O bolsonarismo seguirá testando os nervos da democracia
Carla Jimenez | TheIntercept Brasil
Acabou. Acabou o governo perverso, que fez o Brasil chorar de tristeza tantas vezes, que colocou o país num clima de eterna pandemia, que levou ao limite a sanidade mental de mais de 60 milhões de brasileiros que votaram contra ele neste domingo. Quando a apuração já mostrava uma vantagem irreversível de Lula, um áudio emocionado de uma pessoa que viu o pai morrer de covid-19, pela negligência deliberada do estado, pipocou no whatsapp. A dor misturada à emoção naquela voz mostrava de onde vieram os mais de 2 milhões de votos a favor de Lula que o separaram de Jair Bolsonaro. Apesar de tudo contra, da máquina pública abertamente a favor da campanha pela reeleição, o Brasil disse não a mais quatro anos de governo de ultradireita armamentista.
#Publicado em português do Brasil
O Nordeste salvou, Minas Gerais ajudou, e a organização da sociedade civil no Pará, incluindo as aguerridas comunidades indígenas, foi decisiva. Foram exatos 435.189 votos paraenses a mais para o antibolsonarismo num dos estados mais violentados pela política morticida contra a Amazônia. A resistência nos estados mais bolsonaristas, como o Paraná, ou o Mato Grosso do Sul, não pode ser desmerecida. É ela que vai ter ainda mais trabalho para reconstruir as pontes que foram rompidas e denunciar os abusos que seguirão sendo cometidos regionalmente.
A vitória é fantástica, embora agridoce. Não só pelas perdas no caminho, os quase 700 mil mortos por covid-19, o desmatamento recorde nos biomas, os ataques ao SUS, à educação, à ciência e à cultura. Ou pela política de extermínio escancarada com Genivaldo de Jesus Santos, o homem assassinado numa câmara de gás improvisada no porta-mala de um carro da Polícia Rodoviária Federal em 26 de maio deste ano. É agridoce também porque o bolsonarismo está aqui, com Tarcísio de Freitas eleito governador de São Paulo, depois de uma campanha marcada pelo assassinato de um homem desarmado durante a visita do então candidato à comunidade de Paraisópolis neste segundo turno. Há, ainda, deputados e senadores recém eleitos no Congresso que continuarão jogando abaixo da cintura, buscando holofotes a qualquer preço para evitar a perda da coroa.
Os caminhoneiros golpistas, que fecharam estradas no sul e na via Dutra no mesmo domingo da vitória de Lula, também fizeram questão de lembrar que a toada de caos seguirá, com a lógica da pressão pelo terror. Pedem intervenção militar e vão testar os nervos da democracia por muito, muito tempo. Vai ser preciso paciência. A mesma que foi necessária do primeiro para o segundo turno.
A maioria dos eleitores que
votaram contra Bolsonaro queriam que as eleições deste ano tivessem se
encerrado em 2 de outubro. Mas os 1,8 milhão de votos que faltaram a Lula para
fechar a fatura foi um recado contundente ao partido que já carrega as máculas
de corrupção de outros carnavais. Ao fim e ao cabo, foram semanas didáticas
entre os dois turnos. Os intermináveis 28 dias para chegar ao último domingo
colocaram o Brasil tóxico do bolsonarismo em estado bruto. Dos disparos de fuzil de Roberto Jefferson em direção aos
agentes da Polícia Federal que tentavam prendê-lo ao teatro da deputada Carla
Zambelli, de arma em punho para devolver uma agressão verbal proferida por um
homem negro
O relato de eleitores virando voto por algum desses episódios se multiplicaram. O choque com a violência de Jefferson, uma figura repulsiva que xingou a ministra Cármen Lúcia — uma cena inacreditável quando o público feminino era o mais disputado das eleições — e as mentiras de Zambelli desfeitas por inúmeros vídeos estarreceram até os próprios bolsonaristas.
Para um outro público, que rejeitava os dois candidatos, os episódios falaram mais sobre as diferenças entre o lulismo e o bolsonarismo do que os debates dos presidenciáveis, como se pensou a princípio. Foi por pontos, mas venceu a melhor proposta na visão da maioria dos eleitores.
A vitória nessas condições, com 58 milhões de votos contra um governo do PT, precisa colocar o campo progressista para refletir e agir. O Lula vencedor não é o mesmo de 2002, assim como o Brasil não é o mesmo de 20 anos atrás. Muita água já passou por baixo desta ponte, e o eleitor que deu a vitória nas urnas ao petista está longe de ser fechado incondicionalmente com ele. Ele não ostenta botons de Che Guevara ou boné de Cuba na cabeça. Ele fechou com a democracia, com Simone Tebet e Marina Silva, com Fernando Henrique Cardoso — que conquistou eleitores decisivos ao pedir voto por Lula na reta final —, e com a trupe de economistas Henrique Meirelles, Pérsio Arida e Armínio Fraga.
O caminho é longo e de muitas nuances. Não há espaço para descansar sobre os louros. Que o diga o presidente do Chile Gabriel Boric, que derrotou o pinochetista José Antonio Kast no segundo turno das eleições de dezembro do ano passado com 56% dos votos contra 44% do adversário. Com apenas seis meses no cargo, Boric tinha só 27% de apoio popular, depois de uma frustrada mudança da Constituição.
Lula e toda a frente que o apoiou têm uma chance de fazer o Brasil dar certo. Será um trabalho aguerrido não só da classe política, mas de toda a sociedade. Nunca nos foi exigido tanto que a organização e disciplina parta de nós mesmos, enquanto cidadãos e nas instituições que ocupamos. A missão está no nosso colo: trabalhar para evitar as armadilhas do caminho. Limpar o veneno despejado pelo bolsonarismo vai levar anos, o que pede muito mais do que este voto de domingo. A trilha é longa e vai servir para testar a humildade do campo progressista, sem superioridade moral para afastar antigos aliados. Ainda estamos assustados com o fim do silêncio forçado pela política de terror do governo e precisamos usar a palavra para construir, não para tripudiar sobre os perdedores. Por ora, vamos celebrar a firmeza, o altruísmo e nossa fé a toda prova. Vencemos.
Carla Jimenez, colunista | The Intercept Brasil
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