões de habitantes, é preciso criar todas as condições nas províncias. Em cada província do interior sim, é preciso executar três mil projectos, em 2023. 

Em todas as províncias ao mesmo tempo! Luanda não pode ter mais do que quatro milhões de habitantes. Porque nem para esses tem estruturas. Todos os seres humanos que estejam a mais, não têm qualidade de vida.

O Presidente da República acaba de lançar programas de intervenção em todas as províncias para resolver os graves problemas que existem a nível social e económico. A prioridade vai para a Saúde. Recordo que construir postos e centros de saúde ou hospitais, é uma coisa. Colocar lá dentro equipas técnicas é outra. A guerra de muitas décadas acabou em Angola no ano de 2002, há apenas duas décadas. Para remover os seus escombros são necessários muitos anos. É preciso agir como se ainda estivéssemos a combater os karkamanos e seus aliados.

O Executivo vai construir um centro num município. Parabéns. Mas essa obra arranca no dia em que ao lado estiverem montadas as tendas de um hospital de campanha, com toda a equipa técnica contratada, médicos e outros profissionais de saúde. São estes que no dia-a-dia controlam e acompanham a construção da unidade sanitária. São eles que no dia em que as tendas são desmontadas a fim de seguirem para outra obra, ocupam as instalações novas definitivas. Mas já têm uns meses de contacto com a população local. Já fizeram muitas acções de informação e educação para a saúde. Já garantiram os cuidados primários à comunidade. 

Assim temos a certeza de que o posto, o centro de saúde ou o hospital não ficam às moscas, degradando-se ou à mercê do vandalismo promovido pela UNITA. Os contratos aos técnicos de saúde têm de ser bem pensados. Ninguém pode esperar que pessoal médico, de enfermagem e outros técnicos de saúde vão para o interior sem uma recompensa aceitável. 

O regime colonialista tinha sempre funcionários disponíveis porque quando iam para o “mato” ganhavam muito mais, tinham direito a casa e todas as mordomias. De quatro em quatro anos gozavam a “licença graciosa” e nessa altura, se quisessem, mudavam para cidades ou vilas com mais condições. Está tudo inventado. 

Erguer uma obra é fácil desde que haja dinheiro. Contratar equipas especializadas é mais complicado. Um dia destes as câmaras da TPA filmaram um centro de produção e tratamento de água no Tomboco, Foi construído no âmbito do Programa Água para Todos. Uma infraestrutura de categoria. Até foram fornecidos os produtos químicos para tratamento do “precioso líquido”. Mas as máquinas só funcionam se forem operadas por quem sabe. Os técnicos de laboratório são imprescindíveis. Pelos vistos, ninguém quis ir trabalhar para o Tomboco na Estação de Tratamento de Água. E hoje aquela infraestrutura está destruída. Vandalizada. Saqueada. Nunca funcionou.

O laboratório não faz análises com dólares. A manutenção dos equipamentos não se faz com dólares. São necessários técnicos. Se antes da construção da Estação de Tratamento de Água do Tomboco o governo tivesse contratado logo a equipa técnica que ia trabalhar lá, hoje as populações do município estavam a beber água potável e não tinham ido milhões de kwanzas para o lixo.

É isso mesmo. Angola tem problemas insolúveis porque não temos quadros técnicos em quantidade e qualidade. Sobretudo na área da Saúde. Antes de construir, desde o posto ao hospital municipal, primeiro é preciso contratar as equipas que vão trabalhar nesses projectos. Caso contrário só ganha quem recebe as comissões das obras. E estamos fartos de ver esse filme de terror. 

*Jornalista

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