quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Brasil | "ISTO É UMA FAÍSCA E VAI PEGAR FOGO" - reportagem TSF

Base bolsonarista está nas ruas e interpretou o discurso do presidente como que indo ao encontro das suas reivindicações. No entanto, entre eles, evitam falar no nome de Bolsonaro para que ele não seja implicado em tentativas de golpe. A luta nas ruas promete continuar com desejos de intervenção das Forças Armadas.

Eu sou a veia e você é a agulha / Eu sou o gás e você é a fagulha / Eu sou o fogo e você é a gasolina / Eu sou a pólvora e você a mina". A música de Roberta Sá e de Lenine não foi apropriada pela base bolsonarista, mas é a descrição perfeita para o momento atual do país: um presidente que não reconhece a derrota eleitoral num minidiscurso ao Brasil e apoiantes na rua favoráveis a um golpe militar.

Jair Bolsonaro, perdedor nas urnas na eleição de domingo passado, demorou dois dias para quebrar o silêncio num país que começa a sofrer com os protestos, nomeadamente, os bloqueios dos camionistas. Sobre os constrangimentos causados, até em infraestruturas críticas como aeroportos, houve nota de que "as manifestações pacíficas sempre serão bem-vindas", mas que "os métodos não podem ser os da esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedades, destruição de património e cerceamento do direito de ir e vir".

No entanto, "os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral". Ou seja, música para os ouvidos da base que, junto a colunas de som, em frente ao Comando Militar do Sudeste, em São Paulo, festejaram as palavras do presidente com direito a foguetes.

Se a base já estava inflamada, agora está ainda mais. "Achei que ele foi contundente com aquilo que a gente esperava já, a gente, que está aqui, esperava que se pronunciasse deste jeito, não se prejudicando, mas ele está do nosso lado. Estamos cientes de que o sistema inteiro jogou contra ele e ele não se pode prejudicar, então ele foi neutro", nota um dos apoiantes à TSF.

Outro qualifica o discurso como "muito bom" para, em seguida, dizer que "ele simplesmente não admitiu". "Ele não reconheceu uma eleição limpa, não foi limpa na verdade", diz Cláudio que mostrou alguma reserva em divulgar o apelido.

Já nas mensagens nos grupos bolsonaristas, circula uma cábula com o "recado do presidente no discurso". Das frases ditas por Bolsonaro, retiram-se recados como: "o nosso motivo", "continuem", valores "para defender" ou "resistência ao comunismo" e "contem comigo".

No entanto, mesmo que Jair Bolsonaro tivesse, em algum momento, falado sobre um processo eleitoral limpo, aqui ninguém ia acreditar. A ideia está fechada, corre à velocidade das mensagens nos grupos de Whatsapp e, no protesto, até se antecipava a mensagem de que "ele vai falar o que tem de falar" porque "não pode dizer mais".

O grande temor dos manifestantes é colar Bolsonaro à instigação de um golpe no país. Literalmente de um dia para o outro, deixaram de falar tanto em Jair Bolsonaro, autocensuraram-se na linguagem e agora dizem que estão "pelo Brasil" e não por Bolsonaro. Ainda assim, vibram a cada palavra do presidente.

Falar de Lula da Silva, vencedor das eleições, ou Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, desses podem falar. Na verdade, quanto mais alto melhor: é de ladrão para cima nos cânticos que vão alternando com o hino nacional brasileiro ou alguns "Pai Nosso". Afinal, é "Deus no comando", como se lê em alguns cartazes.

Pedido de "socorro"

À medida que as pessoas vão chegando, também os cartazes e tarjas vão aparecendo. Muitos deles voltados para as Forças Armadas, inclusive a maior de todas: "Socorro Forças Armadas". É na intervenção militar que reside a esperança, ou seja, num golpe.

"Eu prefiro uma intervenção militar, eu prefiro ser governado pelos militares do que ser governado por um corrupto. Não sou só eu não, são 58 milhões de brasileiros, não aguentamos mais isto", diz o mesmo Cláudio que considerou "muito bom" o discurso de dois minutos feito por Bolsonaro.

