PORTUGAL
A sucessão de erros básicos de um
Comissário da PSP jovem e inexperiente criou uma situação perigosa no fim da
manifestação pelo direito à habitação
Francisco Carvalho* | Setenta e Quatro
manifestação de sábado passado, dia 1 de abril, foi um novo marco nas lutas sobre o direito à habitação. Dezenas de milhares de pessoas desceram a Avenida Almirante Reis, em Lisboa, tornando evidente a urgência social da habitação, mostrando como toca a população de um modo direto e sufocante. Foi uma manifestação viva e aguerrida mas sem incidentes de relevo até ao final.
No Martim Moniz, onde a manifestação terminou o seu percurso, tiveram lugar alguns confrontos com as forças de segurança. Deveram-se a uma péssima e incompetente gestão da ordem por parte da Polícia de Segurança Pública (PSP). E ameaçaram retirar o foco do objetivo da manifestação: a reivindicação do direito a uma habitação condigna. A extrema-direita e os comentadores de sempre bem o tentaram.
A função da polícia numa manifestação é evitar que se torne perigosa para os seus participantes e para os demais. Os grandes ajuntamentos de pessoas obedecem a questões e preocupações singulares e, por isso, a gestão da ordem deve ter em conta que ante uma multidão coisas aparentemente banais podem assumir dimensões totalmente inesperadas. Daí as manifestações serem acompanhadas por profissionais especializados, treinados para não reagirem a provocações, para saberem a cada momento medir o impacto das suas ações e para desativar, ao contrário de escalar, potenciais situações de confronto.
O que aconteceu no Martim Moniz foi exatamente o contrário. Uma sucessão de erros básicos feitos por um Comissário da PSP jovem e inexperiente criou uma situação extremamente perigosa para os manifestantes, para os transeuntes, para os comerciantes e, inclusive, para os próprios agentes.
Ao longo da manifestação, vários grupos de pessoas fizeram pintadas em fachadas de agências bancárias e imobiliárias e grandes supermercados, utilizando sprays e bolas de tinta, envergando máscaras e faixas para não serem reconhecidos. No final da marcha, duas pessoas acusadas de terem feito um grafiti num prédio - algo que negam ter feito - foram seguidas até um supermercado asiático, no centro do Martim Moniz, onde foram interpeladas pela polícia. Ao contrário do que disseram os jornais, as televisões e as rádios, não houve qualquer ato de vandalismo no interior ou no exterior desse estabelecimento comercial ou de qualquer outro no Martim Moniz.
A detenção foi vista por dezenas de pessoas que estavam a chegar à praça, não sendo evidente, nem lhes sido explicado, o que tinha acontecido. O que viram foi duas manifestantes absolutamente normais a serem interpeladas pela PSP enquanto compravam algo para comer. Ao contrário do que a PSP disse em comunicado, os agentes não tiveram de entrar no supermercado asiático para se “protegerem e protegerem as duas manifestantes abordadas”.
A primeira lição dada aos jovens oficiais da PSP sobre o controle de multidões será que as detenções devem cingir-se às necessárias para evitar violência, dado que arriscam gerar mais violência. Escrevinhar numa parede pode ser um gesto socialmente censurável, mas não pode ser considerado, no centro de um cidade e no contexto de uma manifestação, um “ato violento”. Trata-se, além disso, de um crime “semi-público” dependente de queixa do proprietário do imóvel. Se a PSP tinha identificado as pessoas, então não teria necessidade de proceder à sua detenção naquele preciso momento.
A segunda lição deverá ser que as detenções não devem ser feitas à vista de toda a gente, nem em locais onde não é possível extrair os detidos sem enfrentar o corpo da manifestação. Ao deter duas pessoas por uma questão corriqueira num supermercado, cujas duas únicas portas davam para a praça do Martim Moniz, a PSP criou uma situação que só poderia escalar. Dezenas e depois centenas de pessoas juntaram-se em frente ao supermercado, que foi literalmente cercado.
O desconforto ante a situação era notório entre a própria polícia. Em conversas com um dos advogados, os agentes especializados no controle de multidões assumiram o seu desagrado com a péssima gestão que o Comissário da PSP presente estava a fazer do acontecimento. O impasse durou cerca de uma hora (as duas manifestantes recusaram identificar-se), com a situação a tornar-se cada vez mais tensa.
No centro da praça do Martim Moniz, a organização da manifestação tinha montado um palco onde se proferiram discursos e decorreram concertos. Houve algum debate interno sobre se se anunciava publicamente a retenção das duas manifestantes dentro do supermercado, mas o anúncio acabou por ser feito, o que fez com que ainda mais pessoas se aproximassem do supermercado. A polícia decidiu fechar as portas do estabelecimento, que, ao contrário do que depois disse em comunicado à imprensa, nunca foi alvo de qualquer tentativa de invasão.
As motas dos agentes anti-motim foram a pouco e pouco engolidas pela multidão. Primeiro foram enchidas de autocolantes, depois pintadas e finalmente atiradas ao chão, algo que provocou várias discussões acesas. O Comissário da PSP tinha conseguido transformar uma interpelação totalmente banal num duelo que canalizava a frustração dos manifestantes para um único ponto de confronto.
