segunda-feira, 15 de maio de 2023

A Dama Florentina com Asas de Vénus – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Uma mulher de Florença é ela e o Renascimento, nova luz que libertou a Humanidade das cavernas do feudalismo, da escravatura e dos servos da gleba. Conheci uma florentina quando me interessei pela sociologia da literatura. Já tinha aprendido que aquilo estava tudo preso por arames. Tratava por tu Goldmann e Georg Lukács. Fiz uma análise fina do livro O Camponês de Paris escrito por Louis Aragon, o que cantava o homem e as suas armas. Ela estava no topo, trabalhava com Claude Lévi-Strauss. Era uma académica de grande fulgor. Tinha acabado de publicar uma tese sobre o advento do fascismo.  

Uma aula nocturna acabou e quando cheguei ao corredor encontrei a dama florentina. Se fosse hoje ia preso porque lhe disse: Se não fosses tão bela eras uma mulher. Assim és uma deusa. Acabámos a tomar um “rouge” no Les Deux Magots. O que aconteceu depois podia ter sido verdadeiramente a morte do artista. 

Um nazi que foi presidente do estado terrorista mais perigoso do mundo (EUA) foi condenado a pagar mais de quatro milhões de dólares a uma senhora por ter relações sexuais com ela na cabine de provas de uma loja de roupas. A dama florentina e eu estávamos tão apaixonados que fizemos o mesmo nos grandes armazéns Samaritaine. O mimoso choro que soava, a influência de Vénus, melhor é experimentá-lo que julgá-lo mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. 

Na cabine ao lado uma senhora ouviu o poema e chamou a gerente da loja, uma espécie de madrasta da Gata Borralheira, que nos surpreendeu e berrou: - Rua seus porcos! Rua seu porcos!. Por favor, minha amada florentina, não me leves a Tribunal porque eu não sou Trump nem tenho quatro euros para pagar a indeminização quanto mais quatro milhões. Juro emendar-me e nunca mais voltar a pecar.

Não cumpri. Tira-me o pão meu amor, vou viver sem pão. Tira-me o ar, minha amada, vou continuar a viver. Mas morro se me tirares o teu sorriso. A vizinha da cabine ao lado ouviu o poema, chamou a madrasta e fomos escorraçados das galerias Lafayette. Espera-me a prisão perpétua.

Um dia fui às alturas de Machu Pichu e por lá fiquei uns dias, convivendo com os índios, as flautas de cana e os lamas. Tirava notas para uma reportagem e fazia fotos a tudo e nada. Um índio chamou-me à grande muralha e explicou que tinha sido erguida com pedras machos e fêmeas encaixando perfeitamente. Pedras “machimbradas”. Mais uma reportagem. No final disse ao meu mestre índio: Tu és o Pablo Neruda! E ele quis saber quem era esse gringo. Nesse dia descobri que a poesia não precisa dos poetas para nada. 

Já desconfiava antes de Machiu Pichu. As nuvens de cacimbo que desciam das alturas do Pingano até à Kapopa do Negage eram pura poesia. O gingenge madurinho nos capinzais era poesia. As colinas do Catumbo eram poesia. A minha vizinha Aurora, envolta na neblina e vista no contra luz do entardecer foi o meu primeiro poema. Um dia conto essa poesia se a tanto me ajudar o engenho e a arte.

A Aurora foi uma sobrevivente dos massacres do 15 de Março de 1961. As milícias mataram a família toda, queimaram as casas e ela escapou porque se escondeu no capim. De sorte em sorte chegou a Luanda e foi acolhida pela Mamã Cagalhoça. Encontrei-a na vida desprevenida e fizemos uma grande festa. Mais poesia. 

Ela tinha um bebé com menos de um ano. Passava os dias olhando pelo filho e atendendo os clientes na esteira. Apaixonei-me pelo bebé e tentei arranjar uma casa para os três. Ela não aceitou. Já sentia a tragédia que chegava em alta velocidade. Morreu quando o filho ainda não tinha três anos. Fiquei o único familiar do seu menino.

Uma prestimosa senhora da Cruz Vermelha arranjou maneira de ser internado num orfanato dirigido por freiras. Até a vida me sorrir e voltar a ser um poema. Esforcei-me tanto pelo meu menino! Ia vê-lo ao orfanato. Levava brinquedos e roupa. Quando me via, começava a tremer e atirava-se aos meus braços. Um dia detectaram uma praga de piolhos no orfanato e as freiras compraram pesticida. Puseram o produto nas cabecinhas dos órfãos e quase todos morreram. O meu menino também. Antes que as freirinhas me pusessem a pagar o caixão, fugi para o Lobito onde Orlando de Albuquerque me deu trabalho na página de artes e letras do diário O Lobito.

Desde então tenho dormido no céu com o meu menino. Todas as noites. Maravilhosamente. Ele foi o mais belo poema que me aconteceu. Nenhum poeta saberá cantá-lo. Nenhuma palavra o enfeitará. Está para nascer o som da sua poesia. Vou dormir para sempre contigo no céu, meu amor. Noite após noite.

E tu, bem-amada florentina, ainda tens as asas que Vénus te ofertou? Depois de ti descobri que há sempre um sorriso à espera dos que nunca fizeram ninho, nem que seja nas ruas da amargura. Para não morrerem de pena. 

Hoje morreu o contista e poeta Henrique Guerra, irmão de Mário Guerra (Benúdia). Uma voz singular da Literatura Angolana. Os dois manos são grandes escritores. Como perguntou Carlos Drumond de Andrade, e agora José? 

A festa acabou, a luz apagou e o povo sumiu.

* Jornalista

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