Voz do país profundo, Pedro Castillo não tinha as chaves para transformá-lo. Sem projeto, alheou-se do real, viu seu apoio desabar e foi presa fácil das elites. Elas ignorarão os apelos da nova presidente à “trégua”. A crise não tem fim à vista
Marisa Glave em entrevista a Pablo Stefanoni | para Nueva Sociedad |
A crise política peruana sofreu uma reviravolta. Depois de assumir o poder em 28 de julho de 2021 como expressão do “profundo”, desprezado pelas elites de Lima, Pedro Castillo nunca encontrou rumo. Ele trocou ministros um após o outro, perdeu aliados, foi politicamente errático e acabou dependente de círculos escuros de conselheiros, envolvido em crescentes denúncias de corrupção de seu entorno e sua família. Mas foi sua decisão de fechar o Congresso – que ele acusou de obstrucionista em um discurso em voz trêmula – o que selou seu fim. Duas horas depois, o Congresso, que até então não tinha maioria para “tirá-lo”, conseguiu, e em poucos minutos o presidente foi preso, ao que parece, tentando chegar à embaixada mexicana.
Como se explica essa aceleração da crise e os erros do presidente peruano? Nesta entrevista, Marisa Glave dá algumas chaves de leitura. Entre 2007 e 2013, ela foi vereadora em Lima e entre 2016 e 2019, deputada da República. Atualmente é pesquisadora associada do Centro de Estudos e de Promoção do Desenvolvimento (DECO).
Nueva Sociedad – Como explicar a atabalhoada iniciativa de Pedro Castillo de dissolver o Congresso, sem prever que em poucos minutos estaria completamente isolado, numa situação em que o Congresso também não tinha votos para destituí-lo?
Marisa Glave – O pecado original de Pedro Castillo não foi apenas a construção de seu governo em termos de ministérios, mas também seu entorno mais próximo. Depois de um gabinete ministerial mais amplo, com figuras de vários setores progressistas, acabou restrito a um ambiente que já é conhecido publicamente, que a imprensa chamou de “Los Chotanos” ou “Los Chiclayanos”, dependendo de sua origem, que concentravam poderes de decisão ao redor do presidente e também eram seus interlocutores em relação ao que acontecia no país.
Recordemos uma das entrevistas mais desastrosas do presidente, para a CNN, na qual dizia que não lia jornais nem assistia televisão. Assim, ele vinha recebendo informações mediadas por aqueles que lhe falavam ao pé do ouvido. Este entorno, muito pouco capacitado, tem tomado decisões e cometido erros um atrás do outro.
Por exemplo, o presidente Castillo nomeou uma pessoa como chanceler, Miguel Rodríguez Mackay, que havia feito declarações contra o próprio presidente, a quem rotulou de comunista, apoiou o indulto de Alberto Fujimori e chegou a falar em fraude eleitoral, denúncia infundada do fujimorismo. Castillo também nomeou Mariano González como ministro do Interior, a quem acabou considerando como um infiltrado do golpe dentro de seu governo. Havia níveis de precariedade e ingenuidade, e uma espécie de arrogância muito forte por parte das pessoas que estão tomando as decisões.
Recentemente, Castillo trocou duas figuras importantes: o chefe da Direção Nacional de Inteligência (DINI) e o ministro da Defesa. Colocou o ex-general Wilson Barrantes no DINI, e Gustavo Bobbio na Defesa. Duas pessoas totalmente opostas entre si. Hoje circulam muitos boatos nas redações e em vários espaços de que esses dois quadros teriam garantido a Castillo que ele tinha força suficiente, entre as Forças Armadas e a Polícia, para avançar no fechamento do Congresso, rumo a esse golpe absurdo. Porque foi um golpe. A polícia de fato decidiu não atender às ordens do presidente e, evidentemente, os militares também não. E depois há um grupo de figuras políticas ao redor do presidente, incluindo a primeira-ministra Betssy Chávez (33 anos, quinta presidente do Conselho de Ministros desde que Castillo assumiu o cargo), que acho que superestimou um possível apoio popular à decisão do presidente fechar o Congresso e convocar uma Assembleia Constituinte.
Diria que essas fantasias foram acompanhadas de um medo real de Pedro Castillo diante do andamento das investigações do Ministério Público e do surgimento de novos “colaboradores efetivos” (da Justiça) com um conjunto de depoimentos que começaram a vazar na imprensa. Talvez o que mais o tenha atingido seja o do ex-chefe do DINI, José Fernández Latorre, falando sobre possíveis pagamentos aos familiares de Castillo, bem como apoio a funcionários que estão foragidos. E hoje (7 de dezembro), o ex-chefe do gabinete consultivo do Ministério da Habitação, Salatiel Marrufo, dando detalhes muito pormenorizados da soma de 9 milhões de soles (mais de US$ 2 milhões) que teria recebido de uma empresária para financiar um conjunto de ações do presidente Castillo e até dinheiro que teria chegado até ele. Acredito que esses medos explicam em parte a decisão de seguir em frente nessa tentação autoritária, que por outro lado tem sido vista como uma característica em parte de seu entorno.