Foi aí que a PSP cometeu um segundo erro que juntou fogo à gasolina. Algo fora de qualquer protocolo de segurança minimamente sério aconteceu: um agente sem proteções foi enviado sozinho para o meio da multidão. Não é preciso ter qualquer treino em segurança para perceber a perigosidade de se pôr um homem armado no meio de dezenas de pessoas que sentem que estão a ser reprimidas. O agente isolado foi posto num risco enorme, algo que consequentemente colocou também toda a gente que o rodeava num risco pelo menos tão grande.
O agente foi cercado e empurrado apesar das tentativas que vários manifestantes fizeram para acalmar a situação. Os agentes que guardavam o supermercado carregaram então sobre a multidão para o ir buscar, começando os confrontos nesse momento. Um dos agentes, protegido com capacete, agarrou uma jovem mulher que estava perto da porta do supermercado, dizendo-lhe: “agora vais ver do que os teus amigos são capazes”. Poucos segundos depois a rapariga foi atingida por uma garrafa que lhe abriu a cabeça.
A tensão entre a própria polícia era evidente, havendo inclusive imagens dos agentes de capacete a empurrar o agente isolado para dentro do estabelecimento contra a sua vontade. Durante vários minutos houve sucessivas cargas violentas às pessoas até aí pacíficas, ao que alguns manifestantes responderam com o arremesso de pedras, garrafas e pirotecnia. Um jornalista do Setenta e Quatro que acompanhava a situação foi inclusive agredido com várias bastonadas por um polícia anti-motim, mesmo depois de mostrar o cartão de jornalista.
Ao contrário do veiculado por presentes no local e nas redes sociais, os confrontos não foram iniciados por qualquer black bloc nem por agentes infiltrados da PSP. Não havia naquele momento qualquer grupo organizado vestido de negro presente no local, não se notou, como é caraterístico de grupos black bloc, qualquer concertação na ação em frente ao mercado. Além disso, os elementos desse bloco de negro estavam, pelo que vi e confirmei, noutro local. Quem enfrentou a polícia foi um grupo de gente muito variado, com muitos jovens, a maior parte agindo de cara destapada, movidos pela indignação e pela raiva.
As acusações feitas no local de que agentes clandestinos da PSP teriam começado os confrontos também se revelaram infundadas quando se tornou óbvio que os “infiltrados” apontados estavam rodeados de pessoas que os conheciam. Essa teoria conspirativa também parece pouco lógica. Se a PSP quisesse realmente “desvirtuar” o propósito da manifestação através de agentes infiltrados, teria tido inúmeras oportunidades ao longo do trajeto, nomeadamente aquando da pintura das fachadas dos supermercados e das agências bancárias e imobiliárias.
Seria difícil conseguir tornar tudo ainda pior. Ao chegarem, os reforços policiais carregaram sem qualquer lógica aparente, subindo a pequena praça ao lado do supermercado em direção a uma esplanada cheia de gente que pouco ou nada tinha a ver com os eventos em curso e que foi apanhada totalmente desprevenida. Os agentes varreram a esplanada perante a incredulidade geral. Ao invés de controlarem a multidão, conseguiram aumentar ainda mais o nível dos confrontos, carregando sobre quem nada tinha a ver com eles.
A situação acabou por acalmar quando a organização da manifestação começou a pedir que as pessoas se afastassem do supermercado, a pedido dos advogados presentes e das próprias detidas, que chegaram a falar com a multidão através de um telemóvel ligado a um microfone. As detidas foram libertadas algum tempo depois, sem qualquer acusação. O saldo desta crise só pode ser desastroso: a PSP conseguiu criar um cenário de extrema violência e perigo para centenas de pessoas e para os seus próprios agentes só para identificar duas pessoas, sem que as acusasse de nada em concreto.
Não fosse a gravidade dos eventos e a perigosidade da situação, dir-se-ia que este seria um bom cenário educativo, um estudo de caso. A PSP poderia aproveitá-lo para as suas aulas, na parte de “O QUE NUNCA FAZER”. O amadorismo e a negligência do Comissário conseguiram transformar um evento pacifico numa situação explosiva e perigosa para todos os envolvidos.
A inflação não dá sinais de abrandar significativamente, os patrões recusam-se a aumentar salários e a especulação imobiliária, pondo em causa o direito básico à habitação, não está a ser devidamente combatida. As tensões sociais vão continuar a aumentar e o extremar das clivagens políticas vão provocar conflitos cada vez mais fortes.
Se, por um lado, a PSP não pode continuar a fingir estar simplesmente a policiar pequenas passeatas, por outro as realidades militantes que organizam manifestações não podem continuar a fingir que a violência será sempre obra de “infiltrados” ou “anarcas”. O perigo de cada uma destas posições é a de um aumento cada vez maior dos riscos corridos por ambas as partes. A PSP que olhe para este caso de estudo para não repetir a incompetência que se viu.
* Francisco Carvalho - Ensaísta e investigador, dedicando-se ao estudo dos movimentos sociais do pós-guerra ao presente.
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