Precisamente pelo facto de a ideia golpista ganhar escala a cada hora que passa, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu ordenar às plataformas WhatsApp e Telegram que bloqueassem os grupos onde fossem convocadas paralisações nas estradas e fosse feita a apologia do golpe militar.

"Censura", comentam amiúde nos protestos, esquecendo que muitos dos argumentos que vão utilizando, por exemplo, para alegar fraude eleitoral, serem até agora comprovadamente falsos pela justiça e também pela comunicação social.

No entanto, à medida que os grupos vão sendo bloqueados, vão sendo criados outros ao mesmo ritmo. É uma pedra na engrenagem, mas nada demove os contactos de continuarem com o apelo para que "todos saiam à rua". Mesmo que as notícias falsas corram à mistura.

Na noite desta terça-feira, uma das mensagens que circulava dizia que "uma jornalista da CNN" tinha acabado de apurar que "Alexandre Moraes acabou de mandar uma notificação extrajudicial" para o regulador das telecomunicações brasileiro e que, por sua vez, passaria para as empresas de internet. Objetivo? "A partir das 22h, todos os servidores de internet do Brasil vão ser desligados para evitar que seja coordenada a maior manifestação da história do Brasil nesta quarta-feira". "Repassem urgente", termina este utilizador que continuou a receber mensagens no grupo madrugada fora.

Mais curioso foi uma outra pessoa deste grupo retransmitir esta mesma mensagem quando já passavam 23 minutos das 22 horas.

A força das fake news é tal que a Revista Fórum fez um artigo que colocou na categoria de "Universo Paralelo", falando em "momento de alucinação coletiva". Tratavam-se de vídeos de manifestações onde bolsonaristas comemoravam a prisão de Alexandre de Moraes. Nota: ele não foi preso (apesar dos cânticos de "Hey, Xandão, seu lugar é na prisão").

"Imprensalixo"

Outro dos alvos mais recentes dos apoiantes de Bolsonaro, que adicionam a "Liberdade" ao lema fascista "Deus, Pátria, Família", é a imprensa.

Ao microfone, um jovem nordestino de 19 anos vestido com um camuflado prega ser necessário não sair das ruas e continuar a luta contra uma eleição que "não foi limpa" e a favor do "descondenado". Diz ainda que ali está para ficar porque não quer, no futuro, comer do lixo ou que quando tiver uma filha ela vá a uma casa-de-banho unissexo.

Daí para a imprensa que "festejou" a vitória de Lula foi um tiro. Diz que Bolsonaro cortou verbas para a comunicação social e que, por isso, é que os media são favoráveis a Lula. "A mamata acabou", vai dizendo arrancando aplausos e notando que esse dinheiro deve ser investido no povo. Mais palmas.

No caso da imprensa internacional, o caso muda de figura. Se por um lado criticam o tom com que Bolsonaro é descrito nos meios fora do Brasil, também querem passar a mensagem porque acham que o mundo não está suficientemente atento "à fraude eleitoral" que dizem que está a acontecer no Brasil. Mas, por mais de uma vez, antes de abrirem a boca, perguntam à TSF: "Qual é o vosso posicionamento político?"

E agora?

Com este barril de pólvora a encher, a mobilização para esta quarta-feira tem sido bastante esforçada. Todos os grupos de Telegram e Whatsapp que ainda não foram abaixo, fazem apelos para que os bolsonaristas saiam para as portas dos quartéis de todo país, como também para darem o máximo de apoio aos camionistas e homens do agronegócio que bloqueiam estradas.

O facto de Bolsonaro já ter assumido ao Supremo Tribunal Federal que "acabou", reconhecendo assim a vitória de Lula, não passa de uma nota de rodapé para a base do presidente que, vestida de verde e amarelo, quer o máximo de pessoas na rua para que a "bandeira jamais seja vermelha".

O que vai acontecer ninguém sabe, mas que a mobilização continua forte, on e offline, isso ninguém pode negar. "Isto é uma faísca e vai pegar fogo", diz um apoiante à TSF falando dos próximos dias. "O nosso jogo é perigoso, menina / Nós somos fogo / Nós somos fogo / Nós somos fogo e gasolina", já cantavam a Roberta Sá e o Lenine.

Filipe Santa-Bárbara, enviado especial ao Brasil – TSF - 02 Novembro, 202

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