sexta-feira, 31 de março de 2023

O HOMEM CANSADO DE ESPERAR – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Um padre que passou por Angola (Igreja Sagrada Família) foi à Universidade de Vincennes recrutar estudantes para ensinarem a Língua Portuguesa a filhos de emigrantes portugueses que residiam na comuna de Puteaux. Uns moravam em barracas. Outros sobreviviam em casas reprovadas pelas autoridades para arrendamento, por não terem condições de habitabilidade. Aos sábados lá estávamos nós, ensinando as crianças. 

Um sofrimento terrível. Além de viverem em tugúrios, as crianças estavam mal alimentadas. Comiam massa enriquecida com latas de comida para os cães. Passavam os dias entregues a si próprias, porque os pais trabalhavam de manhã à noite. Eles na construção civil e elas como mulheres-a-dias. Uma tragédia humana. 

Eu fazia biscatos em cafetarias e vendia a última edição do jornal France-Soir entre a Opera e o Palais Royal. Um esforçado ardina. Tinha uma cliente que me pagava à semana. Mas sempre muito mais do que devia. Um dia, perto da Páscoa, meteu 100 francos num envelope. Mas devia pouco mais de 20! Junto da Cidade Internacional Universitária, onde vivia, existia uma “grande superfície” que estava a fazer propaganda das iguarias próprias da época, sobretudo chocolates. Gastei metade do dinheiro nessas iguarias e no sábado fui dar aulas às minhas crianças. No intervalo expus as iguarias na mesa e convidei-as a servirem-se.

Um sofrimento terrível. A reacção de felicidade daquelas crianças comoveu-me tanto que não contive as lágrimas. Elas momentaneamente felizes e eu chorando. Um menino perguntou-me porque chorava. E eu disse que estava com uma tremenda dor de dentes. Continuei a dar aulas de Língua Portuguesa às crianças até às férias grandes. Mas depois desisti. Não aguentava aquele contacto semanal com tanta miséria. Uma cobardia é verdade. Mas estava a ir-me abaixo. A minha saúde mental corria perigo.

Mais de 50 anos depois, um homem afegão, cansado de esperar, tentou matar o professor que lhe ensinava a Língua Portuguesa, em Lisboa. Podia ser eu o professor ou o agressor. Duas mulheres tentaram acalmar o homem cansado de esperar e ele matou-as à facada. O morto matou.

Este homem estudou na universidade. É engenheiro informático. Quando o estado terrorista mais perigoso do mundo (EUA) se saciou de sangue, abandonou o Afeganistão. O homem que não sabe esperar fugiu com a esposa e três crianças. Ficou preso no campo de concentração de Lebos, na Grécia. Um dia alguém pegou fogo às tendas e a jovem mulher morreu queimada, como as elites femininas da UNITA morreram nas fogueiras da Jamba. Ele ficou com três crianças. A mais velha ainda não tem dez anos!

Os nazis que mandam no ocidente alargado despacharam o viúvo e suas crianças para Portugal. Foi alojado num apartamento. Mas as crianças comem. As crianças calçam e vestem. As crianças brincam. Precisam de toda a atenção. E ele não podia dar-lhes nada. O Centro Ismaili de Lisboa acolheu o refugiado. Mas ele tinha que trabalhar, ganhar um salário digno que lhe permitisse criar as três crianças. Para trabalhar precisava de deixar as crianças numa creche. Para ter uma creche precisava de apoio. Urgentemente. E só lhe diziam espera, espera, espera.

Ontem saiu de casa com uma faca e matou duas mulheres que dedicavam as suas vidas a apoiar refugiados como ele. Os descendentes (ou mesmo alguns deles…) daquelas crianças a quem ensinei a Língua Portuguesa em Puteaux chamaram terrorista ao refugiado tresloucado, ao homem que não apodia esperar. Ao morto vivo. Os canais de televisão passaram horas a vender o acontecimento. Ainda hoje vendem bem. 

Políticos do PSD e do partido Chega chamaram terrorista ao morto de Lesbos, ao vivo que matou no Centro Ismaili de Lisboa. Os nazis do Chega exigiram a presença do ministro da Administração Interna na Assembleia da República para se explicar. Como foi possível a polícia deixar um afegão terrorista à solta até matar? O PSD alinhou. Andam os dois metidos numa estranha disputa para mostrarem qual deles é mais nazi. Os dois juntos, segundo as sondagens, fazem maioria para governar. Aquelas meninas e meninos de Puteaux votam neles? Pensam como eles? 

Portugal, segundo as sondagens, tem neste momento uma maioria de eleitores que vota em partidos racistas e xenófobos. Um lugar perigoso e nada recomendável. Apesar disso, milhares de angolanas e angolanos querem viver na pátria de Salazar e seus seguidores Luís Montenegro, André Ventura e outros extremistas. 

Verdade indesmentível. A quem nada tem é proibido não gostar de merda. 

Enquanto as televisões vendiam a palpitante história do refugiado afegão morto em Lesbos e matador em Lisboa, um marido baleou a sua esposa. No dia anterior outra mulher foi morta à facada no lar doce lar. No ano passado, em Portugal as queixas de violência doméstica e os homicídios aumentaram muito. Os agressores eram todos portugueses. 

No ano passado registaram-se 28 vítimas mortais por violência domésticas. Os matadores eram todos portugueses. Em 2022, as queixas por violência doméstica tiveram o valor mais elevado dos últimos quatro anos. Foram registados mais de 30 mil casos. Não foram protagonizados por refugiados afegãos mortos em Lesbos e colocados em espera de vida com três crianças, até enlouquecerem.

*Jornalista

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