Tudo acabou se desenrolando em poucas horas e o Peru tem outro ex-presidente preso, parece uma crise sem fim em que todos os líderes acabam presos, ou até se suicidam como Alan García…
Tudo isso pode ser interpretado como a eficácia da justiça peruana, mas a verdade é que, na realidade, são amostras da precariedade da representação política e um conjunto de golpes na própria confiança dos peruanos. Se olharmos para as pesquisas do IPSOS, o Peru é um dos países da América Latina com menos confiança na democracia e maior desconfiança nas autoridades. Então, como sustentar a democracia e as instituições quando mais de 80% dos peruanos acreditam que a classe política só olha para sua própria reprodução – e autoproteção – mais do que a busca de transformações mínimas ou diretrizes básicas de justiça no país?
Castillo chegou como candidato do “país profundo” e desde o início se viu que seu governo seguia um rumo errático, sem maioria parlamentar, sem ideias e, como você mencionou, com um entorno que acabou submerso na lógica do clientelismo e da corrupção. Como essa experiência afeta a esquerda peruana?
Acredito que a experiência desse governo, sem clareza programática, sem nenhuma reforma de base que lhe dê alguma bandeira de mudança social, de justiça social, vai atingir muito a esquerda, e mais ainda o setor da esquerda autoritária, como Peru Livre e outras organizações, que mantiveram seu apoio ao governo por mais tempo. Mas também para a esquerda democrática, que tem vacilado, e não tem conseguido dizer com clareza que, além da existência de uma direita golpista, que existiu desde o primeiro dia de Castillo e nem sequer reconheceu seu triunfo nas urnas, foi necessário marcar claramente a distância com um governo com desejo zero de transformação. Além dos já mencionados sinais óbvios de corrupção e falta de capacidade para dar passos mínimos em saúde e educação, após as consequências da pandemia, uma das piores da América Latina.
Mas direi também que, embora tudo isso vá afetar a esquerda, não podemos esquecer que o Congresso, nas mãos da direita oposicionista que vimos atuar neste período, tem índices de rejeição próximos a 90%. Estamos diante de um profundo colapso da representação política como um todo. O que é arriscado, pela possibilidade de crescerem supostas soluções autoritárias.
Até que ponto esta situação pode favorecer a extrema-direita, como o prefeito eleito de Lima, Rafael López Aliaga?
Acredito que a extrema-direita tende a exagerar. Castillo se autodestituiu, e isso foi capitalizado provisoriamente pelo Congresso. Mas não acho que a extrema-direita possa tirar tanto proveito desse momento de crise. Em vez disso, minha preocupação, sinceramente, é que projetos como o de Antauro Humala, que é de uma tendência autoritária, mas com um caráter diferente do de López Aliaga, autoproclamado etnonacionalista, possa crescer em alguns espaços e territórios do Peru. [Antauro Humala propôs, por exemplo, atirar em ex-presidentes corruptos, incluindo seu irmão Ollanta “como traidor”.]
O que esperar de Dina Boluarte, diante de seu perfil de vice-presidente tão inesperado quanto Castillo?
A senhora Boluarte deixou um recado, no momento de assumir a presidência, conclamando ao diálogo nacional, à construção de um governo de unidade e de base ampla, pedindo uma trégua política e se comprometendo com o combate à corrupção. Ela mesma disse que parte dos problemas está ligada à necessidade de uma reforma eleitoral que ainda está pendente. Porém, acredito que a nova presidenta e aqueles que pensam que essa sucessão constitucional vai gerar mais estabilidade estão enganados. É difícil pensar que a maioria dos peruanos aceite que este Congresso e Dina Boluarte fiquem até 2026 como se nada tivesse acontecido. Minha impressão é de que haverá mobilização cidadã em um contexto muito complicado. Uma seca muito forte está atingindo parte do país, gerando muito desconforto entre camponeses e agricultores, que já vêm discutindo a possibilidade de uma greve… e também a direita no Parlamento, setores como Fuerza Popular (Fujimorista), Avanza País (ligado ao partido espanhol Vox) ou Renovación Nacional (López Aliaga), têm vontade expressa de buscar também a saída de Boluarte. Sem bancada parlamentar própria, seria ingênuo de sua parte pensar que terá uma gestão tranquila em sua relação com o Congresso. Boluarte faria bem em promover um diálogo sobre possíveis reformas políticas e eleitorais que levem ao avanço das eleições. É possível que ela não tenha lua de mel com o Congresso ou com os cidadãos, por isso é importante abrir o diálogo para um avanço eleitoral, que não será nos próximos três meses, mas que deve acontecer.
De qualquer forma, como fechamento, eu diria que estamos em transição para nossa próxima crise. Não acho que estamos resolvendo a crise, mas caminhando para outra.
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*Pablo Stefanoni - Jornalista e historiador. Chefe de redação da revista "Nueva Sociedad".